quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Os judeus, a Europa e o Holocausto

Ao longo da cobertura dispensada às sempre provocativas declarações do agora ex-presidente iraniano sobre o Holocausto, senti falta da elaboração de uma análise acerca do ponto fundamental do incômodo que este assunto causa ao Ocidente e à Europa em particular. Os judeus ficavam revoltados – com razão – quando Ahmadinejad questionava o Holocausto, o que soava ainda mais absurdo porque não deixou de fazê-lo nem mesmo na própria ONU (organização que nasceu dos escombros da Segunda Guerra Mundial).  

Do ponto de vista europeu institucional, a negação do Holocausto pode ser interpretada também como a negação explícita de parte fundamental da história do continente. A concretização do plano de genocídio em massa dos judeus foi realizada por europeus em solo europeu e moldou a identidade de toda a Europa tal como a conhecemos hoje. 

E não somente isso: o próprio Holocausto não foi um fenômeno pontual da história europeia, mas a consequência perversa de 20 séculos de perseguições e assassinatos em massa de judeus europeus. Infelizmente, muitas vezes o contexto acaba esquecido diante da necessidade muito pontual da informação jornalística, mas o ódio de hitler aos judeus não era somente uma aberração fruto da mente doentia do então jovem austríaco que dedicou seu livro “Mein Kampf” a, entre outros assuntos, explicitar sua obsessão pelo povo judeu; o antissemitismo era um traço da identidade europeia bastante comum. A dramática concretização do plano de pôr fim aos judeus da Europa acompanhou a trajetória da construção do continente por 20 séculos, como escrevi. O Holocausto não aconteceu onde aconteceu por acaso. 

Ainda mais perverso é o fato de o genocídio ter ocorrido na Europa pós-iluminista, quando boa parte dos países vivia o momento geracional posterior ao que consideravam como o período de maior esclarecimento intelectual. A decisão e execução do plano de acabar com os judeus europeus foram realizadas por pessoas que estavam longe da barbárie, mas que se debruçaram disciplinadamente sobre cálculos e métodos para dar cabo do genocídio de forma complexa e eficiente. 

Quando Mahmoud Ahmadinejad negava o Holocausto ou relativizava sua importância, também questionava, além da história dos judeus em si, a constituição identitária da Europa.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Caos na Líbia é um presente do Ocidente

O texto de hoje é um complemento ao da semana passada. Um complemento rápido, por sinal. Escrevi na segunda-feira sobre as ações militares americanas em menor escala na África. Se isso vai se tornar uma tendência daqui para frente, ninguém pode afirmar. Mas o que se pode concluir, especificamente, é que a Líbia está a caminho de ser mais uma Somália, mais um Estado falido.

Abu Anas al-Libi, suspeito de participação dos ataques terroristas às embaixadas americanas no Quênia e Na Tanzânia, em 1998, vivia tranquilamente em Trípoli, antes de ser sequestrado por um comando americano no último dia 5. Este fato por si só já seria o bastante para questionar boa parte da abordagem político-militar ocidental ao país. 

Voltemos um pouco no tempo: uma análise estritamente pragmática mostra que, nos últimos anos, o ex-líder e ditador Muammar Kadafi caminhava rumo a uma espécie de “conciliação” silenciosa. Evidentemente, Kadafi não era o tipo de pessoa admirável, mas não representava mais qualquer ameaça. Estava mais para uma caricatura de si mesmo. 

Na esteira dos movimentos populares pró-democracia, a decisão ocidental de promover os ataques aéreos na Líbia foi tomada como forma de se posicionar ao lado da opinião pública árabe sem a necessidade de se indispor constrangedora e contraditoriamente contra aliados históricos como o então presidente egípcio Hosni Mubarak, por exemplo. Derrubar Kadafi era uma tentativa de limpar a barra com a população árabe nas ruas do Egito e da Tunísia, principalmente, sem arriscar maiores complicações geopolíticas. Kadafi foi o “bêbado” eleito para a briga. 

Dois anos depois, o erro está evidenciado. A Líbia é hoje um país caótico onde cerca de 200 mil milicianos se infiltraram em todas as esferas e estão dispostos a evitar a soberania de um governo central. Inclusive a ponto de sequestrar o primeiro-ministro Ali Zeidan. A Líbia é hoje a mais importante hospedaria da al-Qaeda no norte da África, a poucos quilômetros da Europa, olha só. Segundo o próprio ministro da Justiça, “o país está a caminho de se transformar num Estado falido”. Se a campanha militar ocidental se orgulha de não ter colocado soldados em solo líbio em 2011, não pode se orgulhar de nada mais.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Os significados dos ataques americanos ao terrorismo na África

Neste final de semana, forças especiais americanas foram responsáveis por duas importantes ações no continente africano cujas consequências na chamada “Guerra ao Terror” exponho brevemente neste post. Na Líbia, um comando dos EUA teve sucesso ao capturar Abu Anas al-Libi, acusado de participação nos atentados às embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia, em 1998; na Somália, uma equipe não conseguiu prender um dos líderes do al-Shabaab, grupo extremista responsável recentemente pelo ataque ao shopping center em Nairóbi. 

Um dos aspectos mais interessantes é que ambas as ações tiveram como objetivo prender, não matar, dois inimigos declarados dos EUA. Só isso mostra uma tremenda mudança; a cúpula do governo em Washington deixa muito claro que, em curto prazo, sabe que não será possível acabar com o terrorismo. Se durante a primeira década do século 21 assistimos a duas guerras contra o terror, agora há uma mudança drástica: os EUA adotam ataques pontuais cujos objetivos são coletar informações sobre o modo de operação de grupos terroristas. 

Abertamente, deputados e fontes do governo americano tratam al-Libi como uma “mina de ouro”. Ele pode ser o caminho para mais informações e a compreensão do raciocínio e da forma de atuação de grupos radicais. E aí chego a outra conclusão importante e relativamente nova: se até bem pouco tempo atrás havia a tentativa de reduzir a importância de grupos como a al-Qaeda, por exemplo, e a alegação de que este tipo de inimigo agonizava, agora a prática é exatamente outra. Não apenas este tipo de oponente está mais vivo do que nunca, mas a forma de combate deve levar em conta que é preciso considerar enfrentamentos em longo prazo. 

Ou seja, o próprio conceito de “Guerra ao Terror” mudou. A expressão criada no governo George W. Bush a partir dos atentados de 11 de Setembro foi revista. Durante pouco mais de dez anos duas guerras foram travadas com a ilusão de que elas seriam capazes de pôr fim ao terrorismo global e livrar os americanos deste tipo de ameaça. O governo Obama admite, na prática, a ineficácia da estratégia adotada durante este período e deixa muito claro que, de agora em diante, uma nova forma de olhar e combater o terrorismo está começando. A primeira década de luta entre os EUA e o fundamentalismo islâmico teve fim neste final de semana.