segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A inteligência dos EUA a partir da guerra na Líbia

A política externa brasileira se assemelha a da maior parte dos países – para não dizer de todos os países. Escrevi os dois últimos posts como crítica a ações pontuais do Itamaraty. E o fiz questionando, principalmente, a coerência do posicionamento em relação aos acontecimentos na Líbia. Para deixar claro, minha surpresa diz respeito somente aos valores morais que caminham ao lado da falta de atitude atual. Sempre reforço a característica realista da política internacional e, por isso, reconheço os objetivos das estratégias brasileiras colocadas em prática de forma bastante evidente durante o governo passado. A grande incoerência desses dias não se baseia tão somente no na falta de firmeza, mas também na aparente incongruência com a diplomacia adotada durante toda a administração Lula.

Foto: Obama e Kadafi em 2009. Realismo político

Chegamos aí num ponto importante: os países tomam decisões baseadas no realismo político. Ou seja, a bússola que norteia quase todos os Estados aponta para vantagens e poder a partir do que possuem ou das alianças que mantêm. É claro que há limites e a ONU existe para, dentre outras funções, impedir que o mundo se transforme numa espécie de estado da natureza formulado por Hobbes. O que o Brasil tem feito, no entanto, é contraditório com suas próprias pretensões. Não há nada de errado nisso, mas causa estranheza.

Quem está do outro lado do posicionamento é, para variar, os EUA. Apesar de atolados numa espiral de críticas internacionais desde o início da resposta ao 11 de Setembro (que provocou duas guerras contra todos os grupos terroristas islâmicos), os americanos acabaram se beneficiando da situação na Líbia. E de uma maneira bastante inteligente, por sinal. A Casa Branca não planejou a Primavera Árabe (pelo contrário) e tampouco teve qualquer participação nas manifestações populares dos líbios. Mas foi astuta o suficiente para enxergar nos acontecimentos duas possibilidades interessantes: estar envolvida de alguma maneira no processo de luta pelo democracia nos países árabes, podendo se conciliar com a população comum de um inimigo histórico; derrubar Kadafi sem perder soldados ou muito dinheiro.

Os EUA não foram os principais agentes da transformação líbia, mas capitalizaram a seu favor. Obama apoiou os rebeldes em março passado porque sabia que era preciso estar envolvido com a luta pela democracia na região. Afinal, não são justamente os americanos que fazem da democracia a sua própria contribuição para a humanidade? Pois é. Mas não se trata somente disso. No norte da África, os EUA estavam em péssima situação desde que demoraram a responder às manifestações populares em Egito e Tunísia. Hoje este pode até parecer um passado distante, mas sucessivos governos americanos – inclusive o de Obama – tiveram nos ditadores de Egito e Tunísia aliados históricos capazes de manter a estabilidade numa região cercada de incertezas.

Graças ao realismo político, Obama agora pode se orgulhar de dois grandes feitos internacionais dos quais fará bom uso durante os debates eleitorais: o assassinato de Osama bin Laden e a derrubada de Kadafi – grande inimigo dos EUA nos anos 1980. E tal feito não custou a vida de nenhum soldado americano.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Brasil tenta consertar estratégia para a Líbia e acaba errando de novo

Escrevi sobre a indecisão brasileira quanto a reconhecer ou não o chamado Conselho Nacional de Transição (CNT) na Líbia. A pressão aumenta sobre a posição do Itamaraty. No entanto, o ministro Patriota tem encontrado novas formas criativas de justificar o adiamento de algum tipo de decisão. “O Brasil não reconhece governos, reconhece Estados”, disse.

Isso até pode soar bonito, mas, efetivamente, não resolve nada. Declarações como esta não apenas são banais como também mostram um retrocesso no projeto de política externa. Ora, se a ideia era não se manifestar, por que todo o esforço em busca de relevância? Um ponto importante que precisa ser lembrado: o objetivo máximo da diplomacia nacional é conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Quem almeja tal reconhecimento simplesmente não pode buscar subterfúgios para as grandes questões internacionais. Encontrar uma solução para a Líbia é, neste momento, uma das principais preocupações mundiais.

Aliás, há outra contradição nesta postura. O Brasil se alia à Rússia e China, dois membros do CS que foram não somente contrários à intervenção, mas também evitaram criticar Kadafi até o limite do possível. Ou seja, a tradição brasileira de independência caiu por terra. E, pior, correndo o risco de pular para o lado errado (alguém duvida que levantar a bandeira da manutenção do regime Kadafi seja o lado errado?). Todo este esforço de escapismo tem sido feito apenas em nome do não alinhamento automático às potências ocidentais. Isso é uma tremenda bobagem e um enorme erro estratégico.

O chanceler Patriota também disse que a principal preocupação dos Brics é pela unidade do território líbio. Já a ONU aprovou a resolução contra Kadafi de forma a proteger as vidas dos civis. Acho que fica claro qual discurso é mais poderoso, certo? Por mais que ambos sejam meras construções estéticas em busca de justificativas nobres para objetivos geopolíticos distintos. Para complementar o equívoco, não custa lembrar que o próprio Kadafi conseguiu manter o território líbio integrado durante 42 anos. A resposta brasileira expõe o país à crítica mais óbvia. Basta juntar as peças.

Não por acaso, durante coletiva de imprensa no Fórum para a Cooperação entre América Latina e Leste da Ásia (Focalae), o ministro das Relações Exteriores do Brasil teve de negar oito vezes que o país considerava a possibilidade de conceder asilo ao ditador da Líbia. Se ao optar por não tomar partido na questão líbia a ideia era ter tempo para analisar o cenário sem ser associado a nenhum dos lados, ela foi por água abaixo. A rapidez do mundo de hoje não é apenas um conceito aplicável à tecnologia. Como todos estão integrados – comunicação, economia, mercados etc – não há tempo para hesitações e intervalos gigantescos.

