domingo, 22 de dezembro de 2013

A Europa em transformação

No final de 2013, as perspectivas para o futuro próximo na Europa são estranhas. A situação de impasse na Ucrânia é apenas um dos muitos aspectos que colocam o futuro do continente em aberto. E quando digo isso não me refiro somente às boas perspectivas. A crise já não soa há algum tempo como algo passageiro. Acabo sempre insistindo neste ponto porque realmente considero-o importante. Há meia década, o continente está afundado em desemprego, recessão e nos mirabolantes e exigentes planos de “austeridade” preparados pelos governos. Historicamente, meia década não é lá algo relevante, mas no dia a dia de quem perdeu emprego e benefícios sociais é uma eternidade.

Diante deste cenário, o impasse ucraniano aponta os sinais de que países, pessoas e entidades políticas não estão dispostos a esperar o tempo passar e torcer por uma virada de jogo. O que se vê é um continente revolvido por tentativas de aplicação de novas e velhas ideias – muitas delas representadas por fórmulas de um passado terrível para a Europa e para a humanidade. É o caso dos novos partidos de inspiração fascistas, como o Alvorada Dourada (Grécia), Frente Nacional (França), Partido da Liberdade (Holanda) e Jobbik (Hungria). Longe de inofensivos, essas legendas estão cada vez mais presentes na realidade política de seus países. Segundo o New York Times, o Jobbik pode se tornar a segunda principal força do parlamento húngaro, e, em maio de 2014, há risco real de a extrema-direita obter resultados expressivos nas eleições para o Parlamento Europeu.

Há também outro tipo de resposta à crise. Se antes aderir à União Europeia era uma espécie de destino manifesto no continente, questioná-lo é, atualmente, uma realidade para lá de corriqueira. Caso do movimento 5 Estrelas, do comediante-político italiano Beppe Grillo e da própria Grã-Bretanha, que, em 2017, realiza referendo popular para decidir se permanece ou se pula fora do bloco. Diante disso tudo não é espantoso ler artigo publicado no Wall Street Journal assinado por Catherine Ashton, Alta-representante da UE para Assuntos Externos e Política de Segurança e Vice-presidente da Comissão Europeia. No texto, ela questiona o fato de as decisões sobre defesa ainda serem tomadas individualmente pelos 28 membros nacionais. Ou seja, Ashton ainda é uma representante do projeto original que tinha como ambição a constituição em médio prazo de uma entidade única supranacional. No contexto atual, isso anda cada vez mais em baixa, mas não deixa de ser um pilar das disputas continentais em curso.

E é justamente em função disso tudo que a crise ucraniana é tão interessante. A medição de forças entre eurocêntricos, eurocéticos e neo-fascistas não é exatamente nova. Novidade é que esta guerra verbal e política deve se tornar cada vez mais intensa. O caso da Ucrânia é emblemático porque apresenta um caminho novo (e aí não faço qualquer juízo de valor sobre ele): a Rússia disposta a desafiar a União Europeia abertamente, sem fazer concessões.

No limite máximo, ou seja, na visão mais radical sobre o potencial dessas mudanças, todos esses movimentos prometem transformar a realidade europeia tal como a conhecemos no significativo intervalo entre o final da Segunda Guerra Mundial e a primeira década do século 21

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Na Ucrânia, revolta contra o modelo político

O impasse politico e social na Ucrânia encontra algumas semelhanças com os protestos de junho no Brasil. Assim como aconteceu por aqui, a revolta popular não se resumia ao aumento das passagens de ônibus, mas, principalmente, ao uso da máquina pública para benefícios privados. 

No Brasil, o péssimo serviço de transporte público que não é público (afinal, o Estado entrega concessões de linhas de ônibus a empresas privadas, por exemplo) é bastante representativo do modelo de escolhas e decisões políticas que atendem aos interesses partidários e políticos, mas não públicos. No meio de tantas demandas brasileiras, essa que era a principal mensagem dos protestos de junho acabou perdida devido ao impacto dos acontecimentos na vida cotidiana e na cobertura da imprensa. O objetivo inicial das manifestações era deixar claro a insatisfação com este modelo. 

Na Ucrânia, parte da população está insatisfeita com a gestão que privilegia a relação estratégica entre os presidentes Yanukovich e o presidente russo, Vladimir Putin. Na verdade, os anseios populares vão além; as pessoas percebem o valor estratégico ucraniano e o leilão em curso. 

Há muita oferta de dinheiro, mas pouco interesse na melhoria das condições de vida. A China acena com a possibilidade de investir 7 bilhões de dólares; a Rússia oferece descontos de até 9 bilhões de dólares nos preços do gás (um dos principais instrumentos de atuação internacional russa), caso a Ucrânia aceite aderir a um bloco regional liderado por Moscou; e o Fundo Monetário Internacional (FMI) poderia negociar um empréstimo de 15 bilhões de dólares, desde que Kiev impusesse medidas restritivas à população comum, entre elas o já conhecido pacote de austeridade que incluiria até o aumento do preço do gás doméstico. 

Diante deste cenário, os ucranianos perguntam o óbvio: se o governo não consegue responder aos anseios populares, por que não assina o acordo de adesão à União Europeia? Por que o presidente Yanukovich aceita transformar o país num instrumento geopolítico da fantasia soviética vintage de Vladimir Putin? E tudo isso levou os ucranianos às ruas. 

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Queda de braço entre Rússia e União Europeia na Ucrânia

Os ucranianos estão novamente nas ruas. Desta vez, são os últimos a aderir à nova onda de protestos internacionais contra a classe política estabelecida. É claro que em cada um dos países onde o modo de manifestação popular ocupou ruas e espaços públicos as demandas eram diferentes. No caso da Ucrânia, há uma enorme sensação de retorno ao ponto que muitos consideram como o inicial desta rebeldia popular internacional. A Revolução Laranja, como ficou conhecida a bem sucedida manifestação de 2004 e 2005, conseguiu derrubar o então presidente Viktor Yanukovich – curiosamente, o atual presidente (eleito novamente ao cargo em 2010). 

Se por um lado o processo de rebelião popular tem razões muito claras, a situação geopolítica ucraniana é mais complexa. A insatisfação que levou novamente milhares às ruas foi a recusa de Yanukovich de celebrar um esperadíssimo acordo de adesão do país à União Europeia. Isso explica parte da situação. 

A outra parte diz respeito à batalha internacional pelo direito a ter a Ucrânia sob distintos guarda-chuvas. A guerra de poder é, novamente, entre Ocidente e Oriente; entre a União Europeia – que tem a sua própria agenda política – e a Rússia – encabeçada por Vladimir Putin. O líder russo deixa muito evidente suas intenções de vender caro quaisquer manobras que considere ocorrer no que julga ser sua esfera de atuação ou, para ser ainda mais específico, a área de influência da Rússia, um país que neste ano já deixou claro quer não abre mão do protagonismo internacional. 

Se Putin não aceitou ser deixado de lado na abordagem ocidental à Síria, como deixaria barato um acordo da União Europeia na Ucrânia? E não apenas porque Rússia e Ucrânia fazem fronteira, mas porque fábricas ucranianas são dependentes de matéria-prima russa, porque a Ucrânia foi parte da Rússia, porque parte da população ucraniana ainda hoje fala russo, porque a Ucrânia é amplamente abastecida por gás russo. 

Por outro lado, a oferta de benefícios econômicos da União Europeia é atraente. Aderir ao bloco não é somente ter acesso a esses benefícios, mas, do ponto de vista da população, o direito ao livre trânsito pelos países – mesmo em tempos que a UE atravessa crise. A adesão implica também no rompimento com os russos. Não por acaso a chanceler alemã Angela Merkel disse claramente que é chegada a hora de oferecer aos ucranianos novas fontes de energia, o que considero uma mensagem clara ao presidente Putin. 

A disputa na Ucrânia é entre Rússia e União Europeia. Mas a resolução deste dilema passa também pelas disputas internas na própria Ucrânia. Com a população bastante dividida, qualquer que seja o resultado final certamente vai deixar muita gente insatisfeita. 

