terça-feira, 31 de maio de 2011

Presidente do Iêmen está atrasado

O uso do termo Primavera Árabe para designar as manifestações populares que eclodiram em países do Norte da África e do Oriente Médio pode ser perigoso. É claro que há uma tendência de pasteurizar ideologias e atitudes. De certa maneira, mesmo que o olhar dos governos de importantes Estados ocidentais tenha se tornado um tanto generoso com as profundas mudanças em curso, nunca é demais lembrar que, ainda assim, o hábito de interpretar etnocentricamente os acontecimentos não vai ser abandonado de uma hora para outra. No caso específico do Iêmen, cuja situação torna-se complicada dia a dia, isso é especialmente evidente.

Cerca de 300 manifestantes foram mortos nos últimos meses desde o levante contra o presidente Ali Abdullah Saleh. A partir da última semana, no entanto, a espiral de violência tem aumentado por conta da recusa de Saleh de deixar o cargo. Não é a primeira vez que isso acontece. Logo após o início dos protestos, em janeiro, o presidente já havia se comprometido a transferir suas atribuições outras duas vezes. E agora, como aconteceu anteriormente, desistiu na última hora. Existe a possibilidade, inclusive, que ele insista em permanecer no cargo até o fim do mandato, em 2013. Como o ex-presidente egípico Hosni Mubarak, Saleh é um caso emblemático das opções internacionais de EUA e União Europeia pré-2011.

Até este ano, as diretrizes externas americanas e europeias para o Oriente Médio basicamente se resumiam à estabilidade regional. Se os líderes combatessem o terrorismo e se mostrassem comprometidos a não causar muitos problemas em questões relativas ao frágil equilíbrio regional, na prática estavam liberados para fazer internamente o que bem entendessem. Podiam censurar a imprensa, fraldar eleições, proibir atos públicos que os desagradassem etc. Esta era a mensagem clara do Ocidente aos líderes autoritários da região. E, como todo mundo sabe, eles aproveitaram muito bem este passe-livre politico.

Um dos principais fatores que contribuem para este impasse atual gira em torno desta confusão de realidades, digamos. A política externa de EUA e UE foi de um polo a outro na velocidade do sucesso das manifestações populares. Esses dois grandes atores internacionais adotaram posturas pragmáticas e concluíram que é melhor está do lado dos vencedores. E se os vencedores representam valores elogiosos – num olhar bastante amplo sobre os movimentos que protagonizam a Primavera Árabe –, ainda melhor.

Quando Ali Abdullah Saleh luta desesperadamente para se manter à frente do Iêmen sob o argumento de que, sem ele, a al-Qaeda da Península Arábica (AQAP) irá tomar o país, ele está simplesmente repetindo um tipo de padrão de discurso através do qual o Ocidente forjou boa parte de suas alianças regionais. Sob o ponto de vista politico – acho que as consequências da disputa no Iêmem podem ser analisadas em outro texto –, Saleh não está errado; apenas atrasado, tal como o coelho de Alice no País das Maravilhas.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

A abertura da passagem de Rafah, o novo Egito e o terremoto político do próximo mês de setembro

Finalmente, há mudanças “on the ground” no conflito entre israelenses e palestinos. O termo em língua inglesa é usado com frequência para se referir ao concreto, ao que realmente acontece no terreno. Pois é. Este é um daqueles momentos-chave na geopolítica regional. Neste sábado, o governo interino egípcio decidiu abrir a fronteira do país com Gaza. Esta é uma simples formalidade, uma vez que, desde o episódio da frota turca que tentou furar o bloqueio ao território no meio do ano passado, a passagem de Rafah já estava aberta. Em 2010, mais de 130 mil palestinos atravessaram para o lado egípcio. Neste ano, somente desde o início das manifestações populares no país, cerca de 30 mil pessoas entraram no Egito a partir de Gaza.

A institucionalização da abertura da fronteira é importante porque ela tem caráter político bastante simbólico. O governo de transição tem se mostrado uma grande incógnita e isso inclui também suas opções internacionais. Já acenou com a possibilidade de restabelecer laços com o Irã, mas também garantiu ao governo de Israel que não romperia o acordo de paz assinado em 1979. Está muito claro, no entanto, que a cúpula temporária do país se dá conta do poder que detém: o Egito é hoje a esperança ocidental de mudança no Oriente Médio. Se logo no início da Primavera Árabe as potências ocidentais se calaram devido à aliança histórica que mantinham com o presidente deposto Hosni Mubarak, o Egito está presente hoje em todos os discursos que mencionam o fenômeno político. EUA e União Europeia anunciaram grandes pacotes de ajuda econômica porque esperam transformar o país num exemplo de sucesso de democracia, liberdade de imprensa, estabilidade e empreendedorismo.

A abertura da passagem de Rafah causa certo temor ao Ocidente não pelo fato em si, mas pelo o que ele pode representar. É muito claro que a medida foi adotada como agrado às demandas da Irmandade Muçulmana – grupo que marcava a oposição a Mubarak e que está na origem do Hamas. O governo transitório egípcio prefere dar este passo e não repetir opções adotadas pelo regime Mubarak (que até final de maio do ano passado mantinha estrito controle sobre a fronteira com Gaza, de forma a satisfazer as exigências ocidentais e de Israel) porque sabe que é mais importante não comprometer a própria reputação ou se opor claramente aos anseios dos cidadãos comuns (certamente solidários aos palestinos). E aí é preciso entender os eventos que em breve devem marcar a história do Oriente Médio.

O mês de setembro de 2011 está repleto de acontecimentos importantes. Menciono com certa frequência a intenção da Autoridade Palestina (AP) de declarar a criação unilateral do Estado palestino na Assembleia Geral da ONU justamente em setembro. Este é o tipo de evento que certamente mudará a realidade da região. Mas não é o único. Neste mês também estão planejadas eleições parlamentares no Egito. Espera-se que o governo interino dê sequência ao processo transitório. Ninguém sabe quais serão os resultados, mas certamente o Egito será um país diferente, com novos parlamentares, partidos políticos e governo. O mundo inteiro estará ansioso para entender o novo perfil político do país porque toda a dinâmica regional estará em jogo: o acordo de paz com Israel, os interesses iranianos, o papel da Irmandade Muçulmana. E tudo isso ao mesmo tempo em que, possivelmente, o Estado palestino estiver em formação. Todos os movimentos políticos ocidentais de hoje levam isso em consideração.

Além disso, é preciso dizer que, na prática, a abertura formal de Rafah provoca um resultado curioso. Com a passagem entre o país e o Egito institucionalmente liberada, Cairo decreta o fim do bloqueio israelense ao território. Se aos israelenses a ausência de controle sobre a fronteira egípcio-palestina pode causar muito desconforto, a medida também alivia em algum grau a pressão internacional sobre o Estado judeu. No entanto, é interessante perceber que, apesar disso, grupos militantes palestinos não abrem mão de levar adiante o projeto de chegar a Gaza por via marítima, como no ano passado. Planejada para chegar ao território no final de junho, a versão 2011 da empreitada político-midiática contará com 1.500 pessoas de 100 nacionalidades diferentes a bordo de 15 embarcações.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Desdobramentos políticos da captura de Mladic na Sérvia

A captura de Ratko Mladic é o tipo de evento que acaba sendo bom para todo mundo. Na certeza da interdependência dos atores internacionais – aliados ou não –, a ação Sérvia que culminou na prisão do responsável diretamente pela morte de oito mil muçulmanos serve a muitos interessados: nada melhor à União Europeia, neste momento, que ganhar legitimidade como defensora dos direitos humanos diante dos protagonistas da Primavera Árabe. O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos EUA, país com histórico de participação direta na guerra dos Balcãs.

E, claro, a Sérvia finalmente optou pelo pragmatismo. Por mais que nacionalistas ainda cultivassem certo apreço por Mladic, o governo de Belgrado tem partido em busca de ascensão política e econômica. Isso inclui, por exemplo, a tentativa de estabelecimento de algum grau de relação com Kosovo. A prisão desta quinta-feira foi manchete em todo o mundo. E as consequências só são positivas à Sérvia. Matéria do britânico Financial Times informa que o Dinar sérvio teve valorização de 1% em relação ao Euro; as bolsas de valores subiram imediatamente 1,2%. E esses foram apenas os primeiros desdobramentos da ação.