A saída encontrada pelo Itamaraty para mascarar a indecisão que tomou conta do governo foi envernizá-la com uma suposta ideologia de crítica à intervenção e às potências ocidentais. Só que esta nada mais é do que uma estratégia ingênua e antiga que nada tem a ver com a dinâmica internacional dos dias de hoje. Deu tudo errado.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Brasil pode perder o bonde da nova Líbia

A Liga Árabe já deixou claro que passa a reconhecer o Conselho Nacional de Transição (CNT) como autoridade legítima da Líbia. Há também uma pitada de populismo ao afirmar, em comunicado, que o CNT é o “único representante do povo líbio”. Digo isso porque durante 42 anos a organização jamais questionou a ditadura de Kadafi no país. Mas, é sempre bom lembrar que a Liga Árabe não é o exemplo singular de contradição, infelizmente. Nunca é demais recordar que mesmo as potências ocidentais – agora ultrajadas com o ex-líder líbio – toparam estabelecer relações muito próximas a ele. Política é, acima de tudo, conveniência.

Foto: embaixada líbia em Brasília já ostenta a bandeira que se tornou símbolo dos rebeldes

Há também grande questionamento por aqui quanto à posição brasileira. E não é para menos. O Itamaraty corre o risco de tornar o Brasil o último a entrar no barco dos vitoriosos. Quando uso o termo “último”, refiro-me, obviamente, aos Estados que de fato possuem relevância no cenário internacional. Por exemplo, não faz grande diferença quando a Venezuela trata a derrubada de Kadafi como “uma agressão ocidental ao povo líbio”. Sem a menor dúvida, esta não é uma posição que o governo brasileiro pretenda compartilhar.

E há uma explicação para isso. Como sempre escrevo, o Brasil quer se manter relevante. E ideologizar demais a política externa é o primeiro passo para seguir ladeira abaixo. Há certa dificuldade em definir uma linha clara. Mesmo que o ministro das relações exteriores Antonio Patriota nutra desprezo pela ditadura líbia, uma das práticas brasileiras condena o alinhamento automático às potências tradicionais. Além disso, o Brasil preza acima de tudo as organizações multilaterais. O país quer tomar decisões numa espécie de estratégia wiki, ou seja, ouvir todos os atores envolvidos. Principalmente, os que representam Estados ora pertencentes ao chamado grupo dos não alinhados.

Patriota tem mantido conversas com membros do Ibas (formado por, além do Brasil, Índia e África do Sul), Brics, União Africana e Liga Árabe. A decisão brasileira só vira quando contar com a aprovação de todos esses países. Isso é até compreensível, mas não me parece prático e inteligente. Soa como um grande pedido de desculpas por se posicionar internacionalmente. Mas, afinal, não era justamente isso o que o Brasil sempre quis? É natural que a relevância seja acompanhada de desgaste. É natural também que posicionamentos brasileiros desagradem e o país não possa mais contar com a grande aprovação destinada aos que estão permanentemente em cima do muro. Mas e daí?

Há passos politicamente irreversíveis. Quando o Brasil forjou sua recente política externa e conseguiu ter sucesso, conhecia as contrapartidas envolvidas. E uma delas é absolutamente clara: não se pode participar do jogo a partir da arquibancada. É claro que há riscos ao se legitimar o desconhecido Conselho Nacional de Transição (CNT) da Líbia. Mas todos os principais atores estão se posicionando. O Brasil não pode simplesmente ignorar este movimento e se abster das decisões.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Exemplo da Líbia não deve se repetir em nenhum outro ponto do Oriente Médio

O que está acontecendo na Líbia neste momento é um fenômeno absolutamente único. E me refiro aos acontecimentos políticos, que fique claro. A tomada do complexo central de Kadafi, em Trípoli, é parte da batalha doméstica do país que ganhou ares de conflito internacional a partir da intervenção da Otan aliada ao pontual apoio de alguns Estados árabes, como Catar, Jordânia e Emirados Árabes. Além da batalha terrestre – cujos avanços só foram possíveis graças aos bombardeios aéreos –, há uma série de ajustes bastante específicos do caso líbio.

O primeiro deles diz respeito ao atual apoio quase unânime ao chamado Conselho Nacional de Transição – nome bonito dado aos rebeldes (volto a este assunto mais adiante). É preciso ressaltar a raridade óbvia quanto à convergência de posições de atores normalmente tão polarizados: Liga Árabe, Estados Unidos e União Europeia. Isso sem falar que até Rússia e China se mostraram dispostas a ceder. Na minha opinião, isso já evidencia a derrota de Kadafi.

Quando os principais e incongruentes agentes geopolíticos optam por publicamente demonstrar o apoio aos rebeldes, é porque nada mais pode ser feito. Kadafi pode ir à TV e realizar quantos discursos inflamados quiser. Pode sustentar a resistência por tempo indeterminado. Mas a sua queda é só uma questão de tempo mesmo. A sustentação da comunidade internacional aos opositores é, por si só, a sentença final ao ditador líbio. A situação é tão extraordinária que os EUA tentaram – e parecem ter conseguido – manter um papel menos relevante em todo o processo.

Ou seja, é muito pouco provável que esta dinâmica e todos esses muitos fatos excepcionais se repitam em eventuais novos conflitos. Nem os EUA exercerão papel secundário, nem muito menos haverá está ausência de grandes e apaixonadas discussões. Isso só foi possível na Líbia porque Kadafi se tornou tão caricato e irrelevante que acabou se isolando regionalmente.

A Líbia é um território rico em petróleo, mas deixou de ser uma peça importante geopoliticamente devido aos acontecimentos anteriores ocorridos nos países com os quais divide fronteiras. O sucesso da derrubada dos governos ditatoriais de Egito e Tunísia acabou por determinar o destino da Líbia. Quando as questões foram resolvidas nos vizinhos, não havia por que o governo de Trípoli reafirmar relevância ao sustentar uma espécie de polo de resistência para as ditaduras. Isso não interessava a absolutamente ninguém.

Existe apenas um grande risco para os passos seguintes: ninguém sabe exatamente quem são esses rebeldes e quais são suas propostas para a "nova" Líbia. Se houver vingança, genocídio ou mesmo uma nova guerra civil pela disputa do poder, toda a comunidade internacional periga de ter comprado uma passagem para um barco furado.