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Bomba na embaixada do Irã em Beirute: no Oriente Médio, tudo está conectado

Este é um momento importante no Oriente Médio. Aliás, como o senso comum corretamente estabeleceu no Ocidente, o Oriente Médio é repleto de momentos importante. A região é complexa mesmo e há poucos eventos que podem ser considerados isolados. Agora não é diferente. Enquanto os iranianos negociam seus interesses nucleares na Suíça, o atentado terrorista que mandou a embaixada do país pelos ares no Líbano grita para quem quiser ouvir que nada fica impune no Oriente Médio.

Esta premissa está tão correta que conecta, de uma só vez, o programa nuclear iraniano, a crise humanitária na Síria e o cenário regional mais amplo, envolvendo os Estados árabes do Golfo Pérsico, o Afeganistão, Israel e os ocidentais que querem ser ou deixar de ser parte dos esforços de apaziguamento.

O Oriente Médio não é para principiantes. Por isso, faço questão de lembrar algo que já escrevi muitas e muitas vezes por aqui: é preciso ter em mente os objetivos estratégicos dos atores envolvidos. E um dos principais – senão o principal – objetivos estratégicos do Irã é se tornar o ator hegemônico regional.

O problema é que, para isso, é preciso tempo. Também é preciso afetar drasticamente o equilíbrio de poder constituído. Para felicidade do líder-supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, o país está fazendo tudo certo, contando, neste momento, com um cenário mais amplo que lhe é muito favorável.

As negociações sobre o projeto nuclear do país têm muito a ver com isso. As obras para a constituição de usinas atômicas no Irã estão adiantadas e, sob o ponto de vista ocidental, é preciso convencer Teerã a regredir. Se isso vai acontecer ou não ninguém sabe, mas isso não é tão importante agora. Importante é que as usinas representam um fato consumado, um poder de barganha que o Irã já possui e do qual faz uso com muita habilidade.

Para ser a potência regional que pretende ser, o Irã fez várias alianças, apostando, basicamente, no principal fator a dividir o Oriente Médio: a batalha geopolítica entre Estados e grupos xiitas e sunitas. Este é o aspecto principal de quase tudo o que se passa regionalmente, e o Irã, como o maior Estado xiita do planeta, está envolvido até o pescoço nisso. Naturalmente, seus aliados estratégicos e regionais são a Síria de Bashar al-Assad (Estado que é majoritariamente sunita, mas controlado pela aliança alauíta-xiita estabelecida pela família Assad) e a milícia xiita Hezbollah, cuja proximidade étnico-ideológica com o regime iraniano transportou as forças de Teerã para a fronteira norte de Israel.

Para concluir, o Irã tem a situação a seu favor por duas razões: em primeiro lugar, tem tudo para congelar as sanções que vêm atrapalhando seus planos regionais. Os americanos precisam de resultados internacionais e estão desgastados com seus aliados tradicionais no Oriente Médio – que são, curiosamente, os principais adversários regionais dos iranianos: Israel e os Estados do Golfo. Em segundo lugar, esta é a hora de Teerã ceder, justamente porque percebem – corretamente, por sinal – que o desgaste americano tem afastado os EUA da região (como mostram o protagonismo exercido pela Rússia durante a crise de armas químicas na Síria e o descontrole da situação no Afeganistão e no Iraque).

Os EUA estão loucos para resolver a situação rapidamente. Neste caso, resolver significa conseguir um acordo mínimo com o Irã e deixar um pouco de lado o problema permanente que o Oriente Médio representa a Washington. É com este vácuo de poder que Ali Khamenei e o presidente iraniano, Hassan Rouhani, sonham todos os dias.

É desta ausência momentânea americana que os líderes da República Islâmica do Irã querem se aproveitar para alterar a balança de poder vigente na região. De um lado, usam o Hezbollah para participar da farra sanguinária que se tornou a Síria – fruto do combate entre xiitas da aliança entre Hezbollah e Irã e sunitas da al-Qaeda. De outro, negociam um acordo com os ocidentais em Genebra. O problema é que esta ambição iraniana representa uma possibilidade perigosa de mudança de status quo para todos os atores. Não é à toa que a bomba explodiu na embaixada iraniana num bairro xiita de Beirute (da milícia xiita do Hezbollah). No Oriente Médio, há muito poucos fatos isolados. 

sábado, 9 de novembro de 2013

Na mesa de negociações, Irã e EUA querem ganhar tempo

Sobre a possibilidade de um acordo provisório entre EUA e Irã, muita gente tem escrito que se trata de uma tentativa um tanto desesperada do presidente Obama de interromper décadas de conflito com o regime islâmico. Esta afirmação está correta, claro, mas incompleta. A administração Obama precisa de resultados urgentes e concretos, uma vez que atravessa um de seus momentos mais delicados: contestada internamente pela população – insatisfeita com o escândalo da espionagem revelado por Edward Snowden – e igualmente desestabilizada externamente – em rota de colisão com importantes governos aliados. 

O regime iraniano sabe de tudo isso, claro. E leva vantagem no jogo atual porque, uma vez mais, tem o tempo a seu favor. Desde o debate inicial sobre suas pretensões nucleares, o caminho escolhido por Teerã é exatamente o mesmo: ora acena com intenção de aproximar-se do Ocidente, ora se afasta. O Irã sabe de seu valor de mercado, sabe que provoca interesse no imaginário dos governos ocidentais. E se comporta como uma mulher bonita que atrai galanteios em razão do desafio que representa sua sedução. 

E, assim, ganha tempo. O ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad, seus opositores internos mais ferrenhos e agora o novo presidente Hassan Rouhani têm sido coerentes em suas declarações: nenhuma dessas partes jamais disse ter interesse em interromper o programa nuclear do país. Todos consideram unânime o direito de continuar com as pesquisas e o desenvolvimento de capacidade atômica. Por outro lado, o presidente Obama acredita, por alguma razão ainda não explicada, que é possível mudar esta posição da cúpula política e político-religiosa do Irã. Por isso será realmente surpreendente se o líder americano conseguir obter sucesso. 

O que se sabe hoje é que há uma possibilidade de acordo. Mas este é um ponto que exige atenção. Em nenhum momento qualquer liderança iraniana admitiu estar disposta a acabar com o programa nuclear, cenário que daria o assunto por encerrado aos principais interessados na questão (os Estados árabes do Golfo Pérsico e Israel). Os representantes iranianos dizem estar focados no relaxamento de parte das sanções ocidentais ao país em troca de uma interrupção temporária da atividade nuclear. Este “congelamento” ocorreria por seis meses, ou seja, haveria a assinatura de um acordo interino. 

E, olhando com um pouco de distanciamento, dá para entender as razões pelas quais este acordo realmente parece viável a iranianos e americanos neste momento: os EUA precisam apresentar algum resultado rápido em negociações internacionais, precisam mostrar sucesso diplomático num período para lá de complicado; os iranianos, por outro lado, estão fazendo o que sabem fazer melhor, ganhando tempo – e, se tudo der certo, levando na mala de volta a Teerã o relaxamento de sanções que têm prejudicado a economia do país. 

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Diego Costa: o novo criminoso nacional

Não costumo escrever sobre futebol, mas o faço sempre que considero que o esporte esbarra nas relações entre os países. Nada mais emblemático do que este caso envolvendo o atacante do Atlético de Madri Diego Costa. O jogador, que tem dupla cidadania (espanhola e brasileira), está no centro de uma polêmica que certamente é muito mais oportunista do que real. Destacando-se em seu clube, foi alvo de interesse dos dois países. Optou pela Espanha, um direito que lhe é garantido pela Fifa, entidade máxima do futebol. 