Há um silêncio constrangedor sobre o entorno desta prisão. Mladic não estava propriamente desaparecido como muita gente pode entender a partir da leitura das matérias jornalísticas. As autoridades sérvias decidiram dar fim à encenação rapidamente em nome do pragmatismo. Porque acima de um eventual orgulho nacional ferido está a ambição do país de fazer parte da União Europeia. E o jogo político também tem suas muitas encenações. A mais recente delas, no caso específico das demandas sérvias, aconteceu nesta semana mesmo. Um relatório “vazado” pelo promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional de Haia, Serge Brammetz, dizia que a Sérvia se recusava a cooperar na busca pelo homem mais procurado dos Balcãs. Se divulgado oficialmente, o texto seria interpretado como sinal de que o país não compartilhava dos valores da União Europeia. Um abraço para as pretensões locais.

Não é por acaso que Mladic foi “encontrado” dias após este vazamento. Belgrado colocou suas opções na balança e escolheu o único caminho possível. A simbiose desta situação é curiosa. A Sérvia precisa da UE tanto quanto o bloco precisa de uma injeção de protagonismo e relevância. Tampouco foi ocasional o anúncio da captura durante a realização do G8. O mundo dos membros do G8 e da UE é exatamente o mesmo do Tribunal Penal Internacional. Todas essas instituições e atores representam a opção pela inflexibilidade diante de massacres e arbitrariedades. Deixar isso claro justamente durante a Primavera Árabe é uma maneira muito assertiva de se colocar ao lado dos valores defendidos pelas manifestações populares. Esta simbiose, portanto, inclui este vértice recente e poderoso.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

G8: Eurocopa política

Criado em 1975 inicialmente para reunir as seis maiores economias do mundo naquela época, o G6 se transformou em G8 – e se consolidou como tal – em 1997, quando seus membros admitiram a entrada da Rússia. Desde então, o grupo conta com França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido, EUA, Canadá e Rússia. O encontro que se inicia nesta quinta-feira, na cidade costeira francesa de Deauville, é, no entanto, uma aberração. Não pela conferência ou devido às muitas discussões entre os líderes desses países, mas pela própria existência do G8.

É curioso notar o apego dos governos ao G8. Aliás, curioso não é o termo mais preciso. Seria melhor dizer sintomático, quase natural. Quando os principais representantes deste velho mundo transatlântico se encontram num aconchegante resort francês eles simplesmente demonstram a insistência em negar o óbvio: nem Europa, nem EUA podem monopolizar as regras da política e – menos ainda – da economia. Por mais estonteante, emblemático e glamoroso que tais reuniões sejam, elas hoje têm muito menos impacto do que no século 20.

Na verdade, a própria reunião atual tem dentre seus principais objetivos retomar parte da importância perdida por americanos e europeus (o Japão entre no bolo como representante deste velho mundo). É por isso que há muito simbolismo político; os países pretendem discutir de tudo: economia, ajuda mútua, invasão à Líbia, auxílio aos governos que emergiram da Primavera Árabe, o processo de paz no Oriente Médio. Tudo gira em torno de reconquistar protagonismo nesses tempos de ascensão política e econômica dos países em desenvolvimento.

O problema é que será preciso mais que discurso para mostrar alguma importância. Uma medida importante seria aportar valorosos pacotes financeiros no Egito e na Tunísia – apenas para começar. Esta é a ideia de Barack Obama – apresentada, inclusive, no discurso sobre o Oriente Médio de semana passada. Esta mesma iniciativa foi defendida publicamente pelo presidente francês, Nicolas Sarkozy. A questão é que todos os membros europeus do G8 estão quebrados financeiramente ou atravessam momentos de profunda crise e austeridade. Vai ser difícil convencer as populações desses países quanto a real necessidade de um grande repasse deste tipo justamente agora.

A edição deste ano do G8 contou com as participações dos sócios e criadores do Google e Facebook para debater a importância política da internet. Esta é uma evolução incontestável, sem a menor dúvida. E também é uma leitura correta sobre as rápidas mudanças da dinâmica atual. Os Estados nacionais estão longe de representaram os únicos atores geopolíticos relevantes. O G8 acerta ao reconhecer o óbvio. O problema é que esta interpretação da realidade não se estende ao resto. Excluir China, Índia e Brasil de qualquer discussão mundial torna o resultado do fórum incipiente. Para fazer uma comparação esportiva, o G8 é como uma Copa do Mundo sem Brasil e Argentina. Aliás, isso já existe, chama-se Eurocopa. Nada é por acaso.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A possível próxima guerra no Oriente Médio

O discurso de Benjamin Netanyahu fez sucesso entre os congressistas americanos. E ponto. Por mais que a pressão agora esteja com os palestinos, é preciso ser claro e dizer que não, a Autoridade Palestina (AP) não vai se sentir ameaçada pelo apoio dos EUA a Israel. Na prática, isso significa que Mahmoud Abbas e o Fatah não sentem nenhuma urgência em retornar à mesa de negociações. Por duas razões: a primeira delas é óbvia; a maior parte do que o primeiro-ministro israelense disse ontem em Washington não agrada nem um pouco às lideranças palestinas. Não é porque Bibi deixa claro mais uma vez a posição da direita e de sua coalizão sobre os refugiados palestinos que a AP irá voltar atrás em suas demandas em relação a assuntos tão sensíveis. A outra razão é ainda mais importante para o futuro da região. Os palestinos sabem que o tempo corre contra Israel.

O plano de Benjamin Netanyahu de incluir os principais blocos de assentamento no interior das fronteiras definitivas de Israel talvez agrade aos EUA. Obama deixou claro na semana passada que considera as linhas existentes antes da Guerra dos Seis Dias como base do início de discussões – “com trocas de território mutualmente acordadas entre as partes”, como disse. Para os palestinos, no entanto, as fronteiras de 1967 devem representar não apenas o ponto de partida dos diálogos, mas a própria fronteira. Este é um dos grandes problemas envolvendo as discussões. É o tipo de discordância que gera uma cascata de outras questões. Certamente, nenhuma liderança palestina atual está disposta a negociar este item, principalmente após os vazamentos promovidos pelo Wikileaks – que, para a sobrevida de Mahmoud Abbas e Saeb Erekat, porta-vozes históricos das ambições de seu povo, tiveram repercussão limitada graças à Primavera Árabe.

Já são conhecidas as intenções políticas da AP no futuro próximo. Os palestinos pretendem ir à Assembleia-Geral das Nações Unidas, em setembro, e declarar a criação unilateral de seu Estado. Isso vai acontecer. E as palavras de Benjamin Netanyahu no discurso ao Congresso americano e mesmo o apoio dos EUA a Israel terão importância limitada frente ao fato concreto: a maior parte dos países da ONU irá apoiar a demanda palestina. A resolução não irá passar no Conselho de Segurança, mas certamente será aprovada na Assembleia-Geral. A discussão em torno da independência palestina não irá somente sensibilizar a comunidade internacional, mas receberá amplo apoio popular em todo o mundo. Ela será tomada como uma espécie de solução internacional do problema, um ato de justiça. E aí questões importantes regionais irão surgir. Questões que serão muito problemáticas na prática ao governo de Israel.

A primeira delas – e a mais urgente – dirá respeito aos assentamentos judaicos na Cisjordânia e a presença militar israelense nesta região. Com a efetivação de um Estado palestino, o exército de Israel será considerado força de ocupação estrangeira, entidade responsável pela violação da soberania palestina. E a partir daí ninguém sabe qual será a reação do corpo oficial político palestino. Se as forças de segurança se transformarão no aparato militar pronto para expulsar os colonos violentamente ou se representantes oficiais deste novo país levarão a questão novamente às Nações Unidas. O que se sabe é que Israel ficará ainda mais isolado politicamente – mais isolado do que jamais esteve em toda a sua história. O Estado palestino e a comunidade internacional que apoiou sua constituição irão considerar a ocupação israelense inaceitável. A partir deste ponto, todas as opções estarão sobre a mesa: inclusive porque um ataque palestino aos colonos será considerado por Israel uma declaração de guerra. E essas são apenas as consequências de curto prazo.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Benjamin Netanyahu joga a bola para o lado palestino

Menos de uma semana após o discurso sobre o Oriente Médio proferido por Obama no Departamento de Estado, foi a vez de o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, dar o troco. E o clima de revanchismo criado pela imprensa foi tão grande, que as expectativas sobre as posições de Bibi aumentaram ainda mais. Houve uma conjunção de elementos que transformaram o discurso de hoje num evento histórico; a interpretação equivocada – proposital ou não – das palavras do presidente americano e, consequentemente, a tensão depositada na resposta oficial israelense. Claro que o líder do Estado judeu sabia disso. E claro que usou a situação a seu favor. Para completar, fez seu pronunciamento ao Congresso enquanto Obama está fora do país.

