terça-feira, 31 de agosto de 2010

Perseguição aos ciganos pode sinalizar mudança no tratamento destinado aos imigrantes na França

A expulsão dos ciganos pela França expõe, na verdade, uma prática comum a boa parte dos países europeus. O foco atual está em Nicolas Sarkozy porque o presidente francês decidiu fazer da deportação sistemática do grupo bandeira de seu governo. Aliás, como já escrevi outras vezes, a União Europeia parece estar estacionada no mundo do século 20. O exemplo de perseguição remete ao mais trágico episódio da humanidade.

Assim como no Holocausto, a caça promovida nos dias atuais é injustificada. Os argumentos de Paris seriam risíveis, se não fossem trágicos. Por exemplo, quando o governo francês denuncia a falta de higiene dos acampamentos, esquece de mencionar os motivos por trás da ausência de estrutura digna. Lei nacional estabelece como obrigação de cidades com mais de 5 mil habitantes fornecer eletricidade, rede de esgoto e água para os acampamentos. Mas a determinação é ignorada pelas autoridades locais.

É preciso deixar claro que Sarkozy age em benefício próprio. Com a popularidade em baixa, as medidas restritivas aos ciganos ajudaram a melhorar a percepção sobre seu governo. Antes de determinar as expulsões, a aprovação do presidente estava em 34%. Agora, está em 36%. Os muito insatisfeitos caíram de 66% para 64%.

Dá para concluir que não é possível culpar apenas as autoridades. Principalmente quando se leva em consideração que dois terços dos franceses aprovam as medidas.

Além da desumanidade envolvida, o gesto também desrespeita a legislação europeia. Como a maior parte dos ciganos possui cidadania romena ou búlgara – países que entraram para a UE em 1 de janeiro de 2007 –, eles não poderiam ser impedidos de circular pelos demais Estados-membros do bloco. Paris argumenta que, por conta da adesão recente, búlgaros e romenos só poderiam usufruir da cláusula de livre movimentação a partir de 2014.

O que pouca gente se recorda é que a Comissão Europeia - órgão executivo do bloco - criou um fundo de 22 bilhões de dólares para ser usado na melhoria das condições de vida dos ciganos. O dinheiro permanece intocado, mesmo neste momento de dificuldades.

Editorial do Washington Post lembra um ponto importante. A guinada de Sarkozy pode marcar o início de um processo de mudança interna na França. Ao eleger os ciganos como os culpados pela criminalidade nacional, o governo pode também sinalizar uma nova abordagem em relação aos milhões de imigrantes que vivem no país.

Até o momento, a lei determina que crianças nascidas em território francês devem receber cidadania automaticamente. O ministro do Interior, Brice Hortefeux, pretende mudar isso, por ora em casos onde os pais tenham sido condenados criminalmente por ataques a policiais ou bombeiros. Se isso de fato vier a acontecer, a França poderá assistir a uma perigosa onda de caça aos imigrantes. Não se sabe como os seis milhões de franceses de origem árabe, por exemplo, poderiam reagir diante deste novo posicionamento oficial.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

México se encaminha para substituir o Brasil no imaginário internacional da violência

Mais uma vez, a violência do tráfico atacou o México. Hoje, o prefeito da cidade de Hidalgo, Marco Antonio Leal Garcia, foi morto pelos cartéis dedicados ao comércio de drogas. O atentado aconteceu novamente em Tamaulipas, mesmo estado da região nordeste onde 72 pessoas foram assassinadas na semana passada.

Longe de vislumbrar uma virada de jogo, os mexicanos se preparam para o pior. Desde a posse do presidente Felipe Calderón, em dezembro de 2006, cerca de 28 mil pessoas foram mortas.

Há alguns fatores que explicam a derrota do governo. O primeiro deles é polêmico: outrora reconhecido como um país conservador e tradicional, a sociedade mexicana tem acompanhado as mudanças globais. E como retrato de um fenômeno internacional, também por lá as ideologias – de todas as naturezas, é preciso dizer – têm tido cada vez menos importância na vida cotidiana.

Em substituição à religiosidade ou mesmo à defesa apaixonada deste ou daquele polo partidário, há o enorme desejo de se igualar ao resto do mundo através, é claro, do consumo. E isso não exclui as drogas ilícitas nenhuma maneira. Talvez isso explique em parte o aumento do mercado interno.

Relatório divulgado pelo governo mostra que, entre 2006 e 2009, o uso de drogas dobrou. O dado mostra 1 milhão de novos usuários de maconha e 1,35 milhão, de cocaína. E o estudo examina somente a população entre 14 e 21 anos de idade.

Ou seja, há três frentes a serem combatidas: o poderoso mercado externo norte-americano, o crescente e jovem mercado interno, e a corrupção da polícia. Neste último item, a Secretaria de Segurança Pública informa que os donos do tráfico local gastam anualmente a fortuna de 1,2 bilhão de dólares para corromper 165 mil policiais.

A fronteira com os EUA também acabou se transformando numa zona perene e de alto risco. Do armamento capturado na luta contra o tráfico, estima-se que 80% de todo o material recolhido seja originado dos EUA. É um arsenal composto por 84 mil armas, que vão desde rifles e granadas a equipamento militar. Se isso não bastasse, a dificuldade acaba sendo ainda maior por conta da legalidade fornecida pelos americanos para o comércio armamentista.

Como lembra editorial do Washington Post sobre o assunto, o presidente Calderón esteve nos EUA em maio deste ano e implorou para os congressistas americanos barrarem a permissão da venda e comercialização de armamentos. Voltou para casa sem qualquer resposta.

Enquanto todas essas questões não forem resolvidas, mais pessoas irão morrer no México - que, aliás, caminha para substituir o Brasil no imaginário internacional como o Estado latino-americano violento da vez.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O arriscado negócio empreendido pelo site WikiLeaks

O post de hoje é motivado pelo excelente questionamento de um amigo leitor (amigo e leitor, para ficar mais claro). Ontem, ele me enviou um email perguntando qual era a minha opinião sobre o site WikiLeaks. Para quem não se lembra, este é o portal de Julian Assange (foto), o australiano que surpreendeu o mundo – mais o hemisfério norte, para falar a verdade – ao publicar cerca de 90 mil documentos sobre a guerra do Afeganistão.

Para início de conversa, acho que o WikiLeaks é um fenômeno que acompanha este novo mundo onde pisamos. Ele é fruto de aspectos distintos que moldaram o pensamento mundial deste começo de século: a internet banda larga e a polarização de parte considerável da opinião pública em torno da guerra ao terrorismo declarada pelo governo americano após os atentados de 11 de Setembro.

O site de Assange nasce a partir da conjunção desses fatores e também pelas oportunidades criadas por eles. Há uma demanda por informação sobre a guerra ao terror na mesma medida em que se trata de um assunto polêmico que desperta muitas paixões. A internet, como se sabe, é terreno fértil para isso. Quando o site começa a vazar documentos tão controversos quanto exclusivos em relação às missões dos EUA no Afeganistão, é claro que o material despertará muito interesse.

O WikiLeaks apresenta perfil distinto dos tradicionais veículos de imprensa. O primeiro ponto é que ele não se pretende veículo de imprensa. Sua função é tornar público documentos confidenciais. Nesta medida, acaba funcionando, na prática, como agência de notícias. A diferença, no entanto, é que não existe qualquer edição do material recebido. Está tudo disponível online para quem quiser ver. A checagem feita pelos jornalistas (ou que ao menos deveria ser feita) ao redigir textos ou transformar material bruto em notícia aparentemente não é feita. Não é esta a preocupação do WikiLeaks. Pelo menos, é o que tem dado a entender até o momento.

O produto que oferece costuma ser interessante por natureza. Pelo menos é assim que tenta apresentar o material que consegue. Mesmo que muitas vezes não seja este o caso, como o novo arquivo confidencial publicado na quarta-feira. A novidade da vez é um estudo interno da CIA mostrando preocupação quanto ao fato de estrangeiros passarem a perceber os EUA como exportadores do terrorismo. O documento menciona a atuação de americanos no exterior e pontuais ligações com grupos radicais de toda a sorte, como cidadão americanos que se unem a israelenses radicais, americanos de religião islâmica que passam a lutar em nome da jihad ou o caso dos cinco jovens norte-americanos presos no Paquistão, em 2009, quando tentavam ingressar na al-Qaeda.

Existe certa paranoia em torno disso. Basta fazer um estudo e checar a proporcionalidade na participação de civis americanos em atos de terrorismo. Há casos pontuais e, acredito, eles estão longe de influenciar a percepção internacional sobre os EUA. O documento vale mais pela curiosidade por seu conteúdo do que como revelação realmente relevante.