A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) partiu para a briga. E o fez da maneira mais sórdida: ameaçando Diego Costa. O assunto passou a ser tratado pela instituição como um caso de traição nacional, mostrando como pode ser covarde a retórica de parte dos dirigentes esportivos brasileiros. Diego Costa é o bode expiatório da vez, o culpado por uma traição indesculpável: escolher algo que considera positivo para sua carreira, somente isso. Diego Costa não entregou segredos militares brasileiros à Espanha, não trocou de lado na trincheira, não abateu um avião brasileiro, não cuspiu na bandeira nacional. Apenas declarou que, se convocado pelo treinador espanhol, irá atender ao chamado. 

A loucura foi além quando a CBF decidiu protagonizar mais um capítulo vexatório, considerando a possibilidade de ir ao Ministério da Justiça para requerer a revogação da cidadania brasileira do jogador (!). Segundo a visão míope da CBF, o pobre centroavante é quase um criminoso de guerra. Mas esta instituição é a mesma que, entre outros, é aliada das empresas que estão superfaturando as obras da Copa do Mundo, ameaçou impedir os jogadores campeões de 1994 de desfilarem em carro aberto pelo Rio de Janeiro caso os funcionários da Receita Federal insistissem em inspecionar as 14,4 toneladas de bagagem trazidas no voo dos EUA, foi presidida por Ricardo Teixeira durante mais de 20 anos (atualmente em exílio em Miami) e, vale dizer, é hoje presidida por um entusiasta da ditadura – segundo o UOL, José Maria Marin teve ligações muito próximas à ala mais radical do regime militar brasileiro. 

E Diego Costa é o grande vilão nacional? Olha, acho importante expor o contexto. Entendo que a luta da CBF seja para evitar que as seleções nacionais se transformem em arremedos de jogadores naturalizados. Mas definitivamente não concordo com o modo bárbaro como este caso vem sendo tratado. Soa como oportunismo barato e desonesto, na medida em que tenta usar um assunto que mobiliza a opinião pública para resgatar algum prestígio a uma instituição desgastada como a CBF. Acho que não se pode deixar de lado tudo o que aconteceu além dos gramados durante a realização da Copa das Confederações – manifestações que, aí sim, foram movidas por um desejo real de mudança, pelo exercício genuíno da população de seu direito a exigir posturas mais honestas. 

Claro que a imagem da CBF saiu arranhada, da mesma forma que todos os envolvidos na construção de elefantes brancos com dinheiro público. Jogar o atacante do Atlético de Madri aos leões parece uma manobra das menos habilidosas para angariar algum prestígio patriótico à entidade. Na verdade, só reforça o distanciamento dos dirigentes máximos do futebol brasileiro com a sociedade brasileira. 

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Os judeus, a Europa e o Holocausto

Ao longo da cobertura dispensada às sempre provocativas declarações do agora ex-presidente iraniano sobre o Holocausto, senti falta da elaboração de uma análise acerca do ponto fundamental do incômodo que este assunto causa ao Ocidente e à Europa em particular. Os judeus ficavam revoltados – com razão – quando Ahmadinejad questionava o Holocausto, o que soava ainda mais absurdo porque não deixou de fazê-lo nem mesmo na própria ONU (organização que nasceu dos escombros da Segunda Guerra Mundial).  

Do ponto de vista europeu institucional, a negação do Holocausto pode ser interpretada também como a negação explícita de parte fundamental da história do continente. A concretização do plano de genocídio em massa dos judeus foi realizada por europeus em solo europeu e moldou a identidade de toda a Europa tal como a conhecemos hoje. 

E não somente isso: o próprio Holocausto não foi um fenômeno pontual da história europeia, mas a consequência perversa de 20 séculos de perseguições e assassinatos em massa de judeus europeus. Infelizmente, muitas vezes o contexto acaba esquecido diante da necessidade muito pontual da informação jornalística, mas o ódio de hitler aos judeus não era somente uma aberração fruto da mente doentia do então jovem austríaco que dedicou seu livro “Mein Kampf” a, entre outros assuntos, explicitar sua obsessão pelo povo judeu; o antissemitismo era um traço da identidade europeia bastante comum. A dramática concretização do plano de pôr fim aos judeus da Europa acompanhou a trajetória da construção do continente por 20 séculos, como escrevi. O Holocausto não aconteceu onde aconteceu por acaso. 

Ainda mais perverso é o fato de o genocídio ter ocorrido na Europa pós-iluminista, quando boa parte dos países vivia o momento geracional posterior ao que consideravam como o período de maior esclarecimento intelectual. A decisão e execução do plano de acabar com os judeus europeus foram realizadas por pessoas que estavam longe da barbárie, mas que se debruçaram disciplinadamente sobre cálculos e métodos para dar cabo do genocídio de forma complexa e eficiente. 

Quando Mahmoud Ahmadinejad negava o Holocausto ou relativizava sua importância, também questionava, além da história dos judeus em si, a constituição identitária da Europa.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Caos na Líbia é um presente do Ocidente

O texto de hoje é um complemento ao da semana passada. Um complemento rápido, por sinal. Escrevi na segunda-feira sobre as ações militares americanas em menor escala na África. Se isso vai se tornar uma tendência daqui para frente, ninguém pode afirmar. Mas o que se pode concluir, especificamente, é que a Líbia está a caminho de ser mais uma Somália, mais um Estado falido.

Abu Anas al-Libi, suspeito de participação dos ataques terroristas às embaixadas americanas no Quênia e Na Tanzânia, em 1998, vivia tranquilamente em Trípoli, antes de ser sequestrado por um comando americano no último dia 5. Este fato por si só já seria o bastante para questionar boa parte da abordagem político-militar ocidental ao país. 

Voltemos um pouco no tempo: uma análise estritamente pragmática mostra que, nos últimos anos, o ex-líder e ditador Muammar Kadafi caminhava rumo a uma espécie de “conciliação” silenciosa. Evidentemente, Kadafi não era o tipo de pessoa admirável, mas não representava mais qualquer ameaça. Estava mais para uma caricatura de si mesmo. 

Na esteira dos movimentos populares pró-democracia, a decisão ocidental de promover os ataques aéreos na Líbia foi tomada como forma de se posicionar ao lado da opinião pública árabe sem a necessidade de se indispor constrangedora e contraditoriamente contra aliados históricos como o então presidente egípcio Hosni Mubarak, por exemplo. Derrubar Kadafi era uma tentativa de limpar a barra com a população árabe nas ruas do Egito e da Tunísia, principalmente, sem arriscar maiores complicações geopolíticas. Kadafi foi o “bêbado” eleito para a briga. 

Dois anos depois, o erro está evidenciado. A Líbia é hoje um país caótico onde cerca de 200 mil milicianos se infiltraram em todas as esferas e estão dispostos a evitar a soberania de um governo central. Inclusive a ponto de sequestrar o primeiro-ministro Ali Zeidan. A Líbia é hoje a mais importante hospedaria da al-Qaeda no norte da África, a poucos quilômetros da Europa, olha só. Segundo o próprio ministro da Justiça, “o país está a caminho de se transformar num Estado falido”. Se a campanha militar ocidental se orgulha de não ter colocado soldados em solo líbio em 2011, não pode se orgulhar de nada mais.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Os significados dos ataques americanos ao terrorismo na África

Neste final de semana, forças especiais americanas foram responsáveis por duas importantes ações no continente africano cujas consequências na chamada “Guerra ao Terror” exponho brevemente neste post. Na Líbia, um comando dos EUA teve sucesso ao capturar Abu Anas al-Libi, acusado de participação nos atentados às embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia, em 1998; na Somália, uma equipe não conseguiu prender um dos líderes do al-Shabaab, grupo extremista responsável recentemente pelo ataque ao shopping center em Nairóbi. 

Um dos aspectos mais interessantes é que ambas as ações tiveram como objetivo prender, não matar, dois inimigos declarados dos EUA. Só isso mostra uma tremenda mudança; a cúpula do governo em Washington deixa muito claro que, em curto prazo, sabe que não será possível acabar com o terrorismo. Se durante a primeira década do século 21 assistimos a duas guerras contra o terror, agora há uma mudança drástica: os EUA adotam ataques pontuais cujos objetivos são coletar informações sobre o modo de operação de grupos terroristas. 

