segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Obama e Cuba: o jogando com a coerência

No processo de reconciliação entre Cuba e EUA, Obama usou toda a sua capacidade de análise política – sua sagacidade estava em baixa, pelo menos em relação à política internacional. Ao anunciar publicamente a retomada de relações com Havana, o presidente ainda aproveitou para expor o Congresso para o mundo todo. Lembrando que este Congresso se opõe a ele e é um dos principais responsáveis pelos entraves internos. 

O foco do problema está na Câmara, onde um dos mais ferrenhos opositores à presidência, o republicano John Boehner, exerce liderança definidamente anti-Obama. E o presidente americano, ao anunciar ao mundo a conquista mais importante de seu mandato, fez questão de reforçar: o embargo é lei e, como tal, só pode ser derrubada pelo Congresso. Está dado o recado a quem quiser juntar as peças. De certa maneira também, Obama indica os caminhos que serão seguidos pelo seu sucessor, uma corrida em aberto mas cujo concorrente possivelmente será apadrinhado do atual presidente. Obama já é um nome forte na história do país e também nas fileiras do partido Democrata. Quem quer que venha a sucedê-lo no partido (possivelmente Hillary Clinton) irá assumir o compromisso de dar continuidade à política de abertura com Cuba. E os mesmos embates com o Congresso devem continuar. Principalmente se a configuração Republicana da Câmara se mantiver. 

Para além desta questão, a vitória diplomática de Obama é também uma conquista da coerência – algo raro na política, certamente raro na política internacional, mas que todo líder político tenta usar a seu favor. O jornalista James Fallows, do Atlantic, consegue resumir a grande contradição existente no impasse entre EUA e Cuba com o seguinte argumento:

“Se sucessivas administrações Republicanas e Democratas puderam enxergar o mérito em tentar interagir (e não excluir) com um Estado de partido único, repressivo e comunista – mesmo que este Estado tenha quatro vezes mais cidadãos do que os EUA, além de capacidade nuclear e adversário regional de vários aliados americanos – quanto é óbvia a situação de uma pequena ilha localizada à distância do olhar do território americano e que certamente irá cair diante da influência cultural e econômica dos EUA se lhe for dada a oportunidade?”. 

Fallows se refere ao que está na cara de todo mundo: a ambiguidade do discurso oficial no contraste que marca há décadas a distinta relação entre EUA e China. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Cuba e EUA: o dia em que Obama voltou a ser Obama

Ao anunciar a retomada de relações formais com Cuba, Obama reviveu seus dias mais gloriosos – aqueles esquecidos no passado recente de 2008 quando se tornou um fenômeno popolítico (ele merece o neologismo). 

Este é Barack Obama que lotou as ruas de Berlim, na Alemanha, no histórico discurso de julho de 2008. O presidente americano era a esperança de mudança, principalmente na política externa americana. Mas, desde que assumiu o cargo em janeiro de 2009, não conseguiu imprimir sua marca pessoal. Gosto sempre de fazer a ressalva da gravidade dos problemas que encarou. Como esta semana trágica mostrou, é muito mais complicado encontrar saídas quando existe um abismo profundo na maneira de interpretar o mundo. Como deixar o Iraque e o Afeganistão? Como combater os talibãs? Como encerrar de maneira lógica a Guerra ao Terror? 

Ainda não foi possível encontrar essas respostas. E mesmo as tentativas de Obama de ser pragmático não foram eficientes. No Oriente Médio, ainda não foi capaz de articular a retomada de negociações entre israelenses e palestinos. Pode parecer que já faz tempo, mas Washington (e, para ser justo, ninguém no Ocidente) não conseguiu ser parte do processo de transformação prometida pela Primavera Árabe que de fato não aconteceu. Muito pelo contrário. Se em 2011 o mundo foi surpreendido com a possibilidade de queda de ditaduras históricas e mudança de paradigmas, agora a realidade local é completamente diferente daqueles dias que se pretendiam transformadores. O Oriente Médio enfrenta os dilemas impostos pelo Estado Islâmico. A Primavera Árabe soa agora como um sonho do passado distante. 