Em termos empresariais, o WikiLeaks é um negócio arriscado. Ele precisa encontrar material de qualidade e confidencial em certa quantidade. É como um projeto que precisa de uma matéria-prima muito rara para funcionar. Longe da aura de justiceiro de Assange, acredito que ele entende que só sobreviverá enquanto tiver boas novidades para apresentar. Por isso, não me espanta que, em entrevistas, defenda a tese de teorias conspiratórias contra si.

"Sei pela minha experiência que os inimigos do WikiLeaks continuarão a espalhar boatos até mesmo quando eles já foram rejeitados. (...) fomos avisados que, por exemplo, o Pentágono planeja usar truques sujos contra nós", disse em entrevista à Al-Jazira. É claro que isso pode acontecer mesmo, mas não deixa de ser interessante para a visibilidade do site que seu fundador se apresente como o homem a incomodar o governo mais poderoso do planeta.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A Somália em queda livre

A anarquia que de fato existe na Somália evidencia a mudança de parâmetros por que passa o mundo deste início de século. O duplo atentado suicida que deixou 33 mortos num hotel de Mogadíscio, na terça-feira, lembra o quanto a situação é desesperadora. O governo transitório apoiado pelo Ocidente controla hoje somente o palácio presidencial, a Vila Somália (onde vive o presidente Sheikh Sharif Ahmed), o aeroporto, alguns poucos portos e meia dúzia de cidades nas proximidades da capital.

Por outro lado, o grupo terrorista al-Shabab já tem o pleno domínio do sul do país e do lucrativo porto de Kismayo. O estado de completo caos é fruto do descaso das potências e dos sucessivos equívocos na tomada de decisões.

O primeiro - e talvez o maior importante deles - foi a invasão comandada pela Etiópia, em 2007. Com o que restava de orgulho nacional ferido, uma vez que a rivalidade entre somalis e etíopes é antiga, o al-Shabab se aproveitou para levantar a bandeira da defesa da soberania. A luta acabou fortalecendo o grupo, já muito bem armado pelas centenas de organizações terroristas internacionais que o apoiam.

A segunda decisão errada é mais uma omissão do que uma atitude. Enquanto bilhões de dólares foram despejados em Iraque e Afeganistão, a Somália foi praticamente esquecida. A situação de falência permanece. Em artigo publicado hoje em alguns importantes veículos internacionais, o presidente de Uganda, Yoweri Museveni, menciona que o orçamento anual do que se pretende ser um governo somali é de apenas 250 milhões de dólares. E ele mesmo faz questão de mencionar que este valor se aproxima do destinado por seu país para o pagamento anual dos professores primários. E não é preciso dizer que Uganda está longe de ser um modelo em gestão educacional.

Em dezembro de 2009, doadores estrangeiros reunidos em Bruxelas haviam se comprometido a enviar 58 milhões de dólares para o governo de Mogadíscio. Para comparar o que isso representa, acho interessante citar que qualquer clube de futebol interessado em contratar o atacante Neymar, do Santos, deve arcar com a multa rescisória do jogador estipulada em 45 milhões de euros (em cálculos de hoje, quase 57 milhões de dólares). Mesmo assim, até agora, a luta da Somália contra o al-Shabab só mereceu parcos 5,6 milhões de dólares.

O grupo radical aproveitou a onda de mortes para declarar uma ofensiva final contra o Estado – o que resta dele, no caso. Como lembra o britânico Guardian, as efemérides próximas podem culminar numa avalanche de novos ataques. No próximo sábado, o décimo-sétimo dia de jejum do Ramadã, os muçulmanos celebram uma importante vitória contra os infiéis no século 17. Na segunda-feira, a data ainda é mais simbólica: marca o aniversário da conquista de Meca pelo profeta Maomé.

Apenas para lembrar: o objetivo do al-Shabab é o mesmo de tantos outros grupos (como Hamas e Talibã, por exemplo). Controlar o país e impor a Sharia - a lei islâmica - em todo o território. Se o governo somali cair mesmo, o país será o primeiro a ser de fato governado por um grupo radical, desde a queda do regime Talibã, no Afeganistão, após a invasão americana de 2001.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Os maiores inimigos dos diálogos entre israelenses e palestinos

Há muitas dificuldades em torno do processo de paz. Digo isso, porque já há movimentações claras buscando prejudicar a retomada do diálogo entre israelenses e palestinos, previsto para a semana que vem. Hezbollah, Hamas, Irã e o ministro das Relações Exteriores de Israel, Avigdor Lieberman, são os maiores interessados em atrapalhar o encontro que será realizado nos Estados Unidos. Aos poucos, todos esses atores começam a mostrar suas intenções.

Mantendo sua posição de defender a extinção do Estado de Israel, o Irã se pronunciou de forma contrária à retomada do processo. Como o presidente Ahmadinejad já percebeu que repetir o mantra de "varrer Israel do mapa" costuma lhe causar desgaste internacional desnecessário, a missão ficou por conta de Ramin Mehmanparast, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores.

"Não pode haver qualquer acordo enquanto os palestinos são expulsos de seu país ao mesmo tempo em que invasores de outros países vivem em seu lar nacional", disse. Para deixar ainda mais claro, a expressão "invasores de outros países" é usada pelo governo iraniano para se referir aos cerca de 6,5 milhões de judeus que constituem 80% da população de Israel (o restante é formada por árabes com cidadania israelense).

Ou seja, na prática, a república islâmica muda as palavras, mas continua a dizer o mesmo: para o Irã, só existe uma solução possível para o conflito entre palestinos e israelenses: o fim de Israel. "Varrer Israel do mapa" é somente a forma mais enfurecida desta posição.

Como o presidente Barack Obama e o Quarteto (EUA, UE, Rússia e Nações Unidas) estão à frente do encontro da semana que vem, nada melhor para reafirmar a postura iraniana do que se opor à iniciativa. Para completar, o discurso foi coordenado com os dois aliados iranianos que fazem fronteira com Israel.

Em Gaza, o primeiro-ministro do Hamas, Ismail Haniyeh, já declarou oficialmente que o povo palestino não tem nada a ganhar com a retomada do processo de paz. Não por acaso, as palavras do líder do grupo radical se seguem ao cancelamento de um encontro interno que pretendia buscar a reconciliação entre Hamas e Fatah. Como este último forma a base de sustentação da moderada Autoridade Palestina, posicionar-se de forma contrária ao diálogo é uma maneira também de não ratificar o poder decisório da AP sobre o rumo a ser tomado pelos palestinos.

Na medida em que busca reconhecimento como ator regional, o Hamas só tem a perder quando a maior parte dos palestinos acredita no processo de paz e entende que é o grupo moderado que deverá representar suas aspirações nacionais.

O Hezbollah seguiu uma linha parecida. A diferença em relação ao Hamas é o fato de a milícia xiita já participar das decisões internas libanesas de uma forma bem menos conturbada do que seus aliados em Gaza. O Hamas pretende ser amanhã um pouco mais do que o Hezbollah é hoje.

O líder do grupo xiita, Hassan Nasrallah, abriu o jogo e, em pronunciamento em seu canal de TV – a rede al-Manar –, pediu ajuda iraniana para armar o exército libanês. É uma forma criativa e um tanto inesperada de dar o troco nos EUA. Por conta da troca de tiros entre as forças regulares libanesas e israelenses, no último dia 3, o congresso americano suspendeu o envio de 100 milhões de dólares para equipamento do exército do Líbano.

Ao pedir ajuda ao Irã, o grupo devolve o problema para os EUA e ainda prejudica as pretensões estratégicas e de defesa americanas na região. Ou Washington retoma os planos de enviar ajuda financeira ao exército do Líbano ou o Irã é convocado para suprir com seu arsenal as carências das forças libanesas - que, até este momento, parte da opinião pública internacional supunha ser independente do Hezbollah.

Na verdade, a milícia xiita foi inteligente ao forçar a Casa Branca a escolher entre duas desagradáveis alternativas: a primeira, retomar a ajuda financeira e manter a dúvida quanto à participação do Hezbollah no exército libanês; ou a segunda, permitir que os iranianos se tornem um ator de fato ainda mais relevante no Líbano e cujas armas seriam posicionadas justamente na fronteira com Israel.