Os atores que patrocinaram os opositores a Kadafi o fizeram apenas por questões dicotômicas. O grupo representava a única força terrestre e local disposta a enfrentar o ditador. Como as potências ocidentais queriam surfar na onda da Primavera Árabe sem provocar críticas regionais e sem o desgaste de um novo conflito contra os árabes, precisaram armar um grupo nacional libio praticamente desconhecido.

E o que a imprensa internacional convencionou chamar apenas de "rebeldes" é, na verdade, um aglomerado de fidelidades e ideologias distintas unido apenas em torno do projeto de derrubada de Kadafi. Ex-membros do governo (civis e militares), democratas, jihadistas, berberes e representantes de diversas tribos líbias. Unir todos eles a partir de agora e convencê-los a realizar uma transição pacífica e negociada pode ser um desafio ainda maior do que o enfrentado até aqui.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Vitória na Líbia ainda não permite a líderes ocidentais respirarem aliviados

Quase seis meses se passaram entre aquele anúncio americano de que o país e uma força multinacional atacariam a Líbia de Muammar Kadafi. O período de intensos combates entre rebeldes e forças leais ao ditador não foi difícil apenas sob o ponto de vista militar. Estava em jogo também a própria capacidade de intervenção estrangeira e sua estratégia para derrotar um exército considerado fraco. No fundo, é fácil perceber qual foi o maior erro cometido desde o pronunciamento de Barack Obama: não havia objetivos claros. Mas, mesmo assim, isso também está superado.

Entre debates e divergências na ONU sobre o que fazer para supostamente proteger os civis líbios do massacre conduzido pelo próprio presidente do país, a Assembleia-Geral se transformou, mais uma vez, em palco de enfrentamento entre visões de política externa completamente distintas: de um lado, EUA, França e Grã-Bretanha em busca de legitimidade internacional para nova empreitada militar; de outro, China e Rússia tentaram impedir a consumação dos esforços de guerra. Hoje, fica mais claro perceber que o vago propósito de “proteger civis” culminou, na prática, com a mudança de regime na Líbia.

A Primavera Árabe é ponto central desta narrativa. Os vizinhos do Estado líbio – Tunísia e Egito – conseguiram empreender mudanças a partir de dentro. A Líbia é, agora, o primeiro cenário atingido pelo movimento popular árabe que se sagrou vencedor graças à ajuda externa. Ninguém sabe o que isso significa, mas tenho algumas hipóteses.

Há certo ânimo de que a situação na Síria possa mudar. Isso pode acontecer. Até porque a Líbia passa a exemplo de sucesso a partir de um novo “modelo de negócios” regional. A articulação entre opositores armados no solo e bombardeio aéreo ocidental pode abrir precedentes importantes. Por mais que a Síria apresente características próprias e mesmo os manifestantes antigoverno não sejam abertamente favoráveis a intervenções estrangeiras, Bashar al-Assad deve nutrir algum receio neste momento. Principalmente porque a resistência doméstica a ajuda externa tem limites práticos. Ela é inversamente proporcional ao aumento da violência por parte de Assad.

Outra regra de ouro que cai a partir do caso líbio: a certeza de que ditadores conseguem se manter no poder graças ao apoio dos militares. Escrevi isso por aqui algumas vezes, inclusive. O monopólio da força é determinante para o fracasso das manifestações popular, desde que a poderosa Otan e as potências estrangeiras não façam nada para derrubar o regime. Agora, todas as estruturas estão abaladas e todas as certezas foram jogadas por terra. E não apenas isso: este é um momento de regozijo para europeus e americanos – cujas ações vinham sendo criticadas devido à ausência de resultados minimamente palpáveis.

Para finalizar, vai ser curioso observar os movimentos geopolíticos dos muitos atores interessados em alguma forma de atuação na Primavera Árabe. Em primeiro lugar, dos 22 países que compõe a Liga Árabe, somente nove apoiaram a criação de uma zona de exclusão área sobre o território líbio. Abertamente, nenhum foi claramente favorável à invasão. Eles reagirão à queda de Kadafi, sem dúvida.

No eixo de forças vitoriosas, ainda não está claro que rumo seus governos devem tomar. A França, primeira a reconhecer os rebeldes como autoridade local legítima, já tenta capitalizar. Paris quer ser a sede do primeiro encontro que definirá diretrizes quanto à transição pacífica e que se pretende democrática. Mas Washington precisa de resultados positivos. Mesmo menos importante internamente, Obama não pode abrir mão de ganhos no cenário externo justamente na pré-campanha e no momento em que ostenta os piores índices de avaliação de seu mandato.
Apesar da aparente vitória, os líderes ocidentais que bancaram todo este projeto militar e político ainda não podem respirar completamente. Há urgência de se reunir com os rebeldes justamente porque eles detêm enorme poder de acabar com as carreiras e ambições de Obama, Sarkozy e David Cameron. Se houver um banho de sangue na Líbia e o triunfalismo desbancar para uma vingança violenta às forças até agora leais a Kadafi, o sucesso atual pode rapidamente se transformar em fracasso histórico.

sábado, 20 de agosto de 2011

O isolamento de Israel

A situação no Oriente Médio voltou a se deteriorar. Infelizmente, a região ensina muito rápido que os sinais devem ser sempre interpretados para pior. A nova escalada de violência entre israelenses e palestinos antecipa acontecimentos que podem colocar todos os atores em grande perigo. Os atentados cometidos por terroristas palestinos na quinta-feira foram rapidamente retaliados pela Força Aérea Israelense. No entanto, à medida que novos fatos se sucedem, fica mais evidente que possivelmente há algum tipo de orquestração por trás deste momento.


Como escrevi no último post, o principal suspeito é o Hamas. Vale dizer que é pouco provável que o grupo tenha agido por conta própria e, menos ainda, somente com as armas a que tinha acesso antes da queda do ex-presidente egípcio Hosni Mubarak. Ao manter rígido controle na fronteira entre Gaza e o Egito, o líder deposto evitava o acesso do Hamas a grandes quantidades de armamento.