Diante de tudo isso, Obama fez o óbvio. E fez certo, claro. Sua possibilidade de conseguir um feito que será lembrado para sempre estava logo ali ao lado. É muito mais fácil negociar com a racionalidade de Cuba do que continuar a tentar encontrar um caminho no Oriente Médio. Demorou quase seis anos, mas este dia chegou. O dia em que Barack Obama deixou sua marca na política externa americana e na História mundial.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O cenário mais amplo do atentado que chocou o mundo

O atentado suicida a uma escola no Paquistão foi um dos eventos mais chocantes do ano. Ele está inserido na disputa interna paquistanesa e, principalmente, no confronto entre o governo central em Islamabad e o chamado Talibã paquistanês, um arremedo de diversos grupos terroristas cujo principal objetivo é derrubar o governo e estabelecer a sharia, a lei islâmica. Assim como os acontecimentos no Oriente Médio, as disputas no limite entre o próprio Oriente Médio e a o Sudeste Asiático ganham proporções que extrapolam fronteiras nacionais. 

No caso específico do Talibã – e de sua “filial” no Paquistão –, os confrontos envolvendo os interesses do grupo no Paquistão têm a ver também com a Guerra ao Terror iniciada na sequência dos atentados de 11 de Setembro de 2001. Portanto, além do governo paquistanês, há também outros atores envolvidos, os EUA, por exemplo, além da ONU e dos demais países que passaram a combater o Talibã afegão. 

A região de fronteira entre Paquistão e Afeganistão é perene e extensa. Além da dificuldade de policiamento e controle de quem transita entre os dois países, o Talibã paquistanês tem bases de treinamento instaladas nesta área. Outros elementos para além da oposição entre Talibã e o governo de Islamabad são os fatores regionais mais amplos, como a oposição histórica entre Índia e Paquistão. Especificamente sobre as atitudes de Islamabad em relação ao Talibã paquistanês, vale lembrar que a pressão governamental sobre o grupo aumentaram após o atentado terrorista realizado em junho deste ano no aeroporto de Karachi, a maior cidade do país e principal centro econômico. As ações do exército do Paquistão se concentram no chamado Waziristão do Norte (veja a imagem acima). 

No próximo texto, vou publicar uma análise de uma jornalista paquistanesa.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A lógica da barbárie

Não há lógica na barbárie. A barbárie não precisa de explicações ou justificativas, mas de oposição e condenação da comunidade internacional. Os acontecimentos na escola paquistanesa são um exemplo de como o mundo precisa estar atento ao radicalismo. O fundamentalismo islâmico do Talibã e tudo o que ele representa ainda é uma ameaça real. Até para as crianças do Paquistão

O blog é de análise e continuarei a fazer isso. Mas o atentado do Talibã a uma escola é o tipo de evento que choca pela simples razão de ter acontecido. Por que mais de cem crianças que estavam estudando viraram alvo? Para o Talibã tudo se justifica:

“Nossos suicidas entraram na escola. É a vingança pela ofensiva do exército (paquistanês) no Waziristão do Norte”. Essas são as palavras do porta-voz do Talibã. Pois é. O Talibã entende que existe explicação capaz de justificar um atentado suicida dentro de uma escola. 

Nada mais a dizer.

O próximo texto vai ter mais análise. Este é só um lamento. 

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Ataque na Austrália apresenta a nova face do terrorismo internacional

O sequestro num café australiano é um ato terrorista. Na verdade, muito mais do que a reprodução do imaginário sobre o terrorismo, é um dos capítulos iniciais de eventos que devem se desdobrar de agora em diante; quando os atentados de 11 de Setembro inauguraram o século 21, a humanidade foi exposta ao terrorismo em sua configuração clássica: grandes grupos e suas células que passam meses ou anos em preparação, estudos e levantamento de recursos para a realização de ataques. O novo terror é exatamente o oposto disso. 

E o evento na Austrália é importante por mostrar ao restante do planeta esta modificação das ações terroristas. Se o início do século 21 apresentou o terrorismo em sua maneira mais organizada, a metade final de 2014 apresenta sua nova versão: a individualização do terrorismo, o que chamo de “terrorismo por inspiração”. O sujeito que sequestrou os clientes e funcionários do café australiano não é um membro formal do Estado Islâmico (também conhecido como ISIS), mas um identificado com sua ideologia e métodos. Certamente tem acompanhado a evolução do grupo desde seu rompimento com a al-Qaeda, certamente é atingido por suas mensagens no Twitter, certamente assiste aos vídeos de decapitações de ocidentais no Youtube. O modo de operação é muito similar ao de outro ataque individual ocorrido em outubro no Canadá. Na ocasião, um homem decidiu por conta própria atacar um soldado canadense em guarda num memorial de guerra e depois invadiu o parlamento. Acabou morto por um oficial. 