No caso do ministro das Relações Exteriores de Israel, ao mencionar não crer que o país deva prolongar o congelamento da construção de novos assentamentos na Cisjordânia, Avigdor Lieberman pensa apenas em si. Como conseguiu derrubar o partido trabalhista israelense da posição de terceira força política nacional, ele não quer recuar, na medida em que sabe precisar da coalizão religiosa para manter este governo e, mais precisamente, permanecer no cargo. O eventual sucesso de conversações de paz seguramente esvaziará o discurso e o poder de seu partido, o Israel Beiteinu.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Irã desafia EUA em território onde americanos despejam grande ajuda financeira

Às vésperas da retomada das negociações de paz, o Oriente Médio continua a assistir à formação de novas alianças de poder. Mais ainda, existe uma corrida – muitas vezes, ruidosa – por poder e influência. Em busca de prestígio ainda maior na região, o Irã tem desafiado os Estados Unidos ao flertar com o Paquistão, importante aliado americano na luta contra o Talibã.

As enchentes que causaram estragos no país acabaram por fornecer uma oportunidade para a atuação de Ahmadinejad. Além de enviar contêineres de ajuda, o presidente iraniano anunciou nesta terça-feira sua intenção de visitar os pontos mais devastados. Formado majoritariamente por população sunita (75%), o Paquistão é alvo da ambição iraniana pela influência que exerce no Afeganistão e, claro, pelo fato de o governo de Islamabad estar alinhado a Washington.

Mas Ahmadinejad sabe que há um nicho de mercado importante: apesar do grande despejo de ajuda econômica dos EUA no território, os paquistaneses são um dos povos mais antiamericanos do mundo. O líder iraniano não apenas pretende se confirmar como um ícone de resistência aos EUA, como projeta interferir nas decisões paquistanesas de baixo para cima. A presença ostensiva de Irã no país pode provocar ainda mais manifestações contra o governo central por sua relação com Washington.

Assim, muito além de propaganda, Teerã tem adotado um posicionamento prático. A TV estatal iraniana anunciou que o projeto do gasoduto ligando o Irã ao Paquistão está completo. São 907 quilômetros de dutos construídos ao custo total de 7,5 bilhões de dólares. Coincidência ou não, a cifra corresponde ao mesmo valor previsto pela lei americana conhecida como Kerry-Lugar. Aprovada pelo congresso dos EUA, ela contempla assistência ao país asiático para a construção de represas, usinas hidrelétricas e hospitais.

As medidas iranianas procuram enviar ao mundo – e aos EUA, principalmente – mensagens distintas: a primeira delas é reafirmar que o Irã continua a manter suas ambições regionais mesmo na vigência das sanções; a segunda é complicar as ambições regionais americanas e desafiar a Casa Branca em territórios que a administração Obama julga como de sua responsabilidade.

Todo o desfile militar recente promovido por Teerã segue a mesma lógica. Aviões não tripulados, quatro novos mini-submarinos, a possibilidade do envio do sistema antimísseis russo, e planos de construção de dez novas usinas nucleares fazem parte do projeto de orgulho nacional. Não ceder diante das dificuldades – pelo contrário – é mais uma maneira de unir o povo iraniano em torno da autoimagem messiânica que Ahmadinejad pretende construir para si.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Tranquilidade no Iraque pode esconder a maior derrota americana deste século

As ambições americanas no Oriente Médio têm seguido uma linha crescente. Curiosamente, no entanto, as expectativas do presidente Obama são muito distintas de seus antecessores. Alçado ao cargo político mais importante do planeta com grande ajuda de campanhas de marketing e relações públicas, o atual ocupante da Casa Branca sabe que se contentar com objetivos óbvios é entrar para a história como derrotado.

Assim, como na regra três, ele sabe que menos vale mais. Portanto, nada melhor do que preencher as páginas dos futuros livros escolares no papel daquele que deixou o Iraque. O mesmo planeja fazer com o Afeganistão. Também almeja, é claro, reformular as negociações de paz entre israelenses e palestinos.

Por tudo isso, há um enorme esforço para que seu governo capitalize a retirada do Iraque. Muito embora, é preciso lembrar sempre, que 50 mil soldados americanos ainda permanecerão em território iraquiano até dezembro de 2011 – data correspondente ao cronograma de retirada estabelecido por George W. Bush. No imaginário mundial, entretanto, Obama já é o líder dos EUA que encerrou a ocupação. E nesses nossos tempos, percepção vale mais do que qualquer fato.

As opiniões de generais e autoridades americanas envolvidas não escondem a satisfação pelo fim da presença americana. Pelo contrário; fazem questão de ressaltá-la. Para o general Ray Odierno, o mais alto comandante dos EUA no Iraque, apenas uma situação de falha completa das forças de segurança iraquianas poderiam justificar o retorno das ações militares americanas no país. E isso ele fala com conhecimento de causa: após a invasão de 2003, Washington reconstruiu, treinou e armou os iraquianos do zero. Hoje, são 600 mil soldados locais que fazem a segurança nacional em toda a extensão do território. Não é pouca coisa, definitivamente.

O problema desse discurso é que ele ignora o caos político instalado. Como escrevi outras vezes, existe um vácuo de liderança. Simplesmente porque os iraquianos não conseguiram formar um governo de coalizão até o momento. Se isso persistir, a estratégia de democracia no Iraque pode sair pela culatra. Um dos maiores críticos à ocupação americana, o clérigo xiita Moqtada al-Sadr (foto)pode surgir como sério candidato ao papel de grande líder popular iraquiano. Apoiado amplamente pelas massas xiitas mais pobres, não é impossível que, após a retirada definitiva americana, ele decida retornar de seu exílio no Irã (país de maioria xiita e que tem grande interesse em influenciar a política do país vizinho).

Como aconteceu nos territórios palestinos, após a eleição legítima do Hamas, os EUA podem estar diante de um grande problema iminente. Se Sadr se valer do sistema eleitoral e vencer, será a maior derrota da Casa Branca no Oriente Médio deste século. Na prática, a estratégia americana a longo prazo terá simplesmente se resumido a fazer o trabalho duro de tirar o sunita Saddam Hussein do poder e entregar o país no colo de uma aliança regional com o Irã. Como Obama explicaria tal desastre a seus eleitores?

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O que se pode esperar das negociações entre israelenses e palestinos

A administração Obama tornou pública hoje uma de suas maiores conquistas. Após 20 meses de impasse, Washington anunciou ter conseguido convencer israelenses e palestinos a retomarem negociações diretas. Não se pode negar a magnitude de tal evento. Mas é preciso saber o que se pode esperar das reuniões previstas para o início de setembro, nos Estados Unidos.

Sem a menor dúvida, vai ser um show. E quando digo isso, refiro-me aos padrões estéticos, cobertura da imprensa, organização, pronunciamentos emocionados e todo o resto que Obama já mostrou saber fazer. Como escrevi pouco depois de sua vitória eleitoral, Obama é um presidente americano que supera o imaginário construído pelo cinema.

Porém, a grande dificuldade, como sempre, será conseguir resultados práticos. Israelenses e palestinos partem para os EUA com expectativas muito diferentes. A Autoridade Palestina aceitou o convite tendo como base nas declarações de princípios emitidas pela Quarteto – grupo formado por EUA, União Europeia, Rússia e as Nações Unidas – de que o encontro pretende discutir todas as questões pendentes para que se alcance um status final. Isso significa que as reuniões pretendem abordar pontos complexos, como a situação de Jerusalém, refugiados, assentamentos judaicos e as fronteiras definitivas de um Estado palestino.

O primeiro-ministro de Israel, entretanto, disse que irá participar da iniciativa, desde que não lhe sejam cobradas pré-condições. Benjamin Netanyahu já deixou claro não aceitar os termos usados no convite feito aos palestinos. Isso porque, se o fizesse, seria cobrado previamente pela coalizão que o mantém no cargo. Ele sabe como é arriscado para seu governo aceitar publicamente discutir tais questões. Acredito, no entanto, que, por mais que ele se empenhe em manter tal posição, possivelmente não terá como fugir dos temas mais espinhosos quando estiver reunido com a Autoridade Palestina e os mediadores.

Isso não quer dizer, de nenhuma maneira, que Bibi estará disposto a colocar todas as cartas na mesa. Até porque as lideranças palestinas que estarão nos EUA já não podem oferecer um acordo de paz pleno. A Autoridade Palestina dos dias de hoje tem capacidade bem mais limitada. Mesmo na eventualidade – muito improvável, por sinal. Diria impossível, para ser mais sincero – de que as partes consigam chegar a um consenso em todas as questões, a AP não tem como garantir que suas assinaturas seriam válidas em Gaza. Como se sabe, em 2007 o Hamas expulsou todos os membros da AP do território e, desde então, é o grupo radical quem dá as cartas de fato por lá.

Em seu projeto de busca por reconhecimento político internacional, o Hamas já emitiu um comunicado em que afirma que as negociações de paz com Israel servem como uma "tentativa de liquidar os direitos nacionais palestinos". Assinada por mais outros grupos radicais – alguns, inclusive, seculares –, a declaração procura minar os esforços moderados e, mais importante, enfraquecer a Autoridade Palestina.