Abertamente, deputados e fontes do governo americano tratam al-Libi como uma “mina de ouro”. Ele pode ser o caminho para mais informações e a compreensão do raciocínio e da forma de atuação de grupos radicais. E aí chego a outra conclusão importante e relativamente nova: se até bem pouco tempo atrás havia a tentativa de reduzir a importância de grupos como a al-Qaeda, por exemplo, e a alegação de que este tipo de inimigo agonizava, agora a prática é exatamente outra. Não apenas este tipo de oponente está mais vivo do que nunca, mas a forma de combate deve levar em conta que é preciso considerar enfrentamentos em longo prazo. 

Ou seja, o próprio conceito de “Guerra ao Terror” mudou. A expressão criada no governo George W. Bush a partir dos atentados de 11 de Setembro foi revista. Durante pouco mais de dez anos duas guerras foram travadas com a ilusão de que elas seriam capazes de pôr fim ao terrorismo global e livrar os americanos deste tipo de ameaça. O governo Obama admite, na prática, a ineficácia da estratégia adotada durante este período e deixa muito claro que, de agora em diante, uma nova forma de olhar e combater o terrorismo está começando. A primeira década de luta entre os EUA e o fundamentalismo islâmico teve fim neste final de semana.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Hassan Rouhani: contraponto de Ahmadinejad para o Ocidente ver

Como de costume, os encontros e desencontros entre líderes internacionais na ONU acabam por gerar uma série de consequências diplomáticas e geopolíticas. Cada uma das lideranças mundiais desembarca em Nova Iorque suas próprias questões e reivindicações. O simples fato de os principais representantes dos países estarem reunidos em uma única cidade já é, por si só, motivo de grande ansiedade para a imprensa. A cidade americana fica ainda mais cosmopolita, uma vez que os políticos e suas comitivas acabam por criar agendas próprias – encontros com estudantes nas universidades e entrevistas com a imprensa de seus próprios países e também veículos internacionais. 

No centro da polêmica periódica que é a Assembleia Geral, o Irã. Isso não é novidade. Washington e Teerã estão oficialmente separados desde a chamada Revolução Iraniana, ocorrida em 1979. Nos últimos oito anos, a tensão entre o Irã e o Ocidente aumentou ainda mais em função das ações e declarações do ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad. O programa nuclear do país é alvo de suspeita internacional e negociações para interromper a corrida atômica iraniana foram infrutíferas. Do ponto de vista retórico, Ahmadinejad usou o palanque da ONU para atacar Israel, chegando a dizer que o país deveria ser “riscado do mapa”. O ex-presidente iraniano também acabou se transformando no principal agente político do antissemitismo ao negar a existência do Holocausto. 

Todo este cenário rendeu expectativas sobre a primeira visita de seu sucessor, Hassan Rouhani, à ONU. Em virtude de seu programa nuclear, o Irã é alvo de sanções internacionais, medidas que afetam diretamente a economia do país e que, segundo a comunidade internacional, tornaram-se necessárias para levar os iranianos a flexibilizar seu projeto atômico cujos propósitos pacifistas (conforme versão oficial de Teerã) são bastante questionáveis. Rouhani é visto como mais moderado que Ahmadinejad e me parece que uma das razões de sua eleição é justamente a de ser um contraponto ao ex-presidente, principalmente para conseguir negociar com o Ocidente. 

O novo presidente iraniano tem seguido bem neste caminho; desejou um bom ano aos judeus em sua conta no Twitter (por ocasião de Rosh Hashaná) e, principalmente, evitou o discurso de negação do Holocausto em entrevista à CNN. A comitiva iraniana acabou por se reunir com diplomatas ocidentais, entre eles o próprio secretário de Estado dos EUA, John Kerry, no primeiro encontro de representantes políticos de alto escalão de Washington e Teerã desde 1979. 

Para o presidente iraniano, os resultados de sua presença na Assembleia Geral são positivos: conseguiu se contrapor a Ahmadinejad e já deixou marcada uma nova rodada de negociações com o Ocidente em Genebra nos próximos dias 15 e 16. Não tenho a menor dúvida de que o líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei – a principal autoridade do país –, previa esses resultados. Rouhani cumpriu o roteiro planejado em casa, uma vez que os iranianos precisam flexibilizar as sanções impostas pela comunidade internacional. Num próximo texto, entro em mais detalhes sobre o Holocausto e por que razões sua negação não é apenas absurda, mas representa um aspecto fundamental e uma afronta não somente aos judeus e à humanidade em geral, mas também à própria formação histórica dos países ocidentais.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A escada de Putin

Em função de problemas técnicos por aqui acabei não escrevendo sobre o importante acordo entre Rússia e EUA que, ao menos por ora, impediu um ataque americano ao governo de Bashar al-Assad. Cabe a mim corrigir este atraso e fazer uma análise rápida. Como escrevi no post anterior, a grande vitória foi do realismo político. E complementando o que já disse, Washington e Moscou concluíram em conjunto que a saída diplomática resolve por enquanto o problema de ambos. 

Gostei muito de uma metáfora de Ariel Cohen, especialista em estudos de Rússia e Eurásia da Fundação Heritage. Para ele, “Vladimir Putin exerceu papel fundamental ao oferecer a Obama uma escada para descer”. Acho essa imagem perfeita porque resume bem a situação em que se encontrava o presidente americano, como escrevi por aqui ao longo deste último mês. Obama não queria atacar, mas se viu emboscado pelo histórico de suas abordagens à crise síria. 

A Rússia mostrou uma enorme capacidade analítica e teve muito mérito ao transformar a crise em oportunidade. De uma só vez conseguiu baixar a temperatura de sua relação com os EUA (abalada principalmente em função do abrigo institucional dado a Edward Snowden, que expôs internacionalmente o sistema de espionagem da Agência Nacional de Segurança), evitar ou adiar a intervenção na Síria, manter sua base estratégica no país (em Tartus, base sobre a qual já comentei por aqui algumas vezes), retomar seu protagonismo no cenário internacional (e no Oriente Médio, em particular) e, ao mesmo tempo, mostrar ao mundo que, de certa forma, ainda pode confrontar os EUA. 

Todos esses ganhos geopolíticos foram alcançados com permissão americana. Se este será um preço alto demais a ser pago pela maior potência do planeta, ninguém pode dizer. Mas o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, e Barack Obama aceitaram ceder porque perceberam que não tinham outra saída. A ideia do presidente americano era submeter ao Congresso a eventual decisão de levar adiante uma ação militar na Síria. A um ano das eleições na Câmara e no Senado, era muito pouco provável que senadores e deputados americanos votassem a favor de uma nova guerra no Oriente Médio. Obama sabia que perderia também em casa. 

A percepção política é tão importante quanto resultados práticos. Muita gente considera que a saída diplomática oferecida pela Rússia ao EUA resultou numa vitória russa. Eu acho que Obama também venceu, pelo menos diante da opinião pública americana. Seja como for, quem continua perdendo é a população civil síria. Na prática, as potências deixaram claro que Assad e os rebeldes podem continuar se enfrentando nesta guerra civil que já matou cem mil pessoas, desde que não usem armamento químico. Como diria Tim Maia, “o resto vale”. 

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Para resolver crise síria, Rússia dá aula de realismo político

Curiosamente, logo após o encontro do G-20 em São Petersburgo, a Rússia apresenta o que pode ser o início de uma solução para o impasse na Síria. A ideia do governo russo certamente foi fruto das conversas de bastidores do encontro entre líderes das maiores economias do mundo. Ela é reflexo, por excelência, do jogo político internacional cujo objetivo, no caso sírio, é evitar o pior: uma nova guerra no Oriente Médio. Para completar, a solução deve ser boa o bastante para não deixar o presidente americano exposto (já explico isso). 