Agora, a situação é diferente. Os 80 mísseis Grad – de médio e longo alcances – lançados de Gaza neste sábado mostram que a situação mudou de vez. Não custa lembrar que o Irã “exporta” este equipamento a seus aliados na fronteira com Israel – o Hamas e o Hezbollah, este último mantém bases espalhadas no sul do Líbano.


Não é surpresa a movimentação do grupo coordenado por Teerã neste momento. Um de seus pilares de sustentação corre risco iminente. Bashar al-Assad, na Síria, jamais esteve em situação tão delicada, tendo conseguido condenação até mesmo do Conselho de Direitos Humanos da ONU (órgão que serviu de palco para muitas articulações políticas que pouco ou nada tinham a ver com os nobres objetivos da instituição).


Para completar, não custa fazer menção aos interesses iranianos. A hegemonia regional passa pelo enfraquecimento de Israel. E como é pouco provável que isso seja alcançado militarmente, a ideia é fazê-lo por meios políticos. Quanto mais isolado o Estado Judeu estiver, menos seguro o país estará. As alianças regionais de Israel já são poucas. Agora, serão raras.


E aí é preciso voltar um pouco no tempo e reconstituir os acontecimentos de quinta, os ataques de atiradores no sul de Israel. Fontes ouvidas pela agência de notícias Associated Press dizem que os combatentes que invadiram o território israelense teriam atirado em guardas egípcios baseados na fronteira com Israel, forçando-os a participar da troca de fogo com os soldados israelenses.


No final das contas, três militares egípcios morreram. Agora, o governo do Cairo não apenas acusa Israel, mas também deixou vazar rumores de que o embaixador em Tel Aviv seria chamado de volta. O sentimento anti-israelense no Egito passou a ser o principal motivo de manifestações populares, levando milhares de pessoas à porta da embaixada de Israel na capital egípcia e colocando em xeque o futuro do acordo de paz (foto). Na Jordânia, 150 manifestantes exigiram o cancelamento do tratado em vigor desde 1994.


Para completar, a situação atual serve de prévia para os acontecimentos de setembro, quando os palestinos prometem ir às Nações Unidas em busca da criação unilateral de seu Estado. Quanto mais Israel estiver isolado, menos oposição internacional, menos votos contrários na Assembleia-Geral. Tudo pode ser mera coincidência, mas o que são os resultados que importam.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Atentados em Israel: os ventos tortos da Primavera Árabe

Nesta quinta-feira, o terrorismo voltou a agir dentro das fronteiras de Israel. Ao contrário dos muitos ataques de mísseis lançados a partir de Gaza pelo Hamas, desta vez houve grande dose de ousadia. Uma equipe de combatentes invadiu o Estado judeu e, durante três horas, em plena luz do dia, ofereceu um pacote combo de ataques coordenados: abriu fogo sobre civis e soldados, detonou uma bomba e lançou um míssil contra um carro. A operação deixou sete mortos. Seis civis e um militar, além de 40 feridos.

Um atentado desta magnitude causa muitos impactos. O primeiro deles já aconteceu. Israel contra-atacou em Gaza, matando cinco membros do grupo radical Hamas. Curiosamente, o Hamas não assumiu a autoria, mas parabenizou os autores. No final das contas, é muito pouco provável que a série de ataques não tenha alguma participação do grupo palestino.

Além da resposta militar israelense, a própria relação do país com o Egito começa a balançar. Pouco antes da queda de Hosni Mubarak, em fevereiro, Shimon Peres foi bastante criticado ao exaltar o então presidente egípcio, enaltecendo sua importância para o equilíbrio regional. Como está claro hoje, Peres se equivocou politicamente e quase foi levado junto com a onda que derrubou Mubarak. Mas o presidente israelense simplesmente foi ingênuo ao expor suas opiniões publicamente.

Muabarak era ditador, corrupto e seus mais de 30 anos de mandato eram totalmente inaceitáveis sob o ponto de vista da população egípcia. Mesmo as relações que mantinha com os israelenses sempre foram frias, distantes. O acordo de paz não permitiu evoluções significativas sociais entre os dois povos. No entanto, a fronteira sul com Israel se acalmou. Não porque o ex-líder egípcio nutria sentimentos pelos vizinhos judeus, mas porque sufocava os movimentos islâmicos em seu território com mão-de-ferro em nome da própria sobrevivência política. A Irmandade Muçulmana era o único grupo que aglutinava apoio popular doméstico significativo no país e, por isso, era vigiado de perto pela administração Mubarak. A atuação dos radicais era limitada, o que, na prática, beneficiava Israel.

Desde a queda do ex-presidente egípcio, este cenário mudou. O embargou que existia à transferência de armas e produtos para Gaza foi suspenso. Foram realizados pelo menos cinco ataques contra infraestruturas de empresas egípcias que forneciam gás para Israel. Fica cada vez mais evidente que o atual governo do Cairo não está lá muito preocupado em manter a segurança na fronteira com Israel e sustentar a vigilância sobre os grupos radicais que se articulam e atuam no Sinai. O clima de desconfiança e os acontecimentos recentes devem levar os israelenses a aumentar a presença militar no sul do país – movimento oposto à redução contínua realizada durante as últimas três décadas.

Os ventos da Primavera Árabe chegaram tortos ao Estado Judeu. A sublevação popular na Síria fez com que o regime de Assad optasse por articular uma invasão de militantes pró-palestinos à região norte de Israel; no sul, os egípcios não parecem dispostos a impedir avanços de grupos radicais. Curiosamente, os atentados desta quinta-feira impediram a continuidade do movimento social israelense que se inspirou nas reivindicações populares árabes. Por conta dos ataques, a União dos Estudantes de Israel suspendeu as manifestações contra o alto custo de vida planejadas para este final de semana.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A expansão naval da China

Uma das teorias que mais me agradam sobre o crescimento chinês diz respeito às disputas marítimas em formação. A princípio, isso pode soar estranho, como texto antigo de algum livro empoeirado. Mas faz todo o sentido e os fatos recentes contribuem para solidificar esta linha de pensamento.