Aliás, acredito que um resultado importante dos encontros nos EUA seria conseguir um esforço coletivo de israelenses, americanos e mediadores de fortalecimento da Autoridade Palestina e da economia regional. Seria importante que a Cisjordânia se transformasse num ponto de referência tecnológico, educacional e de desenvolvimento em todas as áreas. Assim, ficaria claro que a paz tem muito mais a oferecer do que a permanente busca por conflito. Esta seria a maior derrota para os radicais do Hamas, sem a menor dúvida.

Creio também que a iniciativa americana é válida. Mas é preciso encontrar soluções rápidas e práticas. Penso ser um tanto ilusório acreditar que as reuniões do início de setembro poderiam resolver todos os muitos e complexos aspectos do impasse entre israelenses e palestinos. Mas seria importante extrair medidas cujos resultados pudessem ser vistos num prazo mais imediato. Por exemplo, a garantia por parte de Netanyahu de estender o congelamento das construções de mais assentamentos na Cisjordânia; ou o compromisso por parte da Autoridade Palestina de luta contra os radicais e empenho nas negociações de paz.

Por fim, vale lembrar que a ampla conferência organizada por Washington interessa bastante à atual administração americana em seu projeto de reconciliação com os mundo muçulmano. Não por acaso, ela acontece em setembro, sucedendo a retirada no Iraque e a defesa do presidente Obama do projeto de constrição do centro islâmico nas proximidades dos escombros das Torres Gêmeas, em Nova Iorque.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Incêndios na Rússia evidenciam incompetência estratégica do governo

Por mais que se possa considerar os incêndios na Rússia como fruto de uma catástrofe da natureza, os sucessivos eventos de destruição mostram um pouco da decadência do país. Muitos dos feridos poderiam ter sido evitados se houvesse melhor estrutura de atendimento. Isso se refere a hospitais e mesmo efetivo para combater o fogo.

A administração Medvedev-Putin está no foco da crise. Enquanto mais de 3,5 mil pessoas estão sem teto e já há 54 mortos, as autoridades mostram certo descaso com a situação. E tudo se torna ainda pior quando se sabe que esta era uma tragédia anunciada, como muita gente tem lembrado.

"Depois de o então presidente Vladimir Putir assinar o Código Florestal em 2007 – que transferiu a responsabilidade de proteger as florestas do governo federal para empresas privadas e órgãos regionais mal-equipados e sub-financiados – especialistas avisaram que o país iria queimar no primeiro verão mais quente (que viesse a acontecer)", escreve a jornalista Yulia Latynina no Moscow Times.

Os líderes nacionais estão mais preocupados com macroeconomia. E isso tem um motivo.
A Rússia enfrenta grave crise, e as taxas de crescimento estão negativas. No ano passado, houve registro de retração de 8%. A previsão para este ano é que o índice fique positivo em 4%. Para completar, os incêndios pioraram a situação. Segundo as primeiras estimativas, o prejuízo é calculado por ora em mais de 300 milhões de euros, além da perda de 1 milhão de hectares.

E justamente num momento em que Putin e Medvedev se mostravam mais preocupados em pôr em prática o novo modelo de política externa. A estratégia pretende tornar a Rússia mais pragmática. Este novo perfil, que prevê, inclusive, maior aproximação com o Ocidente – até mesmo com os EUA –, contrasta com o que vinha sendo feito nos últimos anos. Talvez demonstre uma espécie de choque de realidade.

O problema é que, para agradar aos novos parceiros, o país pode passar por um grande constrangimento interno. Já se sabe das intenções de uma atuação mais firme no Afeganistão. Há projetos de reforma das mais de 140 instalações do período de ocupação soviética, e construção de hidrelétricas, pontes, poços e sistemas de irrigação. Os acordos podem chegar a valores superiores a 1 bilhão de dólares.

A questão que o governo russo enfrentará é como justificará internamente tal investimento se, por omissão e falta de estrutura, não conseguiu evitar a tragédia dos incêndios. No fundo, tudo isso deriva da grande dificuldade de Putin e Medvedev para interpretar qual papel a Rússia deve exercer no mundo de hoje. Para variar, é a população quem paga – muitas vezes com a própria vida – por esta miopia.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Reportagem sobre ataque de Israel ao Irã causa polêmica nos EUA

Se o programa nuclear iraniano enche páginas reais e virtuais - como esta, por sinal - de material há alguns anos, é chegado o momento em que se questiona seriamente a possibilidade de um ataque militar capaz de deter o desenvolvimento de armamento atômico. Pelo menos, é isso o que tem acontecido nos Estados Unidos. Por lá, o estopim foi a reportagem do jornalista Jeffrey Goldberg, da revista Atlantic.

O ideal é que, quem se interessar, leia a matéria. Ela está disponível aqui. Resumidamente, o texto reafirma a disposição israelense de atacar o Irã devido ao prazo cada vez mais exíguo que separa o regime islâmico de suas pretensões nucleares.

"Entrevistei cerca de 40 pessoas responsáveis pela tomada de decisão em Israel e também oficiais árabes e americanos. Em boa parte dessas entrevistas, fiz uma pergunta simples: percentualmente, qual a chance de que Israel ataque o programa nuclear iraniano num futuro próximo? Nem todo mundo respondeu, mas foi possível chegar a um consenso de que há 50% de chances de isso acontecer até o próximo mês de julho", escreve.

Vale deixar claro que se trata de julho do ano que vem, claro. Portanto, um prazo inferior a um ano. Não é preciso nem dizer o tamanho da polêmica que isso causou nos Estados Unidos. Há quem acuse o jornalista de propaganda, há quem o defenda. Após ler o que escreveu, penso que ele tinha o objetivo de responder a uma pergunta que muitos fazem. Ele ouviu fontes e deu voz a elas. Apenas isso. Definitivamente, não se trata de propaganda. Mas os leitores podem ficar à vontade para discordar.

O que acho curioso nisso tudo é a paixão com que o tema é tratado. Fosse a independência do Kosovo, a reivindicação de um Estado nacional checheno ou curdo, as reações seriam bem menos eloquentes.

Outro ponto interessante é perceber que existe uma grande fantasia em torno do tema. Neste momento, os comentários dos atores envolvidos têm sido discretos - mínimos, para ser mais exato. Todo o furacão causado por Goldberg gira em torno somente do fértil terreno da especulação. Este é um aspecto muito interessante e sedutor da política internacional. Aliás, é um dos que mais me atraíram para esta área; a real possibilidade de imaginar cenários a partir de eventos que ainda nem aconteceram.

A reportagem da Atlantic acabou por pautar muitas outras de outros tantos veículos. Israel irá atacar o Irã? Há pelo menos um artigo redigido todos os dias em jornais e revistas internacionais sobre o assunto. Eu mesmo já apresentei minha versão algumas vezes. Aproveitando a oportunidade, acho que o ataque israelense sempre será uma perspectiva no horizonte.

Principalmente por dois motivos: o primeiro, o programa nuclear iraniano causa muita tensão, principalmente pelas posições manifestadas uma centena de vezes pelo presidente Ahmadinejad; e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, precisa desta carta na manga para se manter no governo e, ainda mais claramente, de forma a unir a frágil coalizão que o sustenta no cargo.

No fim das contas, mesmo sem nenhum pronunciamento mais firme dos governos de Israel e EUA, a opinião pública americana se mobilizou em torno da reportagem de Goldberg. Vale a pena ler e tirar as próprias conclusões.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

A China segue rumo à liderança econômica, e os ocidentais têm pouco a comemorar

Aconteceu o que a estatística já previra. A China ultrapassou o Japão na lista das maiores economias do mundo. Agora, os chineses tomaram dos japoneses a segunda colocação. Em apenas 32 anos, a aceleração do governo de Beijing é impressionante. Quando, em 1978, Deng Xiaoping determinou o início do processo de abertura do mercado, ninguém imaginaria que em tão pouco tempo o país conseguiria atingir números impressionantes.
Na foto: porto de Shenzhen, cidade na fronteira com Hong Kong e primeira Zona Econômica Especial da China

A população de 1,3 bilhão de pessoas sustenta uma economia que, no segundo trimestre deste ano, foi responsável pelo PIB de 1,337 trilhão de dólares - contra 1,288 trilhão de dólares dos japoneses. A marca é relevante por alguns motivos: primeiro, porque destrona o Japão do posto que ocupava há 40 anos; segundo, estimativas preveem que a China conseguirá chegar ao topo do ranking, deixando os EUA na segunda colocação, entre 2027 e 2030.