E Netanyahu abusou de sua habilidade retórica. Diante de representantes democratas e republicanos, foi interrompido 26 vezes pelos aplausos da audiência. E educadamente não apenas respondeu ao presidente americano, mas contestou diante da elite política do país suas afirmações sobre as fronteiras de 1967. Como escrevi no dia mesmo do polêmico discurso de quinta-feira passada, Obama não disse nada de tão controverso assim. Simplesmente verbalizou o plano que tem sido levado adiante por todos os presidentes americanos desde os anos 1990. Mas ninguém prestou atenção quando ele disse que as fronteiras pré-1967 deveriam ser tomadas como base da discussão e que defende trocas mútuas e acordadas de território.

Se Obama conseguiu provocar uma manchete com seu discurso, Netanyahu não deixou por menos. Ofereceu à imprensa internacional uma série de alternativas. Jerusalém não será dividida, os refugiados palestinos deverão retornar para o interior das fronteiras do futuro Estado palestino, Israel não aceitará negociar com o governo palestino que inclua o Hamas etc. Essas são posições históricas do premiê e plenamente conhecidas. Mas há trechos com algumas novidades que mostram um primeiro-ministro disposto a oferecer algo a Obama. Por exemplo, disse com todas as letras estar disposto a aceitar um Estado palestino; reconheceu que, assim como os judeus, os palestinos também precisam de um país. Além disso, deixou claro que alguns assentamentos deverão ser removidos (“Como líder, é minha responsabilidade conduzir meu povo à paz. Não é fácil porque reconheço que numa paz verdadeira deveremos abrir mão de partes da terra ancestral judaica”).

A declaração sobre os assentamentos é especialmente difícil por conta da base aliada que o sustenta no cargo de primeiro-ministro. Possivelmente, será cobrado pelos partidos religiosos de sua coalizão. Netanyahu foi particularmente sagaz ao jogar a bola para o lado palestino. Ele poderia ter prometido o que fosse hoje. Poderia ter aceitado dividir Jerusalém ou mesmo que três milhões de refugiados palestinos (o número inclui filhos, netos e bisnetos dos deslocados a partir da guerra de 1948) recebessem cidadania israelense, não importa. O fato é que, ao deixar claro novamente que não aceita negociar se a Autoridade Palestina fechar acordo de coalizão com o Hamas, ele compartilha o fracasso do processo de paz com os palestinos. E, mais ainda, deposita grandes expectativas e pressão sobre o presidente Mahmoud Abbas (“desfaça o pacto com o Hamas, sente-se e negocie, faça a paz com o Estado judeu; se fizer isso, eu prometo não apenas que Israel será o primeiro país a reconhecer um Estado palestino nas Nações Unidas, mas será também o primeiro país a fazer isso”).

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Obama vai à Europa em busca da popularidade perdida

O giro europeu iniciado hoje por Obama é o tipo de excursão necessária em quase todos os aspectos. Há muitos assuntos vitais a serem discutidos e, além disso, a agenda presidencial inclui, também, certo tom de aquecimento para as próprias eleições americanas do ano que vem. Historicamente, ainda é recente a imagem impressionante de milhares de alemães saudando o então candidato Democrata no discurso de Berlim, em 2008. Se houve queda nos índices de aprovação entre os cidadãos americanos, a popularidade de Obama continua em alta do outro lado do Atlântico: 70% dos europeus consideram bom o seu mandato à frente da maior potência mundial.

 
Este é o tipo de prestígio que pode ser aproveitado de alguma maneira. Não se sabe exatamente qual o impacto nos EUA de tamanha aceitação internacional, mas não custa nada dar uma força e recriar novas imagens da Obamamania. Elas serão úteis durante a campanha, sem qualquer dúvida. Há outras questões importantes para o momento atual. Estar na Europa é ter a oportunidade de abordar de frente, por exemplo, a situação das tropas aliadas no Afeganistão.

Como se sabe, a política externa americana não é o tipo de assunto capaz de comover os cidadãos comuns do país (o caso afegão é diferente porque os soldados dos EUA que estão lá são filhos, netos, maridos etc). Mas esta viagem tem forte apelo aos europeus.

A reafirmação da solução esperada por Obama para o conflito palestino-israelense teve grande repercussão no continente. Não apenas isso; as palavras do presidente americano foram muito bem recebidas porque se encaixam plenamente no imaginário criado pelo público europeu do que seria uma liderança justa de Washington; e também porque no discurso do Oriente Médio houve uma grande preocupação quanto os termos usados. Obama fez questão de dizer que conta com o Quarteto (além dos EUA, o grupo é formado por Nações Unidas, União Europeia e Rússia) para seguir em frente com o processo de paz. Este é o tipo de declaração que os europeus esperam do presidente americano.

O tour também é útil como uma espécie de fuga doméstica. Após a polêmica causada pelo discurso para o Oriente Médio e do desgaste em torno do encontro com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu – eventos que mobilizaram a imprensa dos EUA –, vale a pena dar um tempo de uma semana (uma viagem considerada longa para os padrões históricos do presidente) e mudar o foco das discussões pelo menos por ora.

Especificamente, a visita à Irlanda apresenta alguns aspectos curiosos: como cerca de 40 milhões de americanos têm ascendência irlandesa, uma boa recepção na terra original de tantos eleitores pode ter algum impacto positivo. E mais: a descoberta que um tataravô de Obama atravessou o Atlântico em busca do sonho americano reafirma a própria identidade cultural do presidente. Vale lembrar que ele teve que apresentar sua certidão de nascimento para provar que, de fato, é cidadão do país nascido em território dos EUA (no caso, o Havaí).

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Processo de paz no Oriente Médio: uma análise menos óbvia sobre as palavras de Obama

A imprensa mundial optou pelo caminho óbvio ao analisar o discurso de Obama sobre os acontecimentos recentes do Oriente Médio. Esta obviedade é representada pela fixação internacional no conflito palestino-israelense. É uma pena. O presidente americano abordou tantos assuntos importantes e interessantes que insistir no mais do mesmo é sintoma da falta de criatividade ou, ainda pior, revela a completa e voluntária incapacidade de interpretar todo o resto. Optei por não seguir a maioria e escrevi o texto desta quinta-feira com a certeza de que havia muito mais a considerar.

No entanto, a curiosidade generalizada e as muitas dúvidas, repercussões e equívocos em torno da abordagem de Obama sobre o conflito me obrigam a retomar o tema. Seria ingenuidade de minha parte ignorar o momento geopolítico. Como escrevi ao longo desta semana, há clara tentativa de retorno ao cotidiano anterior às manifestações populares árabes. E essa rotina sempre destacou o protagonismo do conflito palestino-israelense.

Após o discurso desta quinta-feira surgiu um clima de surpresa pela verbalização da defesa da instituição das fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias, em 1967, como base de um acordo de paz definitivo. É inexplicável a confusão provocada pelas palavras de Obama. Pode ter sido a primeira vez que um presidente americano se expressou com tal clareza, pode ter sido também a primeira vez que o assunto foi exposto assim de forma tão pragmática e direta, mas o estabelecimento de fronteiras definitivas entre Israel e o futuro Estado palestino ao longo das linhas anteriores a 1967 está longe de ser novidade. Não levar isso em consideração transparece uma amnésia quanto a posturas de diferentes presidentes dos EUA desde os anos 1990.