Segundo o que se disse ao longo da segunda-feira, o plano apresentado pelos ministros das Relações Exteriores de Síria e Rússia é colocar todo o arsenal químico de Bashar al-Assad sob vigilância de monitores internacionais. Publicamente, tanto o presidente Obama como o secretário de Estado John Kerry já disseram que esta medida seria suficiente para impedir a intervenção americana. 

Antes do G-20, Obama esteve sob pressão em nome de sua coerência e da política externa dos EUA para os próximos anos. No texto anterior me estendi bastante sobre este assunto, mas não custa resumir; em 2012, o presidente americano deixou bem claro que, em relação à Síria, o limite final de tolerância seria o uso de armamento químico durante o conflito no país. Com fortes indícios de que isso teria ocorrido já em duas ocasiões, Obama ficou exposto: atacar a Síria para punir os responsáveis pelo ataque e se envolver numa nova guerra de consequências e duração imprevisíveis ou não fazer nada e correr o risco de perder a credibilidade (principalmente diante de países e entidades não-estatais com os quais os EUA mantém relação retórica tensa nos últimos anos em virtude de seus arsenais)?

A aparente saída encontrada é a única capaz de resolver o problema de Obama, até porque, para piorar sua situação, nem o Congresso, em Washington, nem os cidadãos do país parecem ter comprado a ideia de uma nova ação militar no Oriente Médio. Se a solução russa for adiante, este grande problema multifacetado do presidente americano pode estar resolvido por ora. Mais uma vez, o realismo político dá evidências de sua força. 

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Na Síria, erros de avaliação dos dois principais interessados

Começo este post de hoje com um trecho de um ótimo texto de George Friedman, diretor e fundador do Stratfor, a principal empresa privada de análise política dos EUA: “O que começou a definir a posição americana sobre o assunto (Síria) foi uma declaração do presidente (Obama) em 2012, quando ele disse que o uso de armamento químico seria a ‘linha vermelha’. Isso não significaria que iria intervir. Ele estabeleceu a linha vermelha porque imaginou que (o uso de armas químicas) seria justamente o que Assad não faria”. 

Acho esta análise ótima porque ela resume bem duas questões que considero fundamentais para a compreensão deste momento e que venho tentando deixar muito claras por aqui: a primeira delas é que os EUA não têm qualquer interesse numa nova intervenção no Oriente Médio; não há apoio popular, o país está fatigado por duas aventuras militares na região que ainda custam caro demais sob todos os aspectos e não há qualquer vantagem ou benefício nesta guerra para a qual os americanos caminham. 

A outra posição é mais simples: os eventos que deixaram os EUA na iminência de uma nova guerra me parecem fruto de uma série de acontecimentos externos e alheios à vontade política do presidente Obama. Nem o próprio Obama, nem seus assessores foram capazes de prever que, aparentemente, Bashar al-Assad seria mesmo capaz de ultrapassar a “linha vermelha” estabelecida. 

Para completar, ao dizer em alto e bom seu que seu governo não toleraria ataques com este tipo de armamento, na prática Obama dava um “voto de confiança” ao presidente sírio – ele poderia fazer o que bem entendesse, desde que não incluísse lançar mão de seu arsenal químico.  E o Ocidente dava provas mesmo de seu comprometimento de não agir na Síria, uma vez que após dois anos e meio de violência no país e, até duas semanas atrás, nenhum líder mundial fizera qualquer menção a uma ação militar. Se foi mesmo responsável pelos ataques químicos (como parece ser o caso), Bashar al-Assad convidou os EUA para a guerra propositalmente (algo que para mim soa completamente descabido) ou decidiu apostar alto que os americanos silenciariam sobre o assunto (igualmente um tremendo equívoco). 

sábado, 31 de agosto de 2013

Armas químicas na Síria: chegou a hora de a comunidade internacional se manifestar

Mesmo os ataques de abril e de agosto com gás sarin não parecem ter causado comoção internacional. As imagens impactantes de crianças mortas ou feridas gravemente na Síria sensibilizaram somente cidadãos comuns. O presidente americano, Barack Obama, está decepcionado com o Reino Unido, país com o qual os EUA sempre mantiveram o que se chama de “relação especial”. Ao contrário do primeiro-ministro britânico, David Cameron, o parlamento em Londres preferiu deixar eventuais sentimentalismos de lado ao rejeitar a proposta de ação militar contra o regime de Bashar al-Assad. 

Ao lado de Obama, por ora, os franceses. A aliança entre EUA e França esteve por demais abalada em função de toda a discussão que, no final das contas, deixou Paris de fora – com razão, aliás – do grupo de países que, liderados pelos americanos, invadiram, procuraram e até hoje não encontraram as tais armas de destruição em massa de Saddam Hussein. O dilema moral de agora, no entanto, é bem diferente; o uso de armas químicas em uma guerra é inaceitável. Atacar crianças e grupos de civis com este tipo de armamento causa ainda mais horror. Pode-se até questionar quem são os responsáveis pelos ataques, muito embora as evidências apontem para Assad, detentor dos arsenais químicos. Mas não se pode duvidar de que os ataques aconteceram mesmo. 

Nos dois últimos anos e meio, a comunidade internacional fez o que pôde para fingir que os mortos não eram contados aos milhares na Síria. Todos os líderes das potências ocidentais rezaram silenciosamente para que, de alguma forma milagrosa, a situação por lá se resolvesse por conta própria, Bashar al-Assad decidisse recuar e que os rebeldes não fossem tão violentos e tivessem objetivos para lá de escusos. Nada disso, no entanto, aconteceu, ao contrário dos ataques com armamento químico (estou sendo redundante propositalmente). 

E aí os EUA enfrentam um impasse: afinal, Barack Obama disse claramente que seu governo consideraria o uso de armas químicas como a fronteira final, o máximo que os americanos poderiam aceitar. É isso o que está tirando o sono do presidente. O custo de uma nova guerra no Oriente Médio será altíssimo; os EUA começam somente agora a colocar a cabeça para fora d’água da crise, ninguém pode prever as consequências regionais da intervenção, somente 9% dos americanos entrevistados são favoráveis à ação militar. 

Mas diante de todos esses pontos negativos vale fazer alguns questionamentos: o que a comunidade internacional está disposta a fazer para impedir novos ataques com armas químicas?  O que Rússia e China, principais Estados defensores de Bashar al-Assad no Conselho de Segurança da ONU, propõem para impedir novos ataques? Mesmo que a culpa acabe por recair sobre os rebeldes, o que a própria ONU pode fazer para evitar o absurdo do uso de armamento químico? 

Por aqui no blog sempre escrevo sobre o caráter realista das relações internacionais quando se trata da defesa de interesses próprios. Mas não faz qualquer sentido que países, líderes internacionais e, principalmente, a ONU entendam como vantajoso ou aceitável o uso de gás sarin contra qualquer grupo, muito menos contra civis, menos ainda contra crianças. Posicionar-se contra uma nova guerra no Oriente Médio é aceitável, mas não apresentar qualquer solução para impedir novos ataques é inadmissível. O parlamento britânico deu uma aula de realismo político, mas fez um silêncio constrangedor diante do horror das armas químicas.  

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Patriota se sacrifica em nome de relação estratégica com a Bolívia

Em meio a tantas informações desencontradas, ainda é cedo para chegar a conclusões quanto ao estranhíssimo episódio da fuga do senador boliviano Roger Pinto Molina para o Brasil. O que poderia soar somente como um grande mal-entendido acabou provocando a queda do ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota. Curiosamente, foi esta consequência política que acabou ampliando a história até então pouco conhecida por aqui.

O senador boliviano estava abrigado na embaixada brasileira em La Paz há cerca de 450 dias. Durante todo este período, a imprensa mal tocou no assunto. Graças ao plano do diplomata Eduardo Saboia – encarregado de negócios na Bolívia –, a situação de desconforto e impasse chegou a uma resolução: a fuga de ambos do território boliviano numa operação oficial do Brasil. O ministro Patriota acabou não resistindo à pressão por algumas razões: a primeira delas devido à surpresa causada pela chegada de Saboia e Pinto Molina ao Brasil. A tentativa inicial – e oficial, uma vez que veio em nota do Ministério das Relações Exteriores – de pôr a culpa somente na conta do embaixador Saboia se mostrou insatisfatória. 