Curioso mesmo é notar que o comunismo de mercado chinês parece não encaixar no regime a existência de uma classe média interna. O poder de consumo ainda é mínimo para os padrões ocidentais. Por mais que os números sejam impressionantes, a renda per capita é muito baixa. São 3,6 mil dólares por habitante. O número é semelhante ao encontrado em países com economias bem mais modestas, como Angola, Azerbaijão, Argélia, El Salvador e Albânia.

É preciso dizer também que, desde 1978, Beijing conseguiu tirar 300 milhões de pessoas da pobreza, de acordo com avaliação da ONU. Isso não é pouco.

Em artigo publicado no Diplomat, o professor MinxinPei, associado do Carnegie Endowment for International Peace, aponta outro problema. Muito grave, por sinal. Para ele, há reais possibilidades de a China sofrer com uma bolha imobiliária tão destrutiva quanto a que atingiu os EUA e que causou o dominó fatal no ocidente (principalmente na Europa).

Um dado me chamou a atenção: baseado nas aferições mensais do consumo de energia elétrica, há 65 milhões de unidades habitacionais - casas e apartamentos - que registram taxa zero de uso. Na prática, isso significa que as residências estão vazias. Ou seja, a informação aponta que as empresas continuam a construir, mas que ninguém mora nesses lugares. E isso acontece porque o poder de consumo é muito baixo. As construtoras permanecem recebendo empréstimos bancários para construir prédios absolutamente desabitados. A longo prazo, essa cadeia que não se fecha pode gerar uma crise de grandes proporções.

O curioso disso tudo é que, quanto mais a China cresce, menos o ocidente pode comemorar. No conceito tradicional, todas as grandes economias do mundo estariam celebrando se junto dos números astronômicos existisse também um mercado consumidor de verdade na China. Por ora, no entanto, os chineses operam uma via de mão única.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A batalha por corações e mentes no Paquistão

É possível interpretar a tragédia no Paquistão de duas maneiras: ela pode piorar ainda mais a situação do país ou realinhar suas políticas internas. Seguramente, é claro que nenhum dos dois caminhos vai ser fácil. É nos bastidores desta luta que se engalfinham alguns dos muitos interesses internacionais no território.

As estimativas sobre o impacto das chuvas são devastadoras: aproximadamente 16 milhões de pessoas – quase 10% da população – foram atingidas e estão em estágio de necessidade extrema. O tamanho do estrago é proporcional à importância de uma região que se tornou vital no jogo de poder dos dias de hoje.

O governo central em Islamabad é fraco. Este é um fato bem anterior às catástrofes naturais, mas que tornou tudo muito pior. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a raiz do problema é tão profunda que, agora, falta água potável. Se Islamabad não tivesse desviado os bilhões de dólares de ajuda americana que têm chegado desde a invasão ao Afeganistão, em 2001, a situação poderia ter sido contornada.

Nunca é demais lembrar que os discursos políticos, a atuação das ISI (as poderosas e ambíguas forças de segurança paquistanesas) e as articulações militares só têm olhos para a Índia. Não interessa a percepção internacional, os ataques de grupos radicais islâmicos em Lahore ou Karashi. A Índia é obsessão nacional. Por conta disso, bilhões de dólares destinados a treinamento, compra de armas e fortalecimento da sociedade civil foram desviados. Parte desta quantia poderia também ter sido usada na construção de represas, hidrelétricas e criação de estrutura que certamente ajudaria em momentos como o de agora.

A disputa pela água já é uma realidade na região. A nascente do rio Indus, que abastece toda a agricultura paquistanesa, encontra-se na Índia. O Paquistão teme que a possibilidade de os indianos manipularem a água se torne um impedimento para o crescimento de sua economia. Este não é um temor infundado. Nova Déli busca um papel ainda mais relevante na economia global e regional. Contar com este recurso representa uma vantagem capaz de alterar o equilíbrio de forças no sudeste asiático. Por si só, já é um tremendo argumento para os nacionalistas paquistaneses.

É neste cenário que as enchentes acabaram por inundar o ambiente de mais tensão. Mas o desafio de evitar que Islamabad decida partir para nova guerra contra os vizinhos pode ser uma esperança de mudança. Com o país em estado caótico, os EUA definitivamente se estabeleceram no papel de maiores doadores. Curiosamente, já era assim. Mas, mesmo diante dos números da grande ajuda econômica, pesquisa do Pew Research Centre mostra que 59% dos paquistaneses veem os americanos como seus maiores inimigos.

O caos instalado no Paquistão não desperta a gana apenas de Washington. Austrália, Arábia Saudita, Grã-Bretanha e Canadá correm para entregar ajuda. Todos sabem a importância de garantir presença por lá. Isso porque grupos como Jamaat-ud-Dawa, considerado pela ONU como terrorista, têm trabalhado no fornecimento de ajuda humanitária aos sobreviventes da tragédia. Este é o primeiro passo para reivindicar posicionamento político nos rumos de um país em frangalhos. O resultado deste tipo de atuação no Líbano e nos territórios palestinos mostra como isso termina. É por isso que as potências ocidentais estão correndo para serem percebidas como as principais agentes de ajuda.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Região de fronteira entre Líbano e Israel pode ser foco de novas tensões

É preciso admitir: algo está para acontecer. Principalmente por conta das investigações quanto ao envolvimento do Hezbolah no assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri. A suspeita levantada pelo analista Meir Javedanfar é ainda mais grave.

Ele aponta a possibilidade de, acuada, a milícia xiita tomar o poder no país. Isso não é impossível mesmo.

"Poderia ser de maneira sangrenta, envolvendo confrontos armados, ou não. Talvez, por exemplo, seria realizado algum tipo de acordo com facções rivais. O Hezbolah tem capacidade militar de fazer isso, na posição de única milícia do Líbano", escreve.

Ter capacidade militar para tomar o poder é a informação mais importante a se levar em conta. E, por isso, não se pode abrir mão do fortalecimento das forças regulares libanesas, como escrevi no texto de ontem. Se o xeque Hassan Nasrallah perceber que há provas contundentes quanto à participação de seu grupo no assassinato de Hariri, a tomada de poder pode se configurar como a única saída que julgará adequada à manutenção do status quo.

Na prática, creio que o Hezbolah não tem nada a perder. Se não ficar provado seu envolvimento no caso, garante a atual posição-chave que exerce no país. Se a milícia se sentir de alguma maneira ameaçada, toma o poder. E aí, para ela, mudaria o jogo de vez e de forma muito positiva. De força influente na política libanesa, passaria a mandatária de um Estado vizinho a Israel. Ou seja, alteraria a balança de poder do Oriente Médio, sua configuração e o frágil equilíbrio da região.

Para deixar tudo mais claro: na eventualidade de Nasralah aplicar de fato um golpe, duas importantes entidades teriam deixado de existir numa das mais tensas regiões do planeta num espaço de somente três anos. O Líbano, no norte, seria substituído pelo Hezbolah; a Autoridade Palestina, em Gaza, já deu lugar ao Hamas, desde 2007. Não por acaso, ambos são aliados do Irã.

Ninguém pode prever ao certo como tal cenário funcionaria na prática. Mas não há dúvidas de que representaria uma grande vitória para a aliança xiita comandada por Teerã. E aí cabe avaliar, também, se o episódio da troca de tiros entre os exércitos libanês e israelense na semana passada já se enquadra neste novo momento. Particularmente, acho que sim. Até porque, testar a reação internacional é algo muito relevante para o Hezbolah. Isso já aconteceu antes e tudo leva a crer que a estratégia de jogar uma pedra no lago foi usada novamente.

O problema, no entanto, é que, desta vez, Israel agiu com mais inteligência. Não apenas reagiu com a mesma intensidade ao ataque, como colaborou com a ONU. E mais: recebeu aprovação das Nações Unidas, algo muito raro para os padrões regionais. Talvez, se Jerusalém tivesse agido de outra maneira, o Hezbolah poderia ter conseguido um novo conflito de maiores proporções. Muito possivelmente, a milícia xiita vai levar adiante novos "testes" na fronteira. Tais iniciativas vão depender, basicamente, dos resultados apresentados pelo governo libanês sobre o assassinato do ex-premier Hariri.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Enquanto Hezbolah é investigado no Líbano, EUA acabam por fazer o jogo da milícia xiita

Rafik Hariri, ex-primeiro-ministro libanês morto em 2005, era uma figura política que passou a lutar pela real independência de seu país em relação aos sírios. É preciso deixar isso muito claro, antes de entender o jogo de cena que vem sendo montado no Líbano. O líder do Hezbolah, xeque Hassan Nasrallah, tem acusado Israel de envolvimento no assassinato do ex-premier. Por mais que esta hipótese seja a mais óbvia, é importante ter em mente que a influência síria sempre agradou bastante ao Hezbolah.