Foto: Varyag, o primeiro porta-aviões chinês

As grandes rivalidades entre EUA e China giram em torno de várias questões: economia, política, tecnologia, avanços militares. Em todos esses itens, há um denominador comum: a luta por hegemonia. Ao contrário do Oriente Médio – onde até mesmo atores mais audazes (como o Irã) sabem que o primeiro passo de suas estratégias mira somente um poder regional –, chineses e americanos lutam cabeça a cabeça pela liderança global. E todas as questões mencionadas se misturam, claro.

E é interessante notar que as previsões de crescimento econômico de Beijing são positivas e antecipam que o regime comunista deve ultrapassar os EUA como a maior economia do mundo. O curioso neste caso é que o ponto fraco dos americanos é justamente o que deveria ser seu ponto mais forte: a complexidade econômica. Os EUA avançaram de tal forma que toda a sofisticação adquirida acabou por se voltar contra o país. A produção hoje está em baixa. Há 30 anos, vinte milhões de americanos trabalhavam nas fábricas. Hoje, são apenas 12 milhões. Os dados são fornecidos pelo professor de estudos estratégicos Hugh White, que aponta como maiores vilões os setores de tecnologia da informação e finanças.

E adivinhem quem roubou dos americanos a massa de produção em escala mundial, esta galinha de ovos de ouro gigante? Pois é. Como se sabe, é simplesmente impossível competir com a produtividade e os preços praticados pelos chineses. Assim, a fábrica internacional está localizada na China. Com isso, o eixo de poder deixou Europa e América e forçosamente se estabeleceu na Ásia. Como lembra a Foreign Policy, hoje, mais da metade da frota mercantil mundial passa pela região. E, claro, a China não pode prescindir do poderio naval equivalente à importância estratégica de suas águas, principalmente do Mar do Sul da China.

Não é por acaso que Vietnã e Filipinas passaram a reclamar de uma postura marítima mais agressiva por parte dos chineses nos últimos meses. E tampouco se pode considerar uma mera eventualidade que os chineses tenham decidido apresentar seu primeiro porta-aviões na última quarta-feira. Como menciona a Economist, a China era o único membro das Nações Unidas que, até agora, não possuía seu próprio porta-aviões. Beijing se prepara para expandir suas pretensões navais. E certamente os EUA não irão acatar silenciosamente este grande movimento geopolítico.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Taiwan é o ponto nevrálgico das relações entre China e EUA

Este é um momento um tanto constrangedor para os EUA. O rebaixamento da classificação da dívida dos EUA pela agência Standard & Poor’s não afeta somente as questões domésticas, claro, nem tampouco os assuntos econômicos. A decisão respinga também na política externa do governo Obama. Enquanto em Washington e na bolsa de Nova Iorque o clima é de ansiedade e incerteza, na China há certa porção de felicidade, como se o regime comunista dissesse “chegou a nossa vez”.

Foto: parada militar nas ruas de Taipei, capital de Taiwan

É preciso, no entanto, pontuar que a situação não é de pleno conforto e tranquilidade aos chineses. Isso pelo fato de o país ser o maior credor do Estado americano (possui 1,16 trilhão de dólares em bônus do Tesouro dos EUA e 3,2 trilhões de dólares de reservas estrangeira em moeda americana). Portanto, não há uma dicotomia completa – como sempre, diga-se de passagem – em que quanto pior estiver Washington melhor estará Beijing.

Mas este pode ser o início de uma grande mudança nas relações entre as duas maiores potências planetárias (por mais que Putin e Medvedev insistam em dar asas a seus sonhos juvenis, a Rússia está fora da jogada). E justamente esta semana pode ser o começo de um período divisor de águas.

O vice-presidente dos EUA, Joe Biden, estará na China para se encontrar com seu colega hierárquico Xi Jinping. Além da justificativa oficial sobre o estabelecimento de melhores relações entre os países, há um tanto de ansiedade política. Principalmente porque ninguém sabe ao certo como os chineses irão tratar os americanos a partir de agora. Se tivesse de apostar, depositaria minhas fichas no revanchismo frio e particular da República Popular. Beijing não irá se refestelar por conta dos acontecimentos recentes, mas deve deixar evidente este novo e favorável desequilíbrio de forças.

Ponto polêmico por natureza e que está sempre sobre a mesa quando as duas potências dialogam é a relação que Washington mantém com Taiwan. A ilha dissidente do regime comunista tem nos aliados localizados do outro lado do mundo a maior garantia para segurar o ímpeto chinês de anexação. O problema é que nesta segunda-feira o governo Obama decidiu recuar. Não acatou ao pedido do governo de Taipei de vender 66 caças militares que, nas descrições oficiais, serviriam ao propósito de “defesa contra a China”.

Sabe-se lá como Beijing deve interpretar o gesto, mas a ideia de Obama é a mesma de sempre: apaziguar, passar panos quentes e evitar um desgaste com os chineses. A questão é que ele já fez isso antes e a estratégia se mostrou ineficaz do ponto de vista geopolítico. Já fez isso com os chineses em 2009 e já recuou com os russos. Em todas as oportunidades, as iniciativas foram consideradas demonstrações de fraqueza. E é isso o que deve acontecer novamente.

No entanto, agora há um agravante. No momento em que o presidente luta contra o índice de aprovação popular mais baixo desde a posse (apenas 39%), ele passa pela delicada situação do cobertor curto. Se evita o desgaste com os chineses, entrega de bandeja vasto material de campanha ao Partido Republicano.