Para tornar a situação ainda mais delicada, o país vizinho é considerado parceiro estratégico pela evidente aliança ideológica com o Brasil e, claro, devido aos muitos acordos conjuntos, como Unasul e o processo ainda em curso de adesão ao Mercosul. Membro da oposição boliviana acusado de crimes contra o erário de seu país, Roger Pinto Molina é o tipo de figura política que incomoda o governo de Evo Morales. Dar abrigo, asilo político e pôr em prática um plano de fuga para tirar Roger Pinto Molina do país soaram como tomada de partido no jogo interno de um Estado aliado. 

Entre todos os muitos mal-entendidos deste pacote de decisões, o que mais pesou ao ministro Patriota foi o suposto desconhecimento sobre uma operação que contou com fuzileiros navais, agentes da Polícia Federal e o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Ricardo Ferraço (PMDB-ES). Como escrevi, inicialmente a ideia era limpar a barra com o governo boliviano colocando a culpa unicamente no embaixador Eduardo Saboia. Não foi suficiente; para não arranhar de vez as relações com a Bolívia, foi preciso derrubar o ministro Antonio Patriota. 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Bashar al-Assad cruza todos os limites na Síria

Escrevi muitas vezes por aqui sobre a Guerra civil síria. O impasse da luta do presidente-ditador Bashar al-Assad pela permanência no cargo já causou cem mil mortes. Como também escrevi tantas vezes, é pouco provável que o mapa da Síria seja o mesmo quando tudo isso terminar. O problema é que a comunidade internacional não apenas se recusa a intervir, mas seu silêncio é interpretado pelo líder sírio como uma folha em branco assinada pelas potências internacionais. 

Os responsáveis pela condução da política externa de EUA, Grã-Bretanha e França – além de toda a comunidade internacional representada pela ONU – subestimaram o potencial radical de Bashar al-Assad. Quando a crise síria começou, na esteira do movimento popular que ficou conhecido como Primavera Árabe, a comunidade internacional optou por se resignar. Fruto do fracasso da intervenção na Líbia, mas também das duas guerras que continuam a ser travadas no Oriente Médio (Iraque e Afeganistão) e, acima de tudo, sob o argumento de que a região já é por demais complexa para uma nova ação militar. Soma-se a tudo isso a crise econômica que atingia e continua a afetar dramaticamente EUA e Europa. 

Por tudo isso, nada foi feito. Os cem mil mortos passaram a ser contados em estatísticas igualmente silenciosas e burocráticas acompanhadas rotineiramente pela imprensa. Nada haveria de ser feito a não ser fingir que nada acontecia na Síria e aguardar, pacientemente, para que tudo se resolvesse por si. Mas isso não aconteceu, pelo contrário. O tom dramático dos eventos se tornou uma ameaça ainda mais sombria a partir da notícia de que, nesta quarta-feira, dia 21 de agosto, cerca de 1,2 mil civis sírios foram mortos pelas forças leais a Bashar al-Assad por uso de armas químicas. A suspeita é de gás sarin, o mesmo usado por Saddam Hussein, em 1988, contra a etnia curda. 

E agora? O cenário de uso indiscriminado deste tipo de armamento deveria, em tese, afetar a comunidade internacional de maneira sem precedentes. Mas esta comunidade internacional é a mesma responsável por dar a Assad a facilidade de empregar gás sarin. Com o avanço dos rebeldes e, principalmente, com a presença de militantes radicais islâmicos entre eles, o líder sírio tem partido para o tudo ou nada. Como já havia usado armamento químico em março deste ano e conseguiu obter a aprovação silenciosa do Ocidente – na medida em que as chamadas potências não fizeram nada para detê-lo –, agora está muito seguro e à vontade para aumentar a dosagem de seu radicalismo. Em nome da manutenção do cargo, em nome da manutenção da unidade territorial e política da Síria. E, como de costume, com a aprovação declarada de Rússia e China. E com a aprovação silenciosa da ONU.

Para concluir este texto, reproduzo abaixo um trecho de um artigo assinado pelo jornalista israelense Ari Shavit, do Haaretz. Faço minhas suas palavras:

“Se civis podem ser mortos por gás em 2013, nos deparamos com o fim do mundo. É o fim de um mundo que se pretende moral e esclarecido. É o fim de um mundo que busca estabelecer uma ordem internacional justa da qual o Oriente Médio faria parte”. 

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Caos no Egito é exemplo da ampla crise institucional no Oriente Médio

A situação de absoluta incerteza em relação ao Egito é um complicador regional e que respinga sobre o governo dos EUA. Patrono de acordos de paz no Oriente Médio, Washington mantinha um tênue equilíbrio na região até a Primavera Árabe. 

Graças a anos de trocas de favores de bastidores e acordos financeiros e políticos, sucessivos governos americanos conseguiram empurrar mais para frente as grandes mudanças que, cedo ou tarde, viriam a acontecer. Para o azar de Barack Obama, o processo de ruptura com o modelo de sustentação das velhas estruturas foi acontecer justamente sob seu mandato. O que quero dizer é muito simples: Síria e Egito, dois dos principais atores da região, mantiveram-se como Estados nacionais até bem pouco tempo. Tinham problemas, nunca foram democracias, sempre sufocaram a oposição, nunca apresentaram resquício de imprensa livre, mas existiam como Estados nacionais. 

Novamente, para azar de Obama, esta realidade mudou completamente. Nem Síria, nem Egito estão próximos de retornar ao status anterior à chamada Primavera Árabe. Para completar, o Oriente Médio é hoje uma grande incógnita, na medida em que movimentos de contestação popular – e, claro, a repressão violenta e habitual dos governos locais – põem em xeque a mínima possibilidade de prever como, quando e se haverá um fim para o tumulto regional. A crise é ampla. Não se sabe o que poderá emergir dos escombros do Oriente Médio. Arrisco mesmo a dizer que é bem capaz que Estados nacionais existentes hoje deixem de existir num futuro breve. O caso mais emblemático é o da Síria, cujas profundas divisões étnico-religiosas devem desmembrar o país.

Diante disso tudo, Obama tem um problemão a resolver. Sua insatisfatória resposta ao massacre cometido pelo exército egípcio aos partidários da Irmandade Muçulmana é somente a ponta do iceberg de uma equação que, na prática, nenhum líder mundial tem capacidade para resolver. A expectativa depositada sobre o presidente americano é derivada não apenas das responsabilidades que seu cargo exige, mas também da aura de líder cinematográfico que lhe é tão natural. 

terça-feira, 13 de agosto de 2013

A retomada do diálogo entre israelenses e palestinos

Nesta quarta-feira, os olhos do mundo estarão novamente voltados para Jerusalém. Negociadores israelenses e palestinos retornam à mesa de negociações graças à insistência americana. Diante de tanto pessimismo – justificado, diga-se de passagem –, acredito que há esperança para acreditar que algum passo mais concreto possa ser dado em direção ao início de um acordo definitivo. 

As questões são as mesmas de sempre: o destino dos refugiados palestinos, o estabelecimento de fronteiras definitivas aos Estados israelense e palestino, como fica Jerusalém e, acima de tudo, como conter os radicais de ambos os lados. No entanto, creio que, timidamente, há evoluções desde já; o próprio formato das conversas foi pensado para evitar rompimentos unilaterais. Os grandes nomes desse jogo atual não estarão frente a frente, ao contrário de edições anteriores. Nem o secretário de Estado americano John Kerry, nem o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, nem o presidente palestino, Mahmoud Abbas, estarão na sala de reuniões. 