Hezbolah, Síria, Hamas e Irã estão no mesmo lado da disputa estratégica pela hegemonia no Oriente Médio. Insuflar a opinião pública libanesa contra os israelenses serve aos interesses desta aliança. Por isso, Nasrallah tem repetido o mantra da participação de Israel no episódio de cinco anos atrás. Obviamente, o governo de Jerusalém nega as acusações. Afastar a possibilidade de a Síria continuar a decidir os rumos políticos no Líbano talvez fosse o único ponto de convergência entre as posições de Israel e do ex-primeiro-ministro Hariri.

Envolver Líbano e Israel num novo conflito seria algo bastante interessante ao Hezbolah. Principalmente, quando as autoridades libanesas passam a investigar a milícia xiita e sua participação no assassinato de 2005. Mais uma vez, uma guerra ratificaria a importância política do grupo no jogo regional, além de diminuir a pressão internacional sobre o Irã.

Aliás, a semana tem sido marcada pela discussão sobre a ajuda americana ao exército regular libanês. Howard Berman, democrata presidente do Comitê de Relações Exteriores da Câmara de Representantes dos EUA, anunciou nesta semana que ele pessoalmente usou suas prerrogativas políticas para congelar a transferência de 100 milhões de dólares em assistência militar para as forças libanesas. O argumento é de que equipamentos americanos enviados para o Líbano poderiam ser usados contra Israel.

Isso poderia acontecer mesmo. Mas, calculando friamente prejuízos e benefícios, o melhor a fazer é mesmo fortalecer o frágil exército libanês. Com 55 mil homens e sem praticamente dispor de força aérea, as forças regulares do país representam a única alternativa à atuação do Hezbolah. Mesmo Israel prefere, sem nenhuma dúvida, a presença de militares libaneses na fronteira norte a homens armados da milícia xiita fazendo frente a seus soldados.

E não apenas isso. De certa forma, ao fortalecer o exército do Líbano, os EUA evitam que o Irã se faça presente na região. Por sinal, numa tentativa de ganhar a simpatia da população, o Irã se pronunciou sobre o assunto. Disse que, se a ajuda americana for realmente interrompida, a república islâmica se compromete a enviar os mesmo 100 milhões de dólares.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

As eleições brasileiras e as crises internacionais do momento

A diplomacia brasileira está em suspenso. Espera ansiosamente pela resolução de algumas das crises mais importantes para o Itamaraty. Uma delas - o conflito verbal entre Venezuela e Colômbia - parece estar bem encaminhada. Chávez e Santos se sentaram à mesma mesa e fizeram juras de confiança mútua. Pelo menos até a próxima acusação colombiana quanto à presença de guerrilheiros das Farc em território venezuelano, claro. A outra aresta a aparar é bem mais complexa. Diz respeito à relação com o Irã.

Lula acatou a resolução contra o regime de Teerã aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU. Ao anunciar que o presidente brasileiro ratificaria as medidas, o chanceler Celso Amorim usou o termo "a contragosto". Tal colocação não é por acaso. Tão importante quanto se integrar aos países que aplicarão as sanções é lembrar que o governo brasileiro não concorda com elas. Não apenas é uma forma de novamente se posicionar, mas também de reafirmar as intenções globais do país.

No entanto, por mais que a decisão do Conselho de Segurança não agrade aos propósitos internacionais de Brasília, não há nada a fazer, a não ser acatar mesmo. E digo isso porque não tomar parte na iniciativa chancelada nas Nações Unidas seria um tremendo tiro no pé para as ambições do Brasil. Afinal, quando a posição oficial é defender com entusiasmo e assertividade o multilateralismo, é preciso saber perder a discussão. E foi isso o que aconteceu.

Mas todo este grande concerto político internacional não se esgota em si. Pelo contrário. O objetivo maior dele é evitar fornecer mais material para os candidatos de oposição à presidência. Não há dúvidas de que Serra e Marina irão usar as controversas alianças forjadas por Lula para polarizar o debate. Isso, inclusive, já está sendo feito. Discretamente, no entanto.

"Eu tenho dito que é preciso que a gente tenha uma visão de negociação, mas, no caso do Irã, o Brasil deu audiência desnecessária para um governo que desrespeita os direitos humanos, que tem como objetivo construir a bomba atômica – e que tem sinalizado isso historicamente – e não se dispõe a quebrar esse paradigma”, disse Marina Silva, em campanha, nesta terça-feira.

Serra também vai fazer uso deste mesmo discurso. Não tenham dúvidas. Mas ambos os candidatos de oposição aguardam o melhor momento. Acredito que isso vai acontecer mais para o final da campanha, variando de acordo com as pesquisas de intenção de voto.

Serra e Marina creem que não se pode desperdiçar um tema tão importante logo de cara. Como tenho escrito, esta é uma das poucas "vidraças" deixadas pelo governo e cuja aprovação depende tão somente das convicções de cada um - ao contrário de outros pontos em que os números são bastante favoráveis a atual administração.

Retomando a relação entre Brasil e Irã, a oferta de Lula para receber no Brasil Sakineh Ashtiani - mulher acusada de adultério e condenada à morte - procura reverter favoravelmente as críticas às opções internacionais brasileiras. Se Ahmadinejad estivesse realmente disposto a contribuir para a eleição de Dilma, certamente levaria em consideração o apelo do presidente brasileiro e cancelaria a execução.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Construção de centro islâmico ao lado do Marco Zero provoca polêmica nos EUA

O debate em torno dos escombros do 11 de Setembro continua vivo. Agora ainda mais, após ficar acertado que um centro cultural islâmico de 13 andares deverá ser construído a apenas duas quadras das ruínas das Torres Gêmeas. O que seria uma simples construção, obviamente passou para o terreno político. Não poderia ser diferente.

A verdade é que no lugar onde se pretende erguer Park51 - o nome do edifício - já funciona uma mesquita. A questão agora é que muitos americanos veem a nova obra como um desrespeito às vítimas do maior atentado da história do país. Eu entendo esta visão e, de fato, não condeno quem pensa desta maneira.

É preciso levar em conta, no entanto, outro argumento mais sofisticado. A intenção dos idealizadores do projeto é plantar no local um centro que, apesar de islâmico, fomentará o debate mais amplo entre as diferentes religiões. A iniciativa, inclusive, levava o nome de Córdoba, em homenagem à cidade espanhola que, no período medieval, foi palco de uma das épocas de maior harmonia entre as três principais crenças monoteístas.

Mais eficaz do que rejeitar o islã – discurso que seria bastante adequado aos fundamentalistas que realizaram os ataques de 2001 –, é plantar uma semente de tolerância religiosa. Mais inteligente do que se opor à diversidade é ressaltá-la como qualidade. Aliás, esta é uma das grandes contribuições dos EUA. Por sinal, tal visão pluralista sobre a humanidade é exatamente o que mais perturba os fundamentalistas islâmicos.

"Estaríamos traindo nossos valores e nos colocando nas mãos de nossos inimigos se tratássemos os muçulmanos de maneira diferente. Na verdade, ceder ao sentimento popular seria entregar a vitória aos terroristas, algo inaceitável", disse o prefeito de Nova Iorque, o judeu Michael Bloomberg.

Quando faz menção ao "sentimento popular", Bloomberg se refere aos 61% da população que se opõem ao estabelecimento do centro islâmico num terreno tão próximo ao marco zero. A oposição mais ferrenha é manifestada pelo Partido Republicano e pelos parentes das vítimas do atentado.

Resta saber quem serão os doadores do projeto estimado em 100 milhões de dólares. Certo mesmo é que a polêmica não está para terminar. Um dos fundadores do Park51, o imã Feisal Abdul Rauf, já protagonizou controvérsias recentes: afirmou publicamente que a política externa americana foi parcialmente responsável pelo 11 de Setembro e também se recusou a dizer, durante uma entrevista de rádio, se considerava o Hamas um grupo terrorista.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Em painel interno sobre flotilha turca, Netanyahu exercita reversão de crise

É a partir de amanhã, em Nova Iorque, que uma comissão determinada pela ONU começa a investigar o episódio da abordagem israelense à frota de navios turcos que tentaram furar o bloqueio a Gaza. Hoje, em Israel, no entanto, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, prestou depoimento de uma hora e meia ao painel formado localmente para determinar as falhas em torno do imbróglio. É preciso ressaltar alguns pontos importantes de seu testemunho:

"O Irã forneceu ao Hamas milhares de mísseis, foguetes e outras armas que foram usadas – e ainda são – contra Israel", disse. Ao mencionar o Hamas e o Irã, Netanyahu procura ampliar o episódio da frota de modo a enquadrá-lo dentro do grande jogo político que tem tomado conta da região.