Ao negar o pedido de Taiwan, descumpre o Ato de Relações com Taiwan, aprovado pelo Congresso americano e assinado pelo ex-presidente Jimmy Carter em 12 de abril de 1979. O ato é uma obrigação compulsória que determina a venda ao país do que for necessário para sua defesa. Aliada americana e democracia formal com 23 milhões de habitantes, a ilha agora representa uma dor de cabeça para os estrategistas da campanha de reeleição de Obama.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Violência em Londres: clique inicial ajuda a entender o momento

A guerra entre policiais e a população mais pobre de Londres causou surpresa internacional. Imediatamente após o início dos conflitos na tarde do último sábado, analistas de todo o mundo – e especialmente da Grã-Bretanha, claro – passaram a tentar entender as raízes deste fenômeno de sublevação social. Não é preciso dizer que ninguém consegue chegar a qualquer consenso em relação a isso. Até porque é muito importante destacar o óbvio: não se trata, de nenhuma maneira, de um movimento orquestrado.

Isso talvez ajude a entender o que se passa. Trata-se de um momento significativo. Na figura mais ampla, temos duas das principais capitais do planeta passando por um instante de transformação. Londres está imersa no caos físico; Nova Iorque, no financeiro – causado pelo rebaixamento da nota da dívida dos EUA. Por mais que as situações não estejam relacionadas, são sintomas de um ano profundamente marcado pela contestação.

A Primavera Árabe ainda não pode ser considerada revolução, mas sua mera existência evidencia uma transformação mundial. Ela está na raiz dos acontecimentos em Londres; ela serviu de inspiração aos jovens que foram às ruas da Espanha para exigir oportunidades e alguma perspectiva de futuro. E ela também permeia, curiosamente, os israelenses que contestam o alto custo de vida no país. A inversão do centro gravitacional político representa, por si só, a própria revolução. Quem imaginaria que a população comum árabe estaria na ponta de lança das tendências de reivindicação internacional? É este o mais relevante fato novo da história recente.

Voltando a Londres, há duas principais linhas de interpretação dos acontecimentos: a primeira acredita que os manifestantes são ideologicamente conscientes e levam adiante os confrontos em nome da contestação dos cortes promovidos pelo governo conservador; a segunda defende que tudo não passa de uma grande arruaça sem qualquer sentido e que a intelectualização do movimento só contribui para justificar uma farra violenta.

Como acontece na maior parte das vezes, acho que para ser razoável é preciso encontrar um meio-termo. Ou seja, é claro que os londrinos em confronto com a polícia não arriscam suas vidas em nome da derrubada do “capitalismo internacional”. Tampouco creio que essas pessoas estejam nas ruas pelo mero exercício da violência. O movimento começou de maneira muito semelhante ao pontapé inicial da Primavera Árabe na Tunísia (na ocasião, um vendedor de frutas ateou fogo ao próprio corpo após policiais confiscarem o carrinho com que vendia frutas). Na Inglaterra, um jovem foi morto por policiais no sábado em circunstâncias suspeitas. Da mesma maneira que ninguém imaginaria que o episódio na Tunísia pudesse provocar tantas transformações, ninguém poderia prever a violência na capital britânica.

E isso é compreensível e até natural. Poucos movimentos contestadores nasceram organizados, articulados. No caso britânico, a espontaneidade não pode servir como subterfúgio da dura realidade dos jovens. Em Tottenham, epicentro dos atuais acontecimentos, o desemprego está em 8,8% (taxa duas vezes superior ao restante do país). Pesquisa da União Europeia aponta dados mais amplos e perversos: 17% dos jovens não fazem qualquer coisa. Ou seja, não trabalham, não estudam, não estão em treinamento. Cerca de 600 mil jovens com até 25 anos de idade jamais trabalharam na vida.

Como não levar em consideração esses dados? Como ignorar esta completa falta de perspectiva? Não se pode tampouco deixar de lado os grandes acontecimentos históricos deste ano.

Os jovens britânicos não estão alheios ao mundo. Aliás, isto sequer é algo possível nos dias de hoje. Se antes era preciso ser profundamente engajado para tomar parte em manifestações de contestação, hoje é muito mais simples. Não é necessário ser membro de grupos físicos e, menos ainda, ter de se deslocar até reuniões clandestinas. Boa parte dos movimentos já nasce com milhares de adeptos antes mesmo de tomar as ruas. Foi o que aconteceu durante a Primavera Árabe. É o que está acontecendo agora na Grã-Bretanha. O assassinato do jovem negro e pobre no norte de Londres foi apenas o clique inicial.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Síria: presidente Assad e comunidade internacional empenhados em não fazer nada

O presidente Bashar al-Assad aprovou às pressas um decreto que prevê a permissão para que os sírios formem partidos políticos. Esta não é apenas uma medida que procura iludir o Ocidente – cuja opinião pública está a cada dia mais estupefata diante da violência promovida pelo regime –, mas também uma tentativa de desviar o foco dos acontecimentos de Hama. De nada adianta Assad recuperar as esperanças das potências ocidentais de que o ditador se tratava de um jovem reformista (o que claramente não é o caso), se ordena às tropas o sufocamento dos protestos com mão-de-ferro.

E é bom dizer algumas verdades sobre o suposto gesto de boa vontade. Assad não é bobo. Mesmo com partidos políticos, ele se manterá em posição de controle absoluto. A lei que aprovou deixa claro que as legendas não podem ser formadas em torno de etnias, grupos religiosos e tribais. Devem também respeito à constituição (a constituição do clã Assad, para ser mais claro). Esta é uma forma de preservar sua posição e da minoria que o sustenta no poder. O presidente é alauíta, vertente muçulmana que corresponde à fé de apenas 12% dos sírios. Um partido que representasse a maioria sunita facilmente o derrotaria nas urnas (isso, claro, diante da remota possibilidade de eleições limpas). O próprio tecido social sírio é baseado nessas fidelidades étnico-religiosas. Excluir esta realidade do processo de formação dos partidos é o mesmo que manter o sistema atual de legenda única.