O diálogo será mediado pelo enviado especial do EUA, Martin Indyk. Do lado de Israel, dois experientes negociadores: a ex-ministra das Relações Exteriores Tzipi Livni, e o negociador chefe e advogado Isaac Molho. Do lado palestino, o negociador chefe Saeb Erekat (que participou de praticamente todas as rodadas de negociações desde a própria fundação da Autoridade Palestina) e o economista Mohammed Shtayyeh, que desde 1996 dirige o Conselho Econômico Palestino de Desenvolvimento e Reconstrução. 

Acredito neste formato de negociação por algumas razões. A primeira é que todos os envolvidos têm larga experiência com negociação. Se por um lado já assistiram a diversas tentativas fracassadas, também sabem o que não deve ser repetido para desperdiçar mais esta oportunidade. Essas pessoas também estão mais do que familiarizadas com os limites do que podem ceder de cada um dos lados que representam. E, acima de tudo, vejo neste formato de diálogo uma possibilidade real de os representantes atuarem como escudos políticos de seus “chefes”. Benjamin Netanyahu e Mahmoud Abbas evitariam empenhar seus nomes em negociações que julgassem por demais satisfatórias ao lado oposto. Sem a pressa de ter de deixar a sala de reuniões com uma grande novidade ou decisão, suas equipes de negociadores sofrem menos pressão política por resultados. Podem apresentar e ouvir propostas sem a necessidade de assinarem o compromisso definitivo. Até porque – e eis aí mais um aspecto interessante deste formato – nenhum dos presentes está autorizado ou possui a legitimidade política e mesmo técnica de fechar um acordo. 

Voltarei a abordar o assunto em posts futuros, mas deixo aqui minhas primeiras considerações sobre o início da retomada das negociações. Timidamente, a experiência de fracassos anteriores já teve o mérito de evitar o naufrágio desta rodada antes mesmo de ela começar. 

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Espionagem americana: o que há de tão importante no Brasil

Dando continuidade à análise sobre a espionagem sistemática americana, quero apresentar algumas informações importantes especificamente ao caso brasileiro. Como comentei no último texto, o Brasil é um país muito relevante sob o ponto de vista do valor da informação que circula por aqui. Há razões de sobra para os EUA se interessarem em buscar conversas privadas e ter acesso ao que é discutido internamente. Sem falar no pré-sal, um caso clássico de descoberta brasileira que muda as regras do jogo, as disputas comerciais diretas entre Brasil e EUA tem se acirrado do ano 2000 para cá. 

Há dados muito interessantes. Na Organização Mundial do Comércio (OMC), o Brasil ocupa o sexto lugar do ranking de disputas. Pode parecer pouco, mas é importante dizer também que o país é responsável por somente 1,5% do comércio mundial. Ou seja, o país tem um comportamento combativo na defesa de seus interesses. Adivinhem qual o principal alvo das reclamações brasileiras: os EUA. Na organização, brasileiros e americanos já entraram em confronto em dez ocasiões. O maior prejuízo imposto aos EUA pelo Brasil diz respeito à produção de algodão. De acordo com o caso apresentado pelo país, Washington estaria prejudicando a prática do livre mercado ao oferecer subsídios aos produtores americanos. A OMC deu ganho de causa ao Brasil, permitindo a imposição de retaliações comerciais no valor máximo de 829 milhões de dólares. Um acordo entre as partes, no entanto, evitou a adoção de medidas mais extremas por parte do Brasil. 

No sentido oposto, o Brasil também tem sido alvo de reclamações americanas. Das 14 queixas formalizadas contra práticas comerciais brasileiras, dez foram feitas por EUA, Canadá, União Europeia e Japão. A disputa vai além de processos técnicos. Há divergências conceituais entre os países. O Brasil chega mesmo a acusar os EUA de serem o principal obstáculo às discussões da chamada Rodada Doha sobre a liberalização do comércio mundial. É claro que esta seria somente uma acusação a mais se não fosse pelo principal articulador das posições brasileiras, o embaixador Roberto Azevêdo. Representante brasileiro na OMC desde 2008, Azevêdo teve papel ativo nas vitórias do país. 

Roberto Azevêdo será o próximo diretor-geral da Organização Mundial do Comércio. Ele assumirá o cargo a partir de setembro. Agora proponho aos leitores que releiam este post sabendo que tudo isso foi espionado.

terça-feira, 9 de julho de 2013

O Brasil no centro da espionagem americana

A explosiva série de reportagens que vem sendo publicadas sobre a espionagem americana a emails e ligações telefônicas em todo o mundo recria de maneira dramática o período da Guerra Fria. O Brasil parece estar no centro desta história, justamente por ser o principal país latino-americano monitorado. E isso não é mero acaso. Ao longo da última década, o crescimento brasileiro não é apenas econômico, mas político. A construção de uma estratégia internacional independente deu ao país status, poder de barganha e liderança regional. 

Se há 30 anos soava como piada imaginar o país nos principais fóruns de debate, hoje ninguém questiona seu protagonismo. Na ONU, na Organização Mundial de Comércio e à frente da Unasul, o Brasil tem exercido papel relevante no jogo político planetário. Apoiado por seu mercado de consumo interno em expansão, por crescimento incontestável e pela representatividade que vem encontrando eco entre parceiros regionais ou não. Por favor, não considerem como discurso patriótico porque não é. Trata-se somente de uma constatação óbvia que também passou a ser percebida pela concorrência. 

É claro que o Brasil não disputa espaço econômico com os EUA de forma mais ampla. Pontualmente, no entanto, embates econômicos e comerciais têm sido, de certa forma, constantes. Para completar, além de questões técnicas envolvendo o fato de o Brasil estar no centro da transmissão de dados para países notadamente inimigos dos EUA (como Irã e China, por exemplo), o Brasil se firmou como ator político que não encontra similares. O país cresce, possui mercado cada vez maior internamente, grande território, é democrático, respeita as liberdades civis, possui grandes vantagens competitivas, governo estável, índices econômicos importantes e não enfrenta contubações internas relevantes - não há registros de rivalidades étnicas ou religiosas, por exemplo. 

Além disso, na última década, conseguiu se livrar de mecanismos de controle financeiro global, caso do Fundo Monetário Internacional (FMI). Integrado ao sistema financeiro mundial, o país passou de dependente a agente. Por tudo isso, diante dos países que crescem neste cenário de crise internacional evidente, o Brasil é o único onde todos os fatores mencionados acima levam a crer que, com maiores investimentos em pesquisa e infraestrutura para o escoamento de produção, o país tem tudo para se firmar como potência. 

Há atores pelo mundo que poderiam viver momento similar; imaginem os Estados que apresentam crescimento, como Rússia, Índia, China, África do Sul e Turquia, por exemplo. Análises mais cuidadosas sobre cada um deles, no entanto, mostram claramente que nenhum desses países possui o conjunto de vantagens do Brasil. Há limitações democráticas, rivalidades internas, territórios inóspitos em determinados períodos do ano. De forma alguma se pode dizer que o Brasil não é visto como competidor. Não somente pelos EUA, claro, mas como os documentos apresentam evidências do esquema de vigilância americano, comento este caso especificamente. Nos próximos dias, abordarei mais esta questão, a resposta brasileira e as consequências globais de mais este vazamento promovido pelo WikiLeaks.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Tempo de incerteza no Egito

A queda do presidente Mohamed Mursi é mais um capítulo da busca por democracia no Egito. Na verdade, é preciso deixar claro que o presidente egípcio foi eleito democraticamente no ano passado. O problema é que a população comum continuou sem participação política, instituições democráticas e soluções práticas para os muitos problemas no país. Como aconteceu em 2011, esta decepção levou novamente milhões às ruas num processo que culminou com o golpe militar que tirou do líder da Irmandade Muçulmana o cargo de presidente.

Se essa história cabe bem para fechar um ciclo de protestos internacionais que reivindicam novos modelos de representação política, é preciso dizer que os acontecimentos no Brasil e no Egito possuem características para lá de distintas. O Egito foi governado por um presidente ditador durante 30 anos. O movimento popular no Egito conta com o apoio das forças armadas porque, na ausência de um projeto político sólido e instituições genuinamente democráticas, resta aos cidadãos confiar na instituição que, ao menos, é a detentora do monopólio do poder coercitivo.