Para quem não se lembra, em 1993, o então primeiro-ministro israelense Itzhak Rabin e o líder palestino Iasser Arafat assinaram os chamados Acordos de Oslo – que contaram com a mediação do ex-presidente americano Bill Clinton. A cena histórica do aperto de mão nos jardins de Camp David dava início a medidas práticas importantes: a criação da Autoridade Palestina (AP), organismo que passava a legítima representante das posições e interesses palestinos. A AP passava a responder por negociações que pretendiam, finalmente, criar um Estado palestino no território que ela formalmente controlaria a partir de então. E adivinhem qual era este território? Justamente Gaza e Cisjordânia. Ambos ainda eram – e no caso da Cisjordânia isto ainda é uma realidade – ocupados por Israel. Porque ambos foram conquistados pelo Estado judeu após a Guerra dos Seis Dias, em 1967.

Há reações negativas sobre o discurso. A mais óbvia, a do Hamas, condena as palavras do presidente americano simplesmente porque a organização sequer reconhece o direito de Israel existir. Isso é tão fora de propósito que não vale nem a pena se estender sobre o assunto. Israel existe e ponto. Não há nada a fazer sobre isso e este tipo de reação apenas serve para reforçar a intransigência (o termo menos inapropriado a ser usado) representada pelo grupo.

Do ponto de vista israelense, o assunto rende mais complexidades. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, não esperava que Obama definisse explicitamente as linhas anteriores à guerra de 1967 como as fronteiras entre os dois territórios. A insatisfação de Bibi é fácil de ser explicada. Como há cerca de 400 mil judeus em assentamentos na Cisjordânia, retirá-los de lá e realocá-los em Israel seria um problema para o primeiro-ministro de Israel. Um grande problema. Mas não apenas por questões ideológicas, longe disso. O sistema político de Israel exige maioria no parlamento. Como os partidos que apoiam Netanyahu são justamente favoráveis à manutenção dos assentamentos, a sustentação de seu gabinete gira em torno disso também. Basta que Bibi aceite a proposta de Obama para perder o cargo de primeiro-ministro. Na prática, Obama colocou uma bomba-relógio no colo do israelense.

Há rumores confiáveis que dão conta de que o presidente americano não tem lá muito apreço pelo aliado israelense. Ontem mesmo reportagem noturna do New York Times informava que assessores de Obama comentam que ele considera Netanyahu alguém incapaz de alcançar a paz. Na prática, no entanto, ambos se completam em seus propósitos políticos, de certa maneira.

Obama precisa recuperar a influência entre os países árabes. Nada melhor do que entrar em choque com Israel. Um choque moderado, claro. Benjamin Netanyahu precisa se opor a Obama para justificar sua aliança política doméstica. O problema é que este tipo de estratégia tem prazo de validade. No caso do americano, ele certamente gostaria de apresentar avanços no processo de paz. Afinal de contas, esta é uma expectativa mundial depositada sobre o presidente que supostamente representa a “mudança”.

Nada melhor que, após o assassinato de Bin Laden, ter como trunfo algo de concreto a apresentar durante a campanha presidencial em que busca a reeleição (mesmo que este seja um assunto menos caro ao eleitorado dos EUA). E Benjamin Netanyhau está em péssima situação: o relógio está correndo e os palestinos têm o tempo a seu lado. Em setembro, pretendem declarar independência unilateralmente. E, se esta iniciativa de fato ganhar apoio internacional – e meu palpite é que isso deve acontecer –, Bibi (e qualquer outro que o suceda no cargo, para ser bem sincero) terá muita dificuldade de retomar qualquer negociação de paz (este é assunto para um texto posterior mais aprofundado).

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Obama: nova abordagem para o Oriente Médio

Havia muita expectativa quanto ao “Discurso sobre o Oriente Médio” do presidente Obama marcado para hoje. E confesso que, após o pronunciamento, admito ter ficado muito impressionado pela capacidade do líder americano de abordar questões importantes e difíceis com tanta franqueza. Já se sabia que um dos temas centrais seria a Primavera Árabe. No início do processo, a Casa Branca foi criticada pelo silêncio. Afinal, o então presidente egípcio Hosni Mubarak – um dos mais importantes aliados dos EUA na região – era o alvo da ira popular e de um movimento bem sucedido que encontrou ampla adesão dos cidadãos comuns. Hoje, em Washington, Obama encarou todos os muitos pontos de atrito entre seu governo e os países do Oriente Médio. E fez isso com a clareza e a assertividade que o momento exige. Afinal, como tenho escrito, o protagonismo americano está sendo questionado.

O presidente dos EUA sabe disso e decidiu fazer uso de toda sua capacidade de retórica. Conseguiu lembrar seus melhores comícios durante a campanha. Ainda não se sabe como será a reação das populações dos países árabes. No entanto, se havia expectativa e dúvida, a Casa Branca dissipou-as uma a uma. O discurso foi uma verdadeira aula sobre o posicionamento americano neste governo. E todo senso de urgência que o momento exige foi exposto.

Washington reforçou um dos principais pontos de sua política externa: o incentivo e o fomento do empreendedorismo. Esta é uma área de interesse pessoal do presidente e um ponto que, inclusive, marca sua biografia. Obama conseguiu hoje estender este projeto às manifestações populares e, com isso, pretende sensibilizar os jovens responsáveis pelos levantes atuais. O raciocínio é correto, afinal de contas a maior parte dos cidadãos dos países da região tem menos de 30 anos de idade.

Há uma mudança significativa na forma de abordagem pelos EUA. Se até o início deste ano havia uma aliança histórica entre o país e líderes contestados e autoritários, o presidente americano fez questão de deixar claro que viu com bons olhos os movimentos domésticos pró-democracia. Tanto que todo o pronunciamento de hoje é preenchido pela tentativa de criação de um laço entre os EUA e as populações dos países árabes, não seus governantes. Isto não apenas transparece uma leitura correta dos acontecimentos que envolvem a Primavera Árabe como um todo, mas também a certeza de que, a partir de agora, a espontaneidade popular não pode mais ser ignorada – nem domesticamente nos países árabes, nem nas relações que esses países irão forjar com os EUA.

Quando Washington reconhece formalmente esta transformação, na prática pede também um voto de confiança aos jovens árabes. Por isso Obama deu um passo atrás (como escrevi ontem, esta medida era muito importante). Assim – e esta é uma característica importante presente no discurso de hoje –, os EUA se colocam como parceiros disponíveis a participar do processo em curso. Não como partidários deste ou daquele lado, mas, principalmente, como fomentadores de inovação, empreendedorismo e incentivadores das práticas de livre mercado.

Os primeiros países que levaram adiante essas modificações internas, Egito e Tunísia, são vistos como os sócios primordiais desta nova abordagem. Medidas práticas como o perdão da dívida de 1 bilhão de dólares egípcia e o empréstimo do mesmo valor são alguns passos que encaminham uma mensagem importante a todos os países da região: se quiserem, eles podem contar com os EUA como aliados nos esforços de criação de ambientes capazes de gerar emprego e renda a suas populações. Egito e Tunísia passam a ser uma espécie de versão beta regional.

Finalmente, os EUA encerraram em grande estilo a reversão do constrangimento causado inicialmente. E para causar ainda melhor impressão, o presidente americano não se poupou de autocríticas (como quando textualmente mencionou o equívoco representado pela guerra do Iraque: “ aprendemos com nossa experiência no Iraque como é custoso e difícil impor a mudança de regime através da força”) e, menos ainda, poupou críticas a aliados. Sobrou para os estratégicos Iêmen e Bahrein – o governo americano foi apontado como incoerente por não se manifestar favoravelmente aos protestos populares nesses países aliados de Washington – e também para Israel – o recado ao primeiro-ministro Netanyahu foi claro quando Obama criticou a manutenção dos assentamentos judaicos e também a ilusão representada pela estagnação das negociações de paz.

Houve importantes menções ao conflito palestino-israelense. Mas prefiro tratar delas amanhã, quando Obama se encontrará com Benjamin Netanyahu em Washington.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

EUA precisam dar um passo atrás nas próprias pretensões sobre o conflito palestino-israelense

O presidente Barack Obama foi surpreendido pela precipitação dos acontecimentos no Oriente Médio. Na quinta-feira, fará discurso no Departamento de Estado em que vai abordar as relações entre os EUA, o mundo árabe e o islamismo. É a segunda empreitada do líder americano. A primeira foi um belo pronunciamento no Cairo, em 2009, repleto da poderosa retórica que o elegeu no ano anterior. A ideia agora é explicar o posicionamento do país a partir da operação que matou Bin Laden e também à luz das manifestações populares recentes. Não vai ser possível surfar nessas ondas exclusivamente.