Os casos são semelhantes e apresentam um novo momento do jogo internacional. A configuração em que qualquer um identificado com o fundamentalismo islâmico age por conta própria e consegue usar praticamente qualquer objeto comum como arma para matar pessoas apresenta desafios complexos às autoridades. Na prática, não há como impedir a realização de ataques desta natureza. E tudo isso mostra como a estratégia específica do IS tem funcionado. Vale lembrar a declaração de Abu Muhammad al-Adnani que se encaixa perfeitamente nos eventos ocorridos na Austrália: 

“Se você puder matar um descrente americano ou europeu (...) ou australiano ou canadense ou qualquer outro dos descrentes em guerra – incluindo os cidadãos dos países-membros da coalizão contra o IS –, então confie em Alá e o mate de qualquer maneira (possível)”. 

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A grande chance de Obama II

Ainda sobre as dificuldades de Obama, vale lembrar a divulgação do relatório sobre a prática de tortura produzido pelo Comitê de Inteligência do Senado americano. A investigação confirma que muitos presos foram torturados de forma a revelar o que sabiam sobre possíveis ataques aos EUA. Isso já não era segredo, mas certamente é mais um infortúnio que se soma a tantos com os quais a atual administração tem de lidar. 

Como escrevi no texto anterior, a questão envolvendo a violência de policiais brancos contra cidadãos negros é um assunto especialmente caro a Obama – e ao imaginário que ele mesmo construiu diante do público, além da questão óbvia que diz respeito à própria identidade de Barack Obama como pessoa comum. Da mesma maneira, qualquer assunto relacionado a direitos humanos – e, claro, à transgressão desses direitos por autoridades regulares dos EUA – tem igual poder de mobilizar a presidência. 

Obama é o vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 2009 (mais pelo o que ele representava e pelo o que se esperava dele), durante a primeira corrida presidencial viajou o mundo e lotou estádios. Fez discursos que deixaram claro que, se eleito, representaria uma importante mudança de paradigma no cenário político americano e, claro, na evidente importância que um presidente americano com valores distintos a seu antecessor teria em relação a todo o mundo. Obama prometeu em campanha que fecharia Guantánamo – o que não aconteceu até agora. 

É importante dizer que a simples produção desta relatório já é uma marca relevante, um sinal de amadurecimento democrático. Documentos como este – em certa medida, como o relatório da Comissão da Verdade aqui no Brasil – mostram independência dos poderes. O governo investigando o governo. É parte do jogo democrático. Mas Obama vai precisar tomar esses dois grandes problemas para si. Porque se tratam de dois de seus grandes valores (pessoais e políticos). E transigir diante dessas duas grandes infrações não pode uma possibilidade. Não quando Obama é o presidente. 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A grande chance de Obama

Este tampouco é um bom ano aos EUA. Sob o ponto de vista de sua política internacional, o presidente Obama ainda não conseguiu apresentar resultados relevantes a ponto de ser lembrado como um líder que conduziu o país em suas empreitadas internacionais de maneira gloriosa. Por ora, sua gestão não pode ser considerada como um marco para as próximas gerações. 

É preciso olhar em perspectiva para ser justo com Obama; é dele a responsabilidade de levar os EUA a gradativamente se recuperar da crise econômica. E ele tem conseguido obter algum sucesso nesta tarefa para lá de complicada. O presidente americano também tem recebido desafios muito complexos (certamente muito mais complexos do que enfrentou o também democrata Bill Clinton nos anos 1990, por exemplo). Quando Obama parece disponível para se desvencilhar dos problemas internos e se dedicar a resolver os impasses internacionais americanos (Iraque e Afeganistão, para ser mais específico), eis que surge o Estado Islâmico, uma espécie de mutação genética do terrorismo fundamentalista que inaugurou o século 21. 