De qualquer maneira, é bom dizer que o exército aplicou um golpe militar. Longe de mim defender a Irmandade Muçulmana, mas há um ano ela chegou ao poder por meio de um processo eleitoral que não foi contestado. A retomada do governo pelos militares está longe de garantir a estabilidade do país, seja política ou econômica. Afundado em crise desde a Primavera Árabe, o Egito precisa de aliados internacionais para conseguir financiamento e empréstimos. Se por um lado isso é ruim, ao menos se sabe que, em função desta dependência, o governo interino militar vai precisar arrumar uma maneira de providenciar uma nova constituição e, principalmente, organizar uma nova eleição.

Durante este ano de liderança da Irmandade Muçulmana, o país era ajudado financeiramente pelo Qatar, entusiasta do projeto político do grupo. Sem Mursi à frente do governo, é provável que o patrocínio seja interrompido. Ao mesmo tempo, no entanto, a nova junta militar vai precisar ser muito criativa para encontrar dinheiro. Isso porque o exército recebe 1,3 bilhão de dólares em ajuda americana. Este repasse só deve acontecer se os militares egípcios garantirem que a nova interferência política é temporária. Esta relação entre ajuda financeira e democracia é uma exigência do congresso americano.

A situação, portanto, está longe de resolvida. O Egito agora mergulha na incerteza e na possibilidade de uma luta mais ampla internamente. Os membros da Irmandade Muçulmana não irão aceitar a deposição de Mursi. Afinal de contas, o grupo ainda conta com o apoio de cerca de 25% da população egípcia.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Ao fim da Copa das Manifestações

Depois de duas semanas de intensa turbulência, o Brasil não desistiu das manifestações, mas parece que, ao menos por ora, a situação está mais calma. Os protestos continuam, mas cada vez mais segmentados. E isso não é ruim, pelo contrário; a sociedade está mais organizada e atenta para reivindicar. Ao fim da Copa das Confederações - que ficou marcada pelas passeatas e pelo repúdio aos estádios superfaturados -, a sensação é de que os cidadãos saem fortalecidos por criar um novo capítulo na história brasileira: o amor ao futebol não serve mais aos propósitos de quem quer silenciar a voz das pessoas comuns. E, ao lado da atuação magistral da seleção brasileira contra a Espanha, esta é a maior conquista dessas duas últimas semanas.

Existe agora um novo Brasil. E não falo isso de maneira demagógica. Existe mesmo uma vontade enorme de resgatar a representatividade política popular. Como já imaginava e como sempre acontece, naturalmente há os que queiram se apropriar das manifestações. Percebo isso de maneira muita clara da parte da oposição. Por graves erros do governo e do PT, a bandeira do combate à corrupção caiu no colo de PSDB e DEM. Sim, do DEM, o mesmo partido de César Maia, o ex-prefeito do Rio responsável pela construção da Cidade da Música, da Vila do Pan, do Engenhão - obras superfaturadas ou de qualidade duvidosa.

De qualquer maneira, o fenômeno que o Brasil viveu nas últimas duas semanas muda a corrida eleitoral para as eleições que decidirão os governadores e o próximo presidente. A corrida está aberta e as ruas deixam claro que não há favoritos. O combate à corrupção é sim um clamor popular, mas não o único. Na verdade, um dos principais aspectos de tudo o que está se passando mostra algo muito evidente: o divórcio litigioso entre a representação política tradicional e a sociedade. Alguns acontecimentos desses dias turbulentos mostram que a classe política não apenas entendeu o recado como também está correndo contra o tempo para recuperar sua representatividade: a derrubada da PEC 37, a aprovação pelo Senado do projeto de lei que torna a corrupção crime hediondo, a sugestão da presidente Dilma de realizar um plebiscito para discutir a reforma política e, finalmente, a condenação e prisão do deputado Natan Donadon pelo desvio de R$ 8,4 milhões da Assembleia Legislativa de Rondônia.

Todos esses acontecimentos políticos mostram a tentativa das instituições de recuperar seu vínculo com a sociedade.E aí retorno à questão eleitoral; somente os partidos que conseguirem restabelecer um pacto sincero com os eleitores serão bem sucedidos. Eis aí uma outra grande vitória das manifestações: os membros de partidos deverão se preocupar com algo que é primordial à política, a busca por soluções e alternativas reais aos cidadãos. Os partidos que continuarem a praticar a velha política - e uso o termo para me referir ao que existia há até duas semanas - devem fracassar. Partidos políticos empenhados em chantagens de bastidores, disputas por vantagens e acordos escusos serão preteridos. A pergunta que se deve fazer agora é qual será o partido capaz de se renovar e retomar suas origens? Que partido deixará de lado seus interesses clubísticos para voltar a exercer o propósito original de representar a sociedade? Nesses tempos para lá de interessantes, esperamos assistir a mudanças profundas também no comportamento dessas instituições que existem como expressão da vontade popular.

terça-feira, 25 de junho de 2013

O caçador de marajás

Nas eleições de 1989, um certo Fernando Collor de Mello arrebatou a maioria dos eleitores brasileiros graças a um discurso poderoso: se eleito, seu governo seria pautado pelo combate à corrupção. Articulado e alçado ao status de "caçador de marajás" pela imprensa, Collor logo foi considerado uma novidade no cenário político do país. Sua grande contribuição seria varrer a bandalheira da velha ordem, dar um basta todos os males que assolavam a realidade política.

Tanto foi assim que Collor deixou de lado bandeiras ideológicas mais claras. Suas qualidades eram justamente a novidade - somada à sua juventude - e capacidade de mobilização. No segundo turno, Collor venceu Lula. O resto é história. Antes que eu me esqueça, o presidente eleito resumia em sua candidatura um elemento tão inovador que seu partido era diferente dos demais. O Partido da Reconstrução Nacional (PRN) prometia ser a legenda do Brasil novo.

Vamos dar um salto de 24 anos no tempo. Hoje, diante das manifestações legítimas que se espalham país afora, já há os que busquem este elemento novo de novo (com o perdão do trocadilho). A população dá sinais claros de insatisfação com a política tradicional, manifestantes queimam bandeiras dos partidos e botam para correr seus militantes. As passeatas não apenas são apartidárias como também antipartidárias. Os partidos tradicionais se recolhem porque o povo nas ruas está cansado dos velhos políticos e da velha forma de fazer política. Mesmo que estejamos falando de um país que chama de velha política um sistema democrático com menos de 30 anos. Nada de errado nisso, mas vejamos as conexões.

Parte dos manifestantes - e parte de gente articulada nas manifestações - quer pôr fim a "tudo isso o que está aí". A diferença entre os que democraticamente criticam os governos das três esferas nacionais e aqueles que se aproveitam da situação para lançar suas próprias bases políticas é tênue, muito tênue. No meio deste movimento, uma nova estrutura começa a se formar. Diante do encadeamento rápido de acontecimentos, há quem esteja buscando um novo tipo de liderança; apartidária, supostamente apolítica e, por fim, interessada em mudar radicalmente a forma de se fazer política no Brasil.

Novamente, começa a surgir no país uma voz que clama por novidade, que vocifera por "mudanças radicais" e que começa a construir sua liderança. Assim, toma corpo a candidatura de Joaquim Barbosa, o presidente do Supremo Tribunal Federal, que, olha só, é o símbolo nacional da luta contra a corrupção, afinal de contas não se trata de um político tradicional, afinal de contas foi o responsável pela luta contra José Direceu - o maior vilão recente do Brasil, aquele cujo nome resume toda a corrupção brasileira.

Não por acaso, Joaquim Barbosa é o preferido de 30% dos que foram às ruas em São Paulo, de acordo com pesquisa realizada pelo Datafolha. Assim a jovem democracia brasileira está para repetir um padrão. Assim as manifestações das ruas passaram a flertar com seu novo "caçador de marajás".