O protagonismo do conflito palestino-israelense está retornando com força. E há importantes mudanças em torno deste assunto – demonstradas pelas novas estratégias palestinas sobre as quais comentei no texto desta terça. E o otimismo americano para lidar com as negociações de paz está em baixa. Não apenas pelo pedido de demissão do enviado George Mitchell, mas principalmente porque a própria posição de liderança de Washington corre riscos. Sérios riscos.

Enquanto Obama pode até acreditar que a Primavera Árabe representa o ímpeto que lhe faltava para forjar um acordo entre palestinos e israelenses, o pensamento de importantes lideranças regionais é bastante distinto. Há atores interessados em variações distintas sobre este mesmo tema. Irã, Turquia, Hamas e Hezbollah, por exemplo, pretendem capitalizar a nova realidade política sob outro ângulo. Aproveitam este momento para deixar claro que a Primavera Árabe marca também a independência regional em relação à chancela americana. E os palestinos são, como sempre, muito úteis a todos neste propósito.

O raciocínio vencedor desses atores – e digo vencedor porque ele passou a ser a diretriz dos acontecimentos práticos do momento – é pragmático: se os EUA não têm a postura desejada na mediação do processo de paz, então esta é a hora de contestar a própria posição dos EUA como principais mediadores. E, ainda mais além, se as negociações não têm avançado, basta abandoná-las. A Primavera Árabe passou a fenômeno político que legitima ações de indivíduos em conjunto na luta contra os regimes. Mesmo que Israel não seja o regime a governar formalmente os palestinos, é o próprio Estado de Israel a instituição que os palestinos pretendem tornar percebida internacionalmente como a responsável pela opressão. E, num exercício de lógica simplória – é esta que está dando as cartas atualmente –, para angariar simpatia e legitimidade internacionais, basta contestar o governo de Israel da mesma maneira como as populações dos demais países árabes têm feito domesticamente.

A situação americana é ainda mais delicada porque geopoliticamente este é um ótimo momento para relativizar a importância internacional da Casa Branca. É claro que os EUA ainda são a maior potência mundial, mas, ao contrário de outros tempos, há a clara ascensão política e econômica de outros Estados. Há crescente pulverização do poder. Neste ambiente onde novos atores se empenham em criar articulações para modificar o sistema internacional, diminuir a importância de Washington neste cenário específico não será visto, necessariamente, como um projeto unilateral palestino, mas como outro exemplo desta tendência.

Por isso, antes mesmo de Barack Obama chamar as partes a novas rodadas de negociação, os EUA precisam evitar perder o próprio protagonismo na mediação do conflito palestino-israelense.

terça-feira, 17 de maio de 2011

A nova estratégia palestina

Comentei ontem sobre a similaridade entre a invasão de militantes palestinos ao território israelense no domingo e a tentativa de furar o bloqueio a Gaza realizada no ano passado pelo navio turco Mavi Marmara. Ambos os eventos convergem para um ponto: a criação de fatos jornalísticos impactantes que isolam Israel. Do ponto de vista político e imaginário, as duas ações foram muito bem sucedidas.

E por uma razão muito simples: o enfrentamento entre civis supostamente desarmados – não era o caso do navio turco, mas foi esta a percepção midiática e popular sobre o ocorrido – e um dos exércitos mais poderosos do mundo é uma narrativa extremamente atraente. Ela remonta a tantas outras histórias de luta entre fracos e fortes, armados e desarmados, forças institucionais e marginalizados. É o tipo de roteiro que comove porque a simples desigualdade de forças já basta para, por si só, tocar num dos aspectos mais sensíveis a todos nós: a noção de injustiça.

E invocar injustiça é ponto fundamental para a construção de qualquer discurso poderoso. E por uma razão óbvia: como todos nós somos vítimas de injustiças (em maior ou menor grau, não importa), é natural que elas nos causem repulsa. A injustiça ultrapassa a discussão política. Ela sensibiliza, comove, choca. Ela supera argumentos práticos, geopolíticos, históricos. A injustiça é humana, emociona, e, por isso, é midiática. A militância palestina – e nisso incluo, claro, os muitos atores políticos interessadíssimos em resgatar a centralidade do conflito entre palestinos e israelenses no Oriente Médio – sabe disso e lançou mão desta poderosa narrativa neste domingo.

A expertise para a realização de operações deste tipo tende ao crescimento. Forjar embates entre palestinos desarmados e o exército israelense vai se tornar lugar-comum a partir de agora. Não importa que centenas de pessoas tenham invadido o território de Israel a partir de Lìbano e Síria. Restam poucas alternativas de vitória política para o governo de Jerusalém. Atentados terroristas realizados contra civis criaram nos anos 1990 a sensação de insegurança em Israel. Isto afetava o cotidiano do país. Mas a repetição de eventos que atingem os sentimentos humanitários mundiais é muito mais eficaz. Eles não apenas isolam Israel politicamente como também contribuem para o próprio questionamento da existência do país.

Uma das principais mensagens dos eventos deste domingo é simples: os manifestantes que invadiram a fronteira norte a partir da Síria deixaram claro que sequer reconhecem a legitimidade da própria fronteira. E aí é bastante curioso notar que, se há ganhos palestinos inquestionáveis a partir de tais ações, há também um grande furo neste estratégia. Como se sabe, o processo de paz está parado e o enviado americano à região, George Mitchell, deixou o cargo pela frustração de não ter conseguido avançar com o diálogo entre as partes. Certamente, este será um dos pontos discutidos no encontro desta semana entre o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e o presidente dos EUA, Barack Obama. Netanyahu já tem a resposta para tudo isso na ponta da língua: como negociar se os palestinos sequer reconhecem o direito do Estado de Israel existir?

Mas, neste mundo onde percepção vale muito mais que argumentação, o placar é favorável aos palestinos. A realização de eventos como o de domingo vai seguir em frente em parte também porque a invasão popular palestina ao território israelense é percebida como uma espécie de extensão da Primavera Árabe. Como o olhar sobre as manifestações pró-democracia é bastante positivo internacionalmente, os palestinos – apoiados por muitos atores igualmente interessados na deslegitimação de Israel – estão, digamos, seguindo tendência, criando sua própria adaptação dos movimentos populares em curso.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Eventos na fronteira com Síria e Líbano buscam recolocar conflito entre Israel e palestinos no foco do Oriente Médio

Após os incidentes violentos na fronteira norte de Israel neste domingo, há uma série de teorias que envolvem, principalmente, o atual momento regional. Quando centenas de palestinos tentaram entrar em território israelense a partir de Síria e Líbano, militares do Estado judeu reagiram. A confusão ainda é muito grande e há versões diferentes sobre o que teria ocorrido a partir de então. Segundo o governo de Jerusalém, os soldados reagiram à invasão. Ainda de acordo com este relato, o exército libanês também teria tentado impedir que militantes palestinos atravessassem a fronteira para o lado israelense. Claro que, agora, Beirute nega tudo isso e garante que somente as Forças de Defesa de Israel teriam atirado.

Foto: fronteira entre Israel e Síria

Toda esta manifestação aconteceu na data oficial que marca a criação do Estado de Israel, em 1948. O que os israelenses chamam de Dia da Independência os palestinos qualificam como o Dia da Catástrofe (Nakba, em árabe). Todos os anos há manifestações anti-Israel não apenas em Gaza e Cisjordânia, mas também em diversos países árabes. Neste ano, havia especial expectativa quanto à ocasião devido às manifestações pró-democracia que ainda acontecem na região.

Sob este ângulo, é inclusive interessante notar que, ao contrário do que se tornou lugar-comum quando o assunto é a situação política no Oriente Médio, o conflito árabe-israelense – e o conflito entre israelenses e palestinos, em particular – não ocupa lugar de destaque nas manifestações que ficaram conhecidas como Primavera Árabe.