Aprofundar a questão - já sabendo que, obviamente, suas palavras correrão a imprensa internacional – é tenta mandar um recado aos líderes mundiais sobre o que acredita ser a missão de seu governo: confrontar o Irã, os demais membros da aliança xiita e, principalmente, tudo o que representam.

O primeiro-ministro israelense sabe de seus limites. Articular um acordo de paz com os palestinos não é seu forte. Mais ainda, esta tarefa é identificada pelas próprias lideranças formais palestinas - no caso, o Fatah, do presidente Mahmoud Abbas - como um trabalho a ser feito pela líder do Kadima (o mais forte partido de oposição atualmente), Tzipi Livni. Netanyahu sabe disso. Como também tem profundo conhecimento da enorme rejeição de todos os palestinos a seu governo e a ele particularmente.

Para entender de forma ainda mais clara as intenções de Netanyahu ao tirar o foco de um conflito entre israelenses e palestinos e ampliá-lo para o grande confronto regional, basta lembrar quais os partidos formam a coalizão que o sustenta no cargo: Religiosos e nacionalistas que jamais aceitariam, por exemplo, um acordo definitivo com os palestinos que desse fim a todos os assentamentos judaicos na Cisjordânia.

De fato, não se pode ignorar o conflito regional em curso quando se analisa o episódio da abordagem israelense ao navio Mavi Marmara. Mas Netanyahu aproveitou esta oportunidade para ressaltar ainda mais os aspectos geopolíticos que o favorecem pessoalmente.

Ele sabe de suas limitações como articulador da paz. Mas entende que é possível enfatizar suas qualidades de estrategista. As palavras que usaria foram estudadas durante dois dias porque viu o depoimento como mais uma oportunidade de se adequar às perspectivas também de seu público interno.

Por exemplo, ao mencionar que as ações em Gaza têm como principal objetivo o retorno do jovem soldado Gilad Shalit a Israel, ganha enorme popularidade com os israelenses. Como o serviço militar é obrigatório, praticamente toda a população tem ou já teve alguma relação com as forças armadas. E o caso de Shalit é uma enorme ferida que permanece aberta nacionalmente.

A partir desta terça-feira, vamos conhecer a versão internacional da posição israelense. Ela ficará a cargo de Yosef Ciechanover, ex-diretor-geral do Ministério das Relações Exteriores e empresário bem-sucedido: foi presidente da companhia aérea israelense El Al e do quadro de diretores do Israel Discount Bank.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Semana marca nova movimentação de lideranças do Oriente Médio

Denúncia publicada hoje pelo A Sharq al Awsat - jornal árabe publicado em Londres - dá conta de que o diretor do serviço secreto israelense, Yuval Diskin (foto), teria visitado o Egito nesta quinta-feira para se encontrar com oficiais de segurança egípcios. No centro das discussões, os mísseis lançados nesta semana a partir do Sinai e que atingiram Eilat, em Israel, e o golfo de Áqaba, na Jordânia.

Segundo notícia publicada pelo Haaretz repercutindo informações da Ma'an, a agência jornalística palestina, o governo do Cairo declarou também estado de emergência ao longo da península do Sinai. O presidente Hosni Mubarak teria enviado agentes em busca dos militantes responsáveis pelo ataque. De acordo com relatos, os autores dos lançamentos ainda estariam na região.

Tal cooperação por parte dos egípcios não é gratuita, nem muito menos mostra qualquer preocupação com o bem-estar da população israelense ou jordaniana. No centro deste episódio, a suspeita quanto aos realizadores do ataque: radicais do Hamas a serviço de membros da inteligência iraniana.

E o presidente Hosni Mubarak é parte importante da grande batalha que se desenha no Oriente Médio. Como um dos principais atores sunitas da região, não é nenhuma novidade sua oposição ao Hamas. Principalmente pelo fato de o grupo ser o braço palestino da Fraternidade Muçulmana – que representa a mais feroz crítica à administração do presidente egípcio. Punir os radicais palestinos que lançaram mísseis a partir do Sinai é aproveitar a oportunidade também de manter o controle interno da situação.

Do ponto de vista do cenário regional mais amplo, o Irã - que começa a sofrer sanções mais severas - tem mantido a coerência: opta pela política externa ambígua, de modo a confundir a opinião pública internacional e os grandes atores.

O episódio dos mísseis é mais um aspecto da mobilização iraniana de seus satélites na fronteira com Israel. Provocar um conflito aberto entre israelenses e membros do Hamas ou entre israelenses e o Hezbolah - neste último caso, no norte do Estado judeu - pode ser uma alternativa para escapar do foco. Por conta disso, o governo de Jerusalém tem agido, de certo modo, com mais inteligência. Na última semana, contribuiu com a ONU duas vezes: ao aceitar que a ação de abordagem do navio turco fosse investigada pela instituição; e ao acatar o pedido das Nações Unidas de evitar uma escalada de violência na fronteira com o Líbano.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Morte de Ahmadinejad mudaria muito pouco a atual política iraniana

Sobre a tentativa - ou não, ainda está indefinido - de assassinato de Mahmoud Ahmadinejad, é preciso abrir o tema com uma notícia muito mais importante: o Irã conseguiu comprar da Bielo-Rússia mísseis S-300. O equipamento militar, que há tempos representava uma das grandes ambições de Teerã, possui a vital capacidade de derrubar aviões militares e mísseis que venham a ameaçar a república islâmica. Dá para entender o que isso pode significar diante do aumento das tensões regionais.

É curioso também perceber que, por mais que EUA e União Europeia tenham aprovado duras sanções ao regime de Ahmadinejad, não foi possível impedir a compra de armamento tão importante para o equilíbrio regional - e também para as defesas iranianas no caso de um ataque ao país.

Quanto ao episódio de quarta-feira, é preciso dizer que há muita gente interessada em dar fim à vida de Ahmadinejad. Israel e EUA são apenas as menções mais óbvias. A ver: os militantes da minoria sunita do Sistão-Baluchistao, os igualmente minoritários curdos do noroeste do Irã. Vale sempre lembrar o ataque promovido pelo Jundallah, em julho, que deixou quase 30 mortos após a explosão de um terrorista suicida numa mesquita na região sudeste do país.

Houve quem suspeitasse da possibilidade de tudo não ter passado de uma armação do governo iraniano para culpar as potências ocidentais e unir a opinião pública interna em torno do presidente. Não acredito nisso. Pelo simples e óbvio fato de a imprensa oficial e autoridades da república islâmica terem negado a existência do atentado. Se houvesse comoção e discursos raivosos comentando o assunto, aí este cenário poderia ser considerado. Não foi este o caso.

De qualquer maneira, mesmo que Ahmadinejad fosse assassinado, é possível afirmar que haveria pouca ou nenhuma mudança. Em dois dos aspectos importantes para o Ocidente: o regime político e o programa nuclear. A simples ausência do líder iraniano não alçaria as vozes de oposição interna às posições-chave nacionais. Muito pelo contrário. Primeiro porque o sistema permaneceria o mesmo. Segundo porque o líder-supremo, o Aiatolá Ali Khamenei, continuaria a dar as cartas. E ele indicaria alguém cujo perfil o agradasse para concorrer nas eleições que apontariam o substituto de Ahmadinejad.

Como Khamenei também considera estratégica o avanço do programa nuclear, a eventual morte do atual presidente não apontaria o fim do principal tema de controvérsia com as potências ocidentais. Aliás, não é impossível imaginar um cenário onde um atentado contra Ahmadinejad seria capaz de transformá-lo num mártir nacional. Tal evento poderia, inclusive, agregar parte da oposição em torno da defesa nacional. Até porque, como já comentei outras vezes, mesmo os concorrentes à presidência no pleito do ano passado jamais condenaram o programa nuclear do país.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Ampliando a discussão em torno das declarações de Lula sobre mulher acusada de adultério no Irã

Imaginava que um dos grandes focos de debate eleitoral presidencial brasileiro seria em torno das opções internacionais do governo Lula. Não sabia, no entanto, que este tema mobilizaria os candidatos de tal maneira como tem ocorrido. Como escrevi há alguns dias, as decisões do Itamaraty nos últimos oito anos são um dos poucos aspectos que não apresentam resultados práticos de melhoria em termos absolutos. O apoio ou condenação da plataforma internacional construída depende de convicções pessoais.