Um regime policialesco como o da Síria não precisa de partidos que discutam liberalismo econômico ou qualquer característica de democracias avançadas e consolidadas; precisa de abertura, de grupos políticos que representem a enorme diversidade do país (inclusive dos curdos, é bom dizer). A lei aprovada por Assad não serve de nada, pelo contrário. Ajuda apenas a envernizar sua aparência de líder reformista. Na prática, no entanto, o presidente criou uma farsa que pode receber o nome de “gincana da democracia”. Para ele, o ideal é que existam partidos que reúnam as pessoas em torno de assuntos desimportantes. É como decretar que, a partir de hoje, haverá partidos para cuidar dos interesses dos que gostam da cor azul ou laranja; ou para os que preferem carros clássicos a esportivos. A democracia de Assad não concebe discussões reais, mudanças que façam alguma diferença.

Enquanto isso, o mundo assiste sem fazer muito. Os EUA subiram o tom pela primeira vez. O porta-voz da Casa Branca, Jay Carney, disse que a Síria seria um país mais seguro sem Assad. Mas mesmo os EUA têm dado passos muito incipientes. A estratégia americana é aplicar sanções aos empresários ligados a Assad e também depositar duas esperanças na atuação do embaixador baseado em Damasco, Robert Ford. Ou seja, é muito pouco. Por mais doloroso que seja a Washington testemunhar o massacre de braços cruzados, os americanos não querem pôr em risco a estabilidade do vizinho Iraque, que custou muitas vidas e também muito dinheiro aos cofres públicos.

Toda a atuação internacional tem sido cuidadosa demais, minimalista demais, irrelevante demais. Até a condenação aprovada pelos 15 membros do Conselho de Segurança foi menor. Ninguém entrou muito no mérito, mas o texto foi apresentado como uma declaração presidencial, categoria inferior a uma resolução. No final das contas, há uma espécie de cumplicidade velada entre Assad e a comunidade internacional. O presidente sírio finge que recua, e o resto dos países finge estar decidido a acabar com os abusos do regime de Damasco.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

EUA: mais uma vitória do Tea Party

A discussão americana sobre o aumento do teto da dívida do país terminou. Mas isso não significa que este é um assunto superado. De nenhuma maneira. A grande queda de braço entre Obama, republicanos, o Tea Party e até parte dos partidários democratas deixou marcas. Resta saber se elas serão profundas o bastante para influenciarem a corrida presidencial do ano que vem. A disputa pelo cargo político mais importante do mundo costuma girar em torno das discussões do momento. Vence quem tem o melhor lastro recente. Por isso a briga é para construir fatos positivos que estejam frescos na cabeça dos americanos durante as eleições.

 
O problema que os responsáveis pelo marketing dos candidatos vão enfrentar é justamente trazer as respectivas vitórias para o centro das discussões. Por exemplo, a violência do embate em torno do aumento da dívida nacional foi tão grande que fez com que os americanos deixassem de lado uma das maiores conquistas da administração Obama: o assassinato de Osama bin Laden. A derrota imposta à al-Qaeda já parece não ter tanta importância. Este é o jogo dos Republicanos. E eles conseguiram impor uma estratégia vitoriosa.

Quanto mais tempo a discussão durasse, quanto mais tempo a pauta fosse o calote da maior potência do mundo e as graves consequências disso, pior para as pretensões de reeleição de Obama. Ou seja, os Republicanos não se mostraram lá muito preocupados com a economia nacional. As ambições políticas falaram mais alto. Dizer isso claramente é algo bastante delicado não apenas nos EUA. Basta lembrar que este é o tipo de acusação que o ex-presidente Fernando Henrique usava contra o PT. O mesmo foi feito quando a ordem se inverteu e o PT passou para a situação.

No entanto, se Obama fizer isso em Washington, corre o risco de abrir a Caixa de Pandora. Haverá múltiplas acusações por parte dos Republicanos e o palco vai estar ainda mais à disposição do Tea Party, o movimento mais conservador da história política americana. Por falar nisso, a própria discussão que se encerra tem muito a ver com a estreita visão política do grupo cujo discurso rasteiro ganha mais adeptos a cada dia (e justamente pela fragilidade de seus argumentos). Para o Tea Party, a atuação do governo deve ser mínima. A base desta suposta verdade não está somente na defesa do liberalismo do mercado (cuja completa ausência regulatória foi uma das causas da crise econômica), mas em algo ainda mais banal: onde há governo, há impostos. E, claro, ninguém gosta de pagar impostos.

Para ilustrar o poder deste radicalismo, vale dar uma olhada nos resultados de uma pesquisa recente do instituto Gallup: para 34% dos americanos, os custos de seguro social e o Medicare (plano de saúde gerido pelo governo destinado à população mais pobre que não tem como pagar por assistência médica privada) são os responsáveis pela crise federal. Ou seja, o que para os brasileiros é inquestionável, para um terço dos americanos significa prejuízo ao país. Obama e boa parte dos membros do partido Democrata estão na outra ponta deste pensamento.

A demora na aprovação do aumento da dívida nacional é um sintoma do poder político crescente do Tea Party e desta massa de gente que acredita que o governo mais atrapalha do que ajuda. O desconhecimento quanto a que interesses o Tea Party realmente está associado contribui para suas vitórias pontuais. Mas vale dizer que, nesta discussão toda, seus membros conseguiram excluir do texto final a proposta defendida por Obama de aumentar impostos dos mais ricos. Deu para entender onde esta pista vai dar, certo?

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Por que ninguém quer invadir a Síria

O último texto dava conta das grandes contradições que cercam a passividade mundial diante da perseguição promovida pelo presidente sírio, Bashar al-Assad, cujos principais alvos são os próprios cidadãos comuns. Há algumas importantes complexidades que precisam ser esclarecidas. Elas de nenhuma maneira justificam a situação, mas permitem a compreensão mais ampla da aparente impotência internacional e da própria ONU. Se Assad não é nenhum gênio político – e não é mesmo –, pode ser orgulhar de contar com uma boa dose de sorte. O problema para ele é que, assim como para qualquer um, sorte não é um privilégio divino concedido a partir de algum mérito. É somente um estado transitório.