No tabuleiro político regional, os episódios de violência deste domingo envolveram quatro atores importantes e com vasto histórico de conflitos: israelenses, libaneses, sírios e palestinos. No caso de Síria e Líbano, é fundamental deixar claro que, quando se trata da disputa fronteiriça com Israel, é muito remota a possibilidade de movimentações não apenas espontâneas mas também desconhecidas do governo de Damasco, no caso sírio, e do Hezbollah, no Líbano. Não porque ambos nutram qualquer expectativa de normalização das relações com Jerusalém, mas porque percebem como estratégicas atitudes de atrito. Em relação à Síria, inclusive, vale dizer que, apesar de reivindicar as Colinas de Golã (onde os protestos deste domingo aconteceram e por onde palestinos tentaram atravessar para o interior do Estado de Israel) e se manter em beligerância com o país desde sua fundação, curiosamente esta é a fronteira que menos causa problemas às autoridades israelenses.

Portanto, pode até ter sido este o caso, mas acho pouco provável que a tentativa de cruzar a fronteira com Israel a partir de seus territórios tenha sido totalmente surpreendente para sírios e libaneses. Existe a possibilidade real de o governo de Damasco ter criado esta situação não apenas para desviar o foco dos protestos internos que tomam seu território há dois meses, mas também enviar um recado claro ao Ocidente: Assad está disposto a tudo para se manter no poder, inclusive criar uma guerra com Israel.

Esta teoria é interessante na medida em que assombra americanos, europeus e seus aliados por algumas razões: primeiro porque remete à incapacidade de sustentar dois fronts simultâneos no combate às ditaduras árabes (Khadafi permanece no cargo de presidente líbio, mesmo depois da ofensiva lançada pela Otan); segundo porque poderia insuflar toda a região e precipitar um embate militar com Irã (que certamente usaria seus aliados Hamas e Hezbollah na fronteira com Israel); terceiro porque uma nova guerra no Oriente Médio poderia minar a percepção positiva dos americanos quanto à política externa de Barack Obama.

Por mais surpreendente que seja, os eventos deste domingo servem aos palestinos de maneira limitadíssima. Se por um lado unem Hamas e Fatah (Autoridade Palestina) durante o processo de reconciliação entre os grupos e criação de um governo de união nacional, por outro podem colocar as ambições políticas deste mesmo governo em perigo. Como se sabe, a intenção da Autoridade Palestina (AP) é declarar unilateralmente o Estado palestino em setembro deste ano. Quando militantes palestinos invadem Israel a partir de fronteiras que sequer serão parte de qualquer acordo final entre israelenses e a AP eles dão argumentos somente ao primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu – que, por sinal, vai estar em Washington nesta semana e fará bom uso dos acontecimentos durante encontro com o presidente americano.

O que aconteceu neste domingo me lembra o imbróglio em torno do navio Mavi Marmara, em maio do ano passado. Naquela ocasião, a embarcação turca que tentou furar o bloqueio a Gaza se transformou numa vitória política para o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, para o Hamas e também colocou em foco o controle exercido por Israel sobre o território. Os eventos similares ocorridos no norte de Israel podem ter sido planejados com o objetivo de devolver ao conflito israelense-palestino o protagonismo político perdido nesses últimos meses. Só não se sabe, até agora, quem está por trás disso.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Vingança da al-Qaeda: forma de capitalizar a morte de Bin Laden

O dia de hoje marca a primeira etapa da anunciada vingança da al-Qaeda pela morte de Osama Bin Laden. E nada mais satisfatório, para os terroristas, do que matar 80 civis inocentes. Cidadãos comuns paquistaneses, pobres e sem escolaridade, pagaram com as próprias vidas para vingar a operação americana no Paquistão. Isso faz algum sentido? Para mim, certamente não.

O atentado tem a marca da al-Qaeda. Ou melhor, não há qualquer garantia de que a rede terrorista é, de fato, responsável direta pelo ataque. É confuso mesmo, mas dá para explicar. Como citei muitas vezes – e isso foi amplamente repetido pela grande imprensa nos dias seguintes à morte de Bin Laden –, elementos novos introduzidos pela al-Qaeda são os conceitos de descentralização e franquia aplicados ao terrorismo. Ou seja, basta realizar um atentado e comunicar que se trata de ato cometido por este ou aquele motivo (alinhados à luta antiocidental, especialmente antiamericana, claro), e pronto. Ninguém do alto-comando do grupo vai contestar ou desmentir. A “marca” da al-Qaeda já está impressa.

A maneira de espalhar a marca é bastante simples. No entanto, as manifestações populares do mundo árabe desvalorizaram seu discurso. De uma forma bastante eficaz, os dirigentes do grupo conseguiram enxergar na morte de seu líder uma possibilidade de reinvenção. Se os EUA tiveram enorme trabalho para ter sucesso na operação, é porque a al-Qaeda continua a ser a maior opositora americana. Esta é a premissa na qual seus dirigentes se apoiam para restabelecer algum grau de relevância internacional. A rede terrorista precisa buscar novos aliados, correligionários, simpatizantes e, finalmente, financiadores.

A equação é simples: quanto mais democracia, processo político e liberdade de imprensa, menos a al-Qaeda tem razão de existir. O assassinato de Bin Laden – ou o martírio, como a al-Qaeda tem se referido ao assunto – deu um sopro de vida ao grupo – por mais contraditório que isso pareça. Além disso, um dos objetivos é jogar a opinião pública paquistanesa contra o próprio governo do país. O raciocínio equivocado funciona da seguinte maneira: se Islamabad não tivesse se aliado a Washington, nada disso estaria acontecendo. Ou seja, procura colocar ainda mais pressão no já cambaleante gabinete do presidente Ali Asif Zardari.

E tudo isso acontece justamente no dia em que militares paquistaneses começam a se explicar no parlamento sobre as falhas internas que permitiram a Bin Laden permanecer incógnito nas proximidades da capital do país por tanto tempo. Nunca é demais lembrar que este é o atentado que mais matou neste ano. Os ataques terroristas realizados no Paquistão já tiraram a vida de mais de 4.350 pessoas em quatro anos.

Caso Makled: trama internacional ignorada no Brasil

Ontem escrevi sobre as circunstâncias altamente explosivas que cercam o julgamento do traficante Walid Makled Garcia. O relatório do IISS que acusa suposto relacionamento entre Venezuela, Equador e Farc é mais um elemento de pressão sobre Caracas. Por mais que a publicação das informações tivesse potencial para perturbar a aproximação entre os governos colombiano e venezuelano, autoridades dos dois países negam o clima de tensão. Não se trata somente de massagear egos presidenciais, mas de aplicar o velho realismo discutido por aqui. Basta dizer que o comércio bilateral caiu de 7 bilhões de dólares, em 2008, para somente 2 bilhões de dólares em 2010. E isso não é bom para ninguém. Nem mesmo para a revolução bolivariana conduzida por Hugo Chávez.

E agora vale examinar a posição americana. Por mais que há pouco o presidente Barack Obama tenha feito um giro seletivo pela América Latina, seu primeiro mandato vai terminar com a certeza de que, sob seu comando, os EUA ignoraram completamente a região. A única fonte de preocupação parece ser mesmo as aspirações político-ideológicas venezuelanas e a manutenção do relacionamento especial com a Colômbia. Até aí, nada diferente de Bush. Há promessas de aproximação e intercâmbio, como o próprio Obama deixou claro no discurso realizado no Rio de Janeiro.

E Washington não tem se feito de rogada na replicação das opções políticas para a América Latina. O Caso de Walid Makled Garcia é circunstancial. Como escrevi ontem, o traficante diz ter informação importante sobre a cúpula governamental venezuelana. E elas interessam demais aos EUA. Para se ter ideia, suas acusações a autoridades passam pelo general-chefe do país, o chefe do comando operacional, o comandante da guarda nacional e o diretor do Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin). A segurança na corte de Justiça onde Garcia foi ouvido até esta quarta-feira foi reforçada (foto). Mas ele preferiu se manter em silêncio.