Quando Obama começa a se preparar para entender o Estado Islâmico e suas implicações no Oriente Médio, foi surpreendido por eventos catastróficos em casa, eventos para os quais Obama se preparou durante toda a sua vida: os assassinatos de cidadãos negros por policiais brancos que mobilizam a opinião pública de seu país. É neste momento que o líder admirado nacionalmente e que venceu duas eleições em sequência deveria se manifestar. Obama se preparou para isso e é a pessoa certa no cargo certo. Esta é a hora em que o presidente deveria dar o grande salto e promover um amplo debate nacional sobre racismo e violência policial contra a população negra. Se não o fizer, perderá uma chance única de salvar seu mandato e dar sentido ao fenômeno que sua primeira candidatura provocou em 2008. 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

As eleições em Israel e os desafios do parlamentarismo

As eleições em Israel acontecerão em 17 de março. Como de costume, eleições em Israel provocam interesse internacional, ainda mais após os acontecimentos deste ano de 2014. Ao contrário do Brasil, Israel segue um sistema parlamentarista, o que implica estar sujeito a muitas idas e vindas. Na prática, se os partidos que compõem a coalizão do governo decidem abandoná-lo, novas eleições precisam ser convocadas. 

O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu dissolveu a coalizão que o sustentava e novas eleições ao parlamento serão realizadas. O líder do bloco partidário que mais receber votos se tornará o próximo primeiro-ministro. Até aí, tudo bem. O problema é que no parlamentarismo os membros do parlamento tem de fato o poder de derrubar o governo. Ainda não cheguei a conclusões sobre o melhor sistema: este em que os membros do congresso podem causar reviravoltas políticas a qualquer tempo e forçar a convocação de eleições (não foi o caso desta vez em Israel, mas poderia ter sido, como em tantas outras ocasiões) ou o presidencialismo em que o presidente exerce seu mandato durante todo o período para o qual foi eleito, mas cujo congresso pode paralisar o governo na prática (os nossos nobres parlamentares por aqui usam o termo “trancar a pauta” para se referir a este situação em que medidas provisórias não são votadas). 

Em termos comparativos, vale dizer que este é o décimo-nono Knesset, ou seja, a décima-nona configuração parlamentar israelense. Isso num país cuja refundação aconteceu há somente 66 anos. A média simples é de um novo parlamento a cada pouco mais de três anos, sendo que seus membros são eleitos para mandatos de quatro anos de duração.

Ao longo dos próximos textos tentarei apresentar uma visão mais ampla sobre o quadro político israelense que está em formação para as eleições de março de 2015. 

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Estado judaico e democrático

Este é um momento delicado para Israel. Aliás, este é um dos piores anos de Israel desde a declaração de independência, em 1948. A guerra em Gaza, o grande número de mortos, a solução que interrompeu momentaneamente o conflito, mas fortaleceu o Hamas e não a Autoridade Palestina (AP), o crescimento do antissemitismo, o novo modelo de atentados em Jerusalém e, finalmente, a tentativa do primeiro-ministro Netanyahu de aprovar a lei do Estado Nação Judaico, que reafirma o caráter judaico de Israel.

Em Israel as questões normalmente extrapolam fronteiras. Mesmo sendo um assunto nacional, as deliberações transbordam para o Oriente Médio e para o mundo. A lei em si é desnecessária, na medida em que a declaração de independência já estabelece Israel como um Estado judeu e retomar este assunto agora, meses após a guerra em Gaza, no momento de maior tensão em Jerusalém na década e, acima de tudo, com o processo de paz estacionado, causa estranheza. Há temores de que a ideia seja relativizar a natureza democrática de Israel, justamente a característica que diferencia de forma substancial o país de todos os demais Estados nacionais da região. 

Sobrepor o caráter judaico ao democrático é desestabilizar os pilares sobre os quais Israel se sustenta. O país tem cerca de 75% de população judaica e está fundado sobre os princípios judaicos. Existe uma preocupação interna em Israel sobre a chamada balança demográfica, ou seja, a possibilidade de Israel conseguir se manter em longo prazo como um Estado judeu – um país onde os judeus sejam maioria. Esta possibilidade não vai ser alcançada por qualquer lei, mas por meio dos fatos reais. A única chance de isso acontecer é de conhecimento de todo mundo: um acordo de paz justo que permita aos palestinos constituir seu Estado na Cisjordânia e em Gaza. Israel deixou Gaza em 2005, mas é preciso também sair da Cisjordânia, onde vivem 2,6 milhões de palestinos. Um acordo de paz sério é a única maneira de Israel permanecer como em sua declaração de independência: um Estado judaico e democrático.