Por conta disso, o episódio do possível apedrejamento da iraniana Sakineh Ashtiani é muito favorável à oposição. Por manter relações de proximidade com o governo de Teerã, Lula se transformou em vidraça nesta questão. A situação de impasse no Irã e a justa comoção internacional acabaram por se configurar como armadilha para o presidente brasileiro. Se nada fizesse, os concorrentes usariam a memória de outro momento delicado recente: o silêncio sobre os dissidentes políticos cubanos.

Assim, era preciso se posicionar. Lula ofereceu asilo. E recebeu resposta direta e nada delicada da imprensa estatal iraniana (que, no fim das contas, representa a posição oficial do governo Ahmadinejad): este é um assunto interno do país, Lula está mal-informado e sua opinião sobre o caso deriva do fato de ele ser uma pessoa emotiva. A oposição vibra. Mas nada é tão simples quanto parece.

De fato, mesmo em franca campanha por Dilma, o presidente brasileiro poderia ter exposto sua opinião considerando um pensamento estratégico. Por exemplo, comovido com a situação e, diante da imprensa no comício em Curitiba onde se pronunciou, seria lícito se dissesse que o Ministério das Relações Exteriores estava em contato direto com as autoridades iranianas para buscar uma solução menos traumática. Esta seria uma resposta que agradaria e ao mesmo tempo não permitiria tal exposição a ponto de levar um safanão diplomático como o que ocorreu.

Mas, como não imaginava que os aliados iranianos cometeriam tal indelicadeza às vésperas das eleições brasileiras, Lula acabou por fazer o jogo da oposição. Não apenas mostrou ingenuidade, como também forneceu material para contestar o desequilíbrio das relações bilaterais com Teerã. Mais ainda, ao começar a contra-atacar a partir das críticas de Serra e Índio da Costa, o presidente permite que PSDB e DEM pautem as discussões da campanha - uma velha estratégia usada em jogos de debate.

Para justificar as declarações que causaram tamanha polêmica internacional, Lula usou o mesmo argumento das autoridades iranianas para desconsiderar suas posições: sua natureza emotiva.

"Eu estava em Curitiba em um comício com a minha candidata, que é mulher, quando vi as fotos da iraniana enterrada até o pescoço", disse.

Se por um lado as palavras podem ser interpretadas como sinal de fraqueza, elas também humanizam ainda mais a carismática figura do presidente - e carisma é algo que não se consegue enxergar em Serra. Nem em Marina.

E a reversão desta crise ainda pode ocorrer. Basta que o Irã recue na decisão de aplicar a pena de morte a Sakineh Ashtiani. Outro ponto interessante: as palavras de Lula foram ouvidas em Teerã. Suas declarações correram o mundo, sendo repercutidas nos principais veículos da imprensa internacional. Mais uma prova de força do presidente. Muito possivelmente, se tal apelo fosse feito por um líder brasileiro há dez anos, seria completamente ignorado
.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Obama deixa o Iraque em busca de apoio para as eleições legislativas americanas

Quando o presidente americano, Barack Obama, anuncia o retorno das tropas e cumpre o cronograma de retirada do Iraque, é preciso fazer duas ressalvas justas: 1 - não foi ele quem ordenou a invasão do país, em 2003; 2 - Obama sempre se mostrou contrário a esta guerra. Aliás, longe da parafernália midiática em torno daquele vergonhoso "mission accomplished" (missão cumprida) de George W. Bush, proferido no longínquo 1 de maio de 2003, o atual ocupante da Casa Branca foi mais comedido e realista. Tão absolutamente realista que é fundamental lembrar que opção por manter o retorno das tropas ocorre apenas três meses antes das eleições legislativas americanas.

E Obama não é nada bobo. É um astuto jogador político que sabe valorizar a importância de manter uma de suas mais importantes promessas de campanha. Não importa se intimamente ele seja mesmo um ferrenho opositor das guerras – e desta guerra iniciada sem a apresentação das provas que a justificariam. É muito mais significativo que Obama contemple as expectativas de seu eleitorado. Retirar-se do Iraque é um desses casos, muito possivelmente o mais importante deles. Até porque reafirmar personalidade, ideologia e condutas diametralmente opostas a Bush é relembrar os motivos pelos quais Obama ganhou as últimas eleições. E nada melhor do que fazer isso às vésperas de outro pleito.

O Iraque, portanto, é o exemplo mais básico e icônico do imaginário construído sobre o ex-presidente Bush. Por consequência, é o aspecto mais simples a ser usado para posicionar Obama. No fundo, a ideologia do atual presidente é o que menos importa neste caso. Para retomar o caminho da popularidade e da vitória nas urnas, a guerra do Iraque - amplamente identificada com a doutrina Bush de governar - é o símbolo máximo da polarização entre os dois últimos presidentes americanos. Este é o imaginário popular. E é isso o que importa.

Sob qualquer análise, invadir o Iraque não foi uma boa decisão. Em termos financeiros, cerca de 1 trilhão de dólares foram gastos. Este dinheiro não retornará ao caixa americano. Pior, aproximadamente 100 mil pessoas morreram. O objetivo da incursão militar não era simplesmente remover Saddam Hussein, mas fazer do país um modelo de democracia a ser admirado e copiado pelas massas que se mobilizariam espontaneamente na região. Isso não está nem perto de acontecer.

Mesmo no Iraque, a primeira transição política democrática passa por um entrave. Cinco meses após a realização de eleições parlamentares, ainda não há consenso para a formação do governo local. Pior, existe chance de a maioria xiita estabelecer uma forma de liderança ditatorial com sede de vingança pelos anos de supremacia da minoria sunita com Saddam Hussein. Do ponto de vista geopolítico, este cenário é ainda pior do que o existente antes da guerra, uma vez que um governo com essas características contaria com amplo suporte do vizinho xiita Irã.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Processo de paz no Oriente Médio já está ameaçado antes mesmo de recomeçar

Os cinco foguetes disparados nesta segunda-feira ´(foto) de algum ponto do deserto do Sinai e que caíram em Israel e Jordânia tinham um alvo teórico. O objetivo dos mísseis era atingir o processo de paz entre israelenses e palestinos, mesmo antes de a iniciativa tomar alguma forma. Isso está claro. Até porque a escalada de violência foi iniciada desde a última quinta, quando a Liga Árabe se posicionou favoravelmente à retomada de negociações diretas.

Logo no dia seguinte ao anúncio, o Hamas lançou mísseis grad, de fabricação iraniana, contra a cidade portuária israelense de Ashquelon. Israel teria retaliado contra Gaza, matando Eissa al Batran, comandante do grupo. Eu usei o futuro do pretérito na medida em que a ação não foi confirmada pela força área israelense. E não há nada de errado nisso porque, normalmente, ambos os lados assumem suas operações.

Acredito mesmo que o interesse do Hamas seja desestabilizar o início de um processo de paz. Por alguns motivos: primeiro, porque um acordo é incompatível com os princípios defendidos pelo grupo, que nega o direito de existência a Israel; segundo, por conta do papel de pressão que os EUA têm exercido para a retomada do diálogo; terceiro, por conferir ao Fatah, facção que comanda a Autoridade Palestina e grande rival interno do Hamas, a legitimidade de decidir os rumos do povo palestino; e quarto, para agradar a seus financiadores no Irã.

A quarta razão que motivou a nova onda de ataques é importante porque se enquadra na grande luta em curso no Oriente Médio. Como pretensa potência hegemônica do Oriente Médio, o Irã não poderia aceitar ficar de fora do mais importante conflito regional. É preciso atuar de alguma maneira. Simplesmente acatar as decisões da Liga Árabe - da qual não faz parte, até por não ser um país árabe - não é uma opção.

Daí o apoio ao Hamas. Os interesses dos dois se complementam de alguma maneira. O Hamas precisa de armamento iraniano e não pode admitir o fim do conflito; Teerã precisa se impor na região e, por isso, mantém satélites nas fronteiras norte (Hezbolah) e sul (Hamas) de Israel.

À parte das articulações políticas, é preciso saber também como pensam os palestinos comuns sobre este cenário. Pesquisa realizada pelo Centro Palestino de Pesquisa e Avaliação Política mostra números que podem ser interpretados com olhar positivo ou negativo, dependendo de quem os analise. Do total de entrevistados, 43,8% apoiam de alguma maneira a execução de ataques a civis israelenses dentro de Israel; no entanto, 53,9% são contrários a esta estratégia de luta. Ou seja, é como aquele ditado sobre o copo meio cheio ou meio vazio. Depende de quem olha.

Um olhar político, no entanto, mostra que, apesar da maior parte se opor a atentados e violência, ainda há 43,8% dos palestinos dispostos a apoiar as operações conduzidas pelo Hamas. E esta é uma parcela da população grande o bastante para que os radicais se encham de legitimidade de forma atrapalhar a Autoridade Palestina e o processo de paz.