Suas acusações são gravíssimas e explicam por que os EUA fizeram de tudo para levá-lo. Em entrevista ao canal de TV espanhol Univisión, não deixou por menos e atirou sua metralhadora para todos os lados; segundo ele, autoridades da Venezuela facilitam o tráfico de drogas, disse que o país está envolvido na produção de cocaína junto com as Farc e afirmou que a milícia xiita libanesa Hezbollah atua livremente em território venezuelano e envia dinheiro aos correligionários no Oriente Médio. Garcia representa hoje nada menos do que o sonho de consumo americano para deslegitimar o governo de Hugo Chávez.

O traficante não é bobo. Se ele tem como provar as acusações é outra história. Mas fez tudo isso de forma a chamar ainda mais a atenção dos americanos porque sabe que estar preso nos EUA – com todos os privilégios de ser a principal arma viva contra Chávez – é muito melhor do que amargar um julgamento conduzido por parte do corpo oficial que acusa. Isso explica também porque optou por se manter em silêncio. O governo venezuelano, por sua vez, acusa o traficante de conspiração, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e assassinato do jornalista Orel Sambrano e do veterinário Francisco Larrazábal. Esses são detalhes de uma trama internacional que a grande imprensa brasileira preferiu ignorar.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Divulgação de documentos reacende polêmcia sobre relacionamento entre Venezuela, Equador e as Farc

Finalmente temos um fenômeno similar ao Wikileaks aqui pela América Latina. Ao contrário, da organização de Julian Assange, que assumidamente se coloca como opositora aos segredos dos governos, o londrino International Institute for Strategic Studies (IISS) declara não se posicionar sobre o assunto. Mas, a dor de cabeça causada pela publicação de um relatório de 240 páginas contendo revelações sobre o relacionamento da alta-cúpula governamental de Venezuela e Equador com as Farc torna absolutamente irrelevante a maneira como o instituto se coloca politicamente. A divulgação das informações colhidas na pesquisa já causou pânico, revolta e ansiedade aos envolvidos.

O ponto que certamente causa mais polêmica é a origem dos dados. Segundo o IISS, uma parte importante das revelações foi obtida a partir do laptop de Raúl Reyes, ex-dirigente das Farc morto em março de 2008 durante uma operação militar colombiana no Equador. Para quem não se recorda do episódio, a escalada dos acontecimentos naquele período quase detonou um conflito militar entre Colômbia, Equador e Venezuela (Caracas considerou a ação um atentado à soberania equatoriana ordenada pelos EUA).

Agora, o primeiro ponto de discussão é a autenticidade dos documentos. A contestação inicial gira em torno das acusações de que o computador de Raúl Reyes foi destruído durante o ataque, portanto não haveria nenhuma possibilidade de recuperar as informações.

Além dos óbvios problemas causados por esta divulgação, este é um momento importante para os interesses no continente. Colômbia e Venezuela passam por um período de reaproximação após os anos de desgaste entre Hugo Chávez e o ex-presidente colombiano Álvaro Uribe. E este estreitamento de relações já frutificou num fato isolado, mas com potencial explosivo. A captura do criminoso venezuelano Walid Makled Garcia (foto). Acusado por tráfico de drogas pelas autoridades venezuelanas, Garcia foi preso na Colômbia. O pedido de extradição foi feito pela Venezuela e – surpresa! – também pelos Estados Unidos. Estranho, certo?

O traficante está na Venezuela desde segunda-feira. Houve, no entanto, uma grande batalha jurídica e política entre Washington e Caracas por sua extradição. Mas por que um simples traficante causou tanto alvoroço? Porque Walid Makled Garcia diz ter provas contundentes do envolvimento de altos funcionários do país com o narcotráfico. O criminoso poderia dar início a discussões ainda mais profundas em Washington sobre novas formas de abordagem à Venezuela. É possível que o relacionamento entre Chávez e o atual presidente colombiano, Juan Manuel Santos, tenha melhorado a partir da extradição de Garcia. Não deixa de ser uma prova de boa vontade – nem que seja simplesmente um gesto que impede mais uma dor de cabeça ao presidente venezuelano.

A publicação das informações pelo IISS pode reacender um debate que já teve muitas idas e vindas nos EUA. Não acredito em planos de intervenção na América do Sul, mas em sanções direcionadas a Chávez. Passou despercebido por aqui, mas, no último dia 4, uma proposta de resolução foi apresentada à Câmara dos Representantes americana: a de incluir a Venezuela na lista de países que patrocinam o terrorismo. Ela segue agora para apreciação do Comitê de Política Externa.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Jogo de interesses internacionais no Paquistão

Curiosamente, a morte de Bin Laden deixou muito evidente a importância do Paquistão. E não apenas aos EUA, como poderia soar óbvio. Há muitos fatores que constituem esta centralidade: a posição estratégica do país, sua vulnerabilidade simultânea à posse de armamento nuclear e suas reservas naturais.

Por conta disso, há gente demais interessada no que vai acontecer daqui para frente. E com razão. Para compreender a realidade paquistanesa, é preciso, antes de tudo, destacar o peso do exército nacional. Desde os anos 1970, as forças armadas não são mero aparato de defesa, mas também atuam como guardiões do Estado. Não se pode chamar isso de confusão, mas de forma distinta de encarar os militares. Há uma simbiose entre eles , os cidadãos e o próprio governo. O exército assegura a prevalência do islã – fundamental à identidade nacional –, defende o Paquistão diante das ameaças da Índia (e todo o histórico de batalhas entre os países) e muitas vezes assume as rédeas do país.

O que acontece agora é muito complicado. Se para o Ocidente houve falhas dos serviços de inteligência e do exército quando nenhum dos aparatos de segurança identificou a presença de Bin Laden nas proximidades de Islamabad, os paquistaneses não compreendem as críticas pontualmente. Para eles, há um questionamento internacional da instituição mais importante do país que resume boa parte do sentimento e expectativas nacionais. E esta certamente não é uma discussão simples. Por isso o governo paquistanês tenta “democratizar” o erro, afirmando que o desconhecimento quanto ao paradeiro do terrorista mais procurado do mundo reflete um problema mundial, não exclusivo do Paquistão.

Ao mesmo tempo, o foco sobre Islamabad acende alertas regionais importantes. A China, por exemplo, teme que eventual decadência do Estado paquistanês e ascensão dos fundamentalistas ameacem as rotas energéticas da Ásia Central. A Rússia está aflita pelo mesmo motivo, mas também porque considera a região ainda sua área de influência (nada mais típico dos egos superinflados de Medvedev e Putin). Curiosamente, esta percepção russa acabou por colocar Moscou ao lado da Otan (e todo mundo sabe como o país se contrapõe à organização ainda hoje) por temer que a retirada das tropas no Afeganistão transforme novamente a região num caos de oportunidade para o recrudescimento do fundamentalismo.

Enquanto isso, os EUA têm motivos reais de preocupação. Washington pode pressionar o Paquistão. Mas somente até certo ponto. Não há qualquer alternativa viável às rotas paquistanesas que fornecem suprimentos aos soldados estacionados no Afeganistão. Houve tantos gestos, diretrizes, ordens e movimentações nos últimos dez anos por conta da guerra ao terror que todos os países se tornaram diretamente engajados e articulados a interesses mútuos. Quem poderia imaginar que a Rússia estaria do mesmo lado da Otan? Ou que China e EUA partilhassem a mesma preocupação sobre o futuro do Paquistão?

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Paquistão: a pedra no sapato de Obama

Bin Laden é história. No entanto, as consequências de sua morte ainda devem influenciar decisões e o cenário mundial por algum tempo. Certamente, o Paquistão é o ator regional mais exposto devido ao episódio de acobertamento do terrorista em seu território. De uma maneira ou outra, as autoridades paquistanesas toleraram a presença do líder da al-Qaeda. Por isso, há possibilidade não apenas de movimentações dos outros atores regionais, mas também de eventual pressão americana sobre o governo de Islamabad.

Em períodos eleitorais, as demandas populares se tornam ainda mais urgentes. Nos EUA, a situação fica mais complicada: de fato, o país agora vive algum relaxamento, mas também o início da campanha presidencial. Com a morte de Bin Laden neste momento estratégico – acrescido do potencial de comoção pelos dez anos dos atentados mais graves cometidos em solo americano -, restam poucas alternativas ao partido Republicano para contestar a atuação de Obama na guerra contra o terrorismo. E afirmo isso porque pesquisa do instituto Gallup mostra que 54% da população acreditam que agora o país está mais seguro em relação a ameaças terroristas. Há muito campo de insatisfação interna nos EUA, mas não seria prudente atacar a política externa do atual presidente neste momento específico.