 
Novamente, a Líbia ajuda para efeito de comparação. Se houve tanta certeza na ofensiva contra Khadafi ela se deve, em boa parte, à localização do país. Espremida entre Egito, Argélia e Tunísia, a Líbia não reservava grandes surpresas externas. Ou seja, por mais que os governos de seus vizinhos não simpatizem com a operação militar nas redondezas, nenhum deles está disposto a partir em socorro de Khadafi. Esta é uma certeza. Ainda mais quando consideramos que a ação ocidental busca surfar na mesma onda vitoriosa que mudou os regimes em Egito e Tunísia. Em meados de março, não havia ânimo, interesse, justificativa ou mesmo dinheiro que levassem as cúpulas dos governos que fazem fronteira com o território a esboçar qualquer contraofensiva.

 
O caso sírio é completamente diferente. Vale lembrar que ainda agora, mesmo diante do flagrante ataque de Assad contra seus compatriotas, há pouca gente que defenda abertamente a deposição do presidente da Síria. Há muitos pedidos de reformas, calma, respeito aos direitos humanos. Mas mesmo os EUA evitam incentivar a derrubada do ditador. Isso porque, ao contrário da Líbia (e perdoem-me o lugar-comum), a região representa o exemplo do que se convenciona chamar de "vespeiro". Ninguém sabe como os demais países reagiriam a uma ofensiva internacional. Aliás, o problema é ainda mais grave; ninguém é capaz de ter certeza quanto à própria reação do regime sírio e mesmo de sua população.

 
Há uma memória coletiva e traumatizada na Síria quando se fala de invasão estrangeira. E eis aí mais um item de sorte de Assad. Nem mesmo seus inimigos se sentem muito à vontade para defender uma ofensiva como a da Líbia. Até os próprios americanos se sentem inseguros. Por duas razões específicas: certamente o Irã se sentiria impelido a defender seu aliado regional mais importante; e também Assad usaria o expediente mais óbvio para provocar os interesses dos EUA no Oriente Médio: como já fez há dois meses – quando permitiu que seu território servisse de base para que militantes palestinos invadissem Israel –, novamente provocaria incidentes na fronteira com o Estado judeu. E com o agravante do desespero, esses incidentes poderiam ser ainda mais explosivos.


Vale lembrar também que o governo de Damasco abriga importantes lideranças exiladas de grupos radicais palestinos. Elas não costumam usar o país como base de operações, mas seus líderes usufruem de liberdade não apenas de circulação, como também de discurso. Na eventualidade de uma ofensiva estrangeira, poderiam dar a explicação que quisessem para mobilizar fileiras de militantes. E eles não agiriam unicamente na Síria, mas atacariam Israel a partir de Gaza – principalmente – e Cisjordânia.

Para completar este Jardim das Delícias, o próprio Hezbollah, no Líbano, agiria em duas frentes: ao lado do exército sírio e no bombardeio a Israel. Fica fácil entender agora por que ninguém se atreve contra Assad. No entanto, ao esticar demais a corda e dar mostras de que faz o que bem entende contra seus opositores, o presidente sírio se expõe desnecessariamente. Não sei se o faz de propósito, como que para testar os limites ou zombar da impotência internacional. Mas acho que, na medida em que esta é uma situação profundamente desconfortável a EUA, países europeus e à própria ONU, talvez Assad esteja brincando com fogo.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Crise na Síria: comunidade internacional assiste de braços cruzados e expõe as próprias contradições

Há um grande equívoco ao tentar definir a chamada Primavera Árabe como um fenômeno político monolítico, como se manifestações populares fossem o primeiro passo para a inevitável derrubada de regimes autoritários. Esta prática de rotular situações é muito atraente do ponto de vista da imprensa, mas não necessariamente reflete a realidade. O caso sírio é sintomático e, além de muito violento, expõe não apenas a fragilidade da narrativa jornalística, mas também do próprio discurso supostamente humanitário das potências ocidentais e dos organismos multilaterais.

Para entender esta contradição basta voltar um pouco no tempo e deixar a Síria de lado por ora. Muito perto dali, a Líbia se transformou no espaço de experimentação da política externa que se pretendia fundamentada em aspectos morais. Os dados são muito relevantes. Um dos mais interessantes diz respeito ao número de civis mortos – informação que, sob olhar dos mais inocentes, justifica as intervenções estrangeiras. Foram os ataques de Muamar Khadafi contra os próprios cidadãos líbios que deram argumentos à ofensiva lançada pela OTAN para frear o banho de sangue no país.

No dia 20 de fevereiro – exatamente 28 dias antes da decisão internacional de derrubar Khadafi –, o número de mortos nos confrontos entre o exército da Líbia e os manifestantes era de 233. Sem a menor dúvida, este tipo de violência contra civis – e com o requinte perverso de se tratarem de cidadãos nacionais – não deve ser mesmo tolerada pela comunidade internacional. Mas em apenas quatro meses, esta mesma comunidade internacional supostamente preocupada com os líbios não demonstra a solidariedade prática aos sírios. Há alguma escala quanto ao número de mortos que justificaria esta prática? Ou melhor, esta passividade?

Certamente não. Até porque além dos milhares de refugiados na Turquia, a ofensiva do presidente Bashar al-Assad contra os amotinados na cidade de Hama fez 140 vítimas fatais somente neste final de semana. Grupos independentes estimam em 1,5 mil o número de civis mortos desde março. A própria ONU divulga dados alarmantes que dão conta de 3 mil desaparecidos e 12 mil presos – sabe-se lá em que condições. Portanto, se de fato a comunidade internacional e os organismos multilaterais – e aí vale incluir mesmo as Nações Unidas – tivessem como termômetro a incapacidade de civis de se protegerem da sanha de seus governantes, uma intervenção à Síria seria muito mais compreensível que a ofensiva à Líbia.

Mas política externa é, acima de tudo, fundamentada em pragmatismo. E não há nada de errado nisso. A questão é que os líderes mundiais têm enorme dificuldade de admitir o que é óbvio. O ano de 2011 está se encarregando de expor este tipo de contradição ao custo de milhares de vidas civis.