Uma alternativa viável de contestar a atuação internacional de Obama é mirar no Paquistão. E, sem a menor dúvida, há muitos republicanos dispostos a questionar a ajuda de 18 bilhões de dólares destinada por Washington a Islamabad desde 2001. E aí não importa que o mandato de Bush tenha se estendido até 2008. O que vale é a percepção, uma vez que ela é determinante na escolha dos eleitores. E por mais equivocada que seja, a equação é bastante simplória: a Casa Branca transfere dinheiro – muito dinheiro – a um governo que acobertou Osama Bin Laden. E não é preciso dizer como este discurso é poderoso, principalmente num período de austeridade econômica.
Enquanto a América perde dinheiro, Obama entrega o resultado do trabalho americano – os impostos – a Estados falidos. É claro que o Paquistão é o país que mais prendeu terroristas e membros do Talibã. É também o lugar onde mais vidas se perderam devido ao terrorismo. Mas certamente o partido Republicano irá omitir tais informações durante a campanha. Principalmente porque contestar a maneira como o governo americano gasta os impostos atende muito bem ao discurso do movimento político mais conservador dos EUA: o Tea Party. Se a barulhenta ala Republicana impede o presidente americano de estender a cobertura de saúde aos cidadãos do país, o que dirá do repasse de recursos a um lugar distante e ignorado pela maior parte da população como o Paquistão?

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Al-Qaeda admite morte de Bin Laden e opta por rumo alternativo

Numa semana repleta de acontecimentos que mudam cenários importantes, devo confessar que minhas capacidades de previsão do futuro foram postas à prova. E o resultado deste teste involuntário é ambíguo. Acertei em 50% dos casos. Como interpretar esses números segue o princípio do copo cheio e do copo vazio – ou seja, cada um enxerga como quiser –, acredito que acertei onde deveria ter acertado e errei no que poderia errar. E começo com meu palpite equivocado: ao contrário do que escrevi, a al-Qaeda admitiu a morte de Osama Bin Laden.

E não há nenhum problema quanto a isso. Até porque, devo reafirmar o que é óbvio, não escrevo esses textos a partir de chutes, mas de tendências, comportamentos, análises. Seria natural que a rede terrorista insistisse em teorias conspiratórias para não acusar o golpe. Mas preferiu seguir outro caminho igualmente possível: o do martírio. Quer elevar a moral de simpatizantes e membros incentivando-os a vingar a morte de Bin Laden. Nada improvável.

E aí devo dizer que esta leitura e a outra parte do comunicado do grupo – talvez até mais importante que simplesmente admitir o sucesso da operação americana no Paquistão – apresentam mais um aspecto que tenho ressaltado nesses dias: a tendência de a al-Qaeda mudar para continuar.

“Os Estados Unidos e seu povo jamais gozarão da segurança enquanto nosso povo na Palestina não usufruir dela”, diz a declaração. Pronto, aí está. A rede terrorista muda seu discurso a partir da leitura correta do novo cenário geopolítico regional. Simplesmente, atacar americanos enquanto as manifestações populares nos países árabes deixam claro que os cidadãos estão mais preocupados com assuntos domésticos não mobiliza mais. No entanto, se a luta da al-Qaeda passa a explicitamente evidenciar um vínculo com a questão palestina, existe uma chance de o grupo conseguir de volta parte do prestígio perdido, da relevância política deixada de lado nesses tempos.

A atitude da al-Qaeda foi relativamente simples: transformar a questão palestina – até então apenas uma das muitas reivindicações na lista de acusações ao Ocidente – em protagonista ideológica do grupo. De semimarginalizado, o conflito entre israelenses e palestinos passou a ponto central da agenda. Ao longo de toda a semana, manifestei a possibilidade de que isso poderia acontecer. Agora, a al-Qaeda confirma esta hipótese.

E, neste momento em que o governo Obama ainda se refestela sobre os louros, é bem capaz de a rede terrorista preparar alguma operação contra alvos israelenses ou judaicos. E não apenas para vingar a morte de Bin Laden, mas, principalmente, para deixar claro que a mudança de atitude em relação aos palestinos deve ser levada a sério.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Governo palestino de união nacional pode representar oportunidade de mudança

É possível que a fixação internacional pelo conflito entre Israel e os palestinos retorne com força; primeiro, por conta das tentativas crônicas de encontrar paralelos com as reivindicações da al-Qaeda. Como escrevi ontem, é possível mesmo que a própria rede terrorista passe a ser mais eloquente em relação ao assunto, num esforço de renovação após a morte de seu líder e retomada da popularidade perdida. Mais importante ainda é a reconciliação assinada entre os grupos palestinos Fatah e Hamas, que, na teoria, dariam fim às rivalidades bastante acentuadas nos últimos quatro anos.

 
Antes mesmo de entrar em vigor, as discussões e acusações mútuas deixam claro como será difícil superar os acontecimentos recentes: cerca de 400 membros ou simpatizantes do Hamas permanecem em prisões controladas pela Autoridade Palestina; por sua vez, o Fatah reclama que autoridades do movimento islâmico teriam impedido alguns dos membros do alto-escalão do grupo de deixar Gaza.

Certamente, essas pequenas divergências podem se transformar em problemas maiores, uma vez que elas dão ao menos um sinal importante sobre o distanciamento prático e retórico entre eles. O Fatah, majoritário na burocracia da AP, tem se transformado num ator moderado, disposto mesmo a negociar com Israel e atender às demandas das potências internacionais por pragmatismo na busca pela resolução do conflito. Nos últimos quatro anos, o Fatah conseguiu, na Cisjordânia, que suas próprias forças de seguranças prendessem terroristas e impedissem a realização de atentados contra israelenses. O grupo entendeu que este seria um passo importante que o credenciaria a fazer exigências durante as negociações.

Agora, por mais que tenham se unido novamente, as facções palestinas ainda discordam profundamente em assuntos fundamentais. Por exemplo, o Hamas continua a se recusar a reconhecer a própria existência do Estado de Israel. Por isso, há duas formas de visão sobre o governo de união nacional. A mais óbvia é acreditar que a inclusão do Hamas representa uma ameaça a qualquer tentativa de negociação. Esta é a posição do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu.

Mas há também uma leitura menos estreita. Penso que esta pode ser uma possibilidade de engajar o Hamas no processo. É claro que não será de um dia para o outro que o grupo irá abandonar seu discurso terrorista. Mas é preciso aproveitar este momento para tentar. Até porque, é preciso deixar claro, o Hamas decidiu correr em busca do diálogo com o Fatah porque está enfraquecido politicamente.

A Síria, país que abriga vários membros do Hamas, está em baixa. Assad corre risco de perder o poder e, claro, toda esta mudança interna pode respingar nos líderes palestinos que vivem por lá. Mais ainda, a população de Gaza tem sido afetada positivamente pelas manifestações democráticas no mundo árabe. E, claro, elas têm amigos e parentes que vivem na Cisjordânia. Ninguém comenta muito isso, mas as condições de vida no território controlado pelo Fatah têm melhorado consideravelmente. Basta dizer que o crescimento econômico está na casa dos 9%.

Apesar de Netanyahu acreditar que a inclusão do Hamas é uma ameaça ao processo de paz, esta não é a posição unânime do governo de Israel. Documentos sigilosos publicados pelo jornal israelense Ha’aretz mostram que o Ministério das Relações Exteriores admite que esta pode ser uma possibilidade de “mudança real no contexto palestino”. Possivelmente, pelo mesmo motivo que eu penso. Até porque, vale lembrar que o processo de paz andou muito pouco nesses quatro anos de “divórcio” entre Hamas e Fatah. Se houve tranquilidade na Cisjordânia controlada pela Autoridade Palestina, Israel e Hamas se enfrentaram em Gaza. Incluir o movimento islâmico no corpo político palestino pode ser uma forma de forçar não apenas pragmatismo, mas também responsabilidade institucional por seus atos.