terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

WikiLeaks revela que Israel já teria destruído a infraestrutura nuclear do Irã

E no retorno oficial do carnaval, as discussões acaloradas sobre o programa nuclear iraniano estão cada vez mais quentes, como não poderia deixar de ser. Apesar dos esforços internacionais para entender em que fase Teerã se encontra exatamente, o que existe, de fato, é uma crise aguda de desinformação. Há novidades, muitas delas aliás, mas não consenso quanto às etapas cumpridas pela República Islâmica em sua busca por armamento atômico.

Enquanto governos e organismos multilaterais não chegam a qualquer conclusão mais precisa, o WikiLeaks – este ator não-estatal recente e poderoso – joga mais lenha na fogueira ao divulgar cinco milhões de e-mails da empresa de análise privada americana Stratfor. Uma das revelações que mais chamaram a atenção é uma conversa interna entre funcionários da companhia datada de novembro de 2011. Nela, a discussão sobre o Irã adquire cores novas quando dois analistas da empresa citam uma fonte que teria dito que os preparativos de Israel para uma ofensiva militar não passariam de um desvio “uma vez que os israelenses já destruíram toda a infraestrutura nuclear existente semanas atrás”.

A partir daí, os funcionários do Stratfor passaram a imaginar os cenários que teriam tornado tal plano possível: uma ação conjunta com guerrilheiros curdos ou conduzida por judeus iranianos que teriam emigrado para Israel. Seja como for, uma revelação desta gravidade seria capaz de mudar completamente o cenário mundial. No entanto, é preciso calma antes de tomá-la como verdadeira, principalmente por conta de alguns fatores:

Se de fato Israel tivesse conseguido levar a cabo tal empreitada, é estranho imaginar que o Irã agisse como se nada tivesse acontecido. A ausência de retaliações na mesma intensidade só seria explicada caso os agentes israelenses tivessem obtido sucesso total e desmoralizante – o que significaria destruir as instalações nucleares sem causar morte de civis, algo bastante improvável devido ao tamanho das usinas iranianas e da complexidade militar envolvida em sua anulação total.

Não creio na veracidade da revelação divulgada pelo WikiLeaks também por outras razões. A guerra entre Irã e Israel é um dos conflitos militares mais estudados antes mesmo de ele acontecer de fato. Digo isso porque, na prática, todo mundo já sabe os passos seguintes após a primeira onda de ataques às usinas nucleares iranianas. A República Islâmica irá fechar o estreito de Ormuz e mobilizar seus aliados nas fronteiras com Israel. Ou seja, Hamas e Hezbollah certamente atacarão o território do Estado judeu com centenas de mísseis. Essas medidas são conhecidas e seria muito improvável que os iranianos não adotassem nenhuma delas caso toda sua infraestrutura nuclear tivesse sido destruída por Israel.

Na verdade, o momento atual é exatamente o oposto ao do suposto sucesso de uma ofensiva israelense. A batalha atual é entre aliados: Benjamin Netanyahu e Ehud Barak tentam convencer o governo Barack Obama quanto aos avanços do Irã. Se o assunto já estivesse resolvido, o desgaste político de agora – e certamente o desgaste financeiro, militar, político e humano que uma guerra causaria – seria certamente evitado pelas autoridades de Jerusalém.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A possibilidade de vitória estratégica do Irã contra Israel

O programa nuclear iraniano tem sido interessante pelo menos sob um aspecto: ele tem descortinado boa parte das estratégias geopolíticas do Oriente Médio. As diretrizes políticas e militares dos governos – inclusive as do próprio Irã – têm sido reveladas. Basta somente prestar atenção aos acontecimentos. O último deles, e que teoricamente representa mais um passo dos iranianos rumo à concretização de seus planos atômicos, veio a público nesta quarta-feira.

Segundo a agência de notícias Fars, uma nova geração de centrífugas já está em operação na usina de Natanz, no centro do país. O ministro da Defesa israelense, Ehud Barak, reagiu ao anúncio, classificando a apresentação dos resultados como um show cujo objetivo seria tornar a situação irreversível. Seu raciocínio está certo, pelo menos em parte. Quanto mais próximos os iranianos estiverem de atingir capacidade nuclear plena, menores serão as chances de ataque de Israel, por razões óbvias. Do ponto de vista de Barak, sua declaração é a única possível. Afinal, se o programa nuclear do Irã estiver tão avançado como afirma, o governo israelense terá falhado. Ao mesmo tempo, manter o assunto na ordem do dia é importante para Jerusalém.

Já comentei por aqui sobre a doutrina de segurança de Israel. A base é até muito simples: não permitir a qualquer vizinho atingir condição de igualdade militar capaz de representar ameaça ao Estado judeu. O que está em jogo neste momento também é a relativização desta diretriz que rege os sucessivos governos israelenses desde que o país passou a existir.

“Israel finalmente se vê diante de escolhas que EUA e Grã-Bretanha precisaram fazer mais de seis décadas atrás. Espero que (Israel) passe a reconhecer que segurança absoluta é algo impossível de ser atingido na era nuclear”, escreve Gideon Rose, editor da prestigiada Foreign Affairs. Entendo o que ele quer dizer com este raciocínio, mas acho que é preciso ser mais claro; quando pede para Israel aceitar a situação do jeito como está – e possivelmente a evolução atômica iraniana – Rose está, na prática, pedindo que os israelenses aceitem a maior derrota militar de sua história.

A importância do que está em jogo foi notada por muito pouca gente. Se o programa nuclear iraniano forçar os israelenses a mudar sua principal doutrina de segurança, Teerã já terá vencido. Resta saber agora como a cúpula política e militar de Israel se comportará diante disso. Neste momento, a escolha me parece bastante clara (e difícil): Benjamin Netanyahu será lembrado como alguém que iniciou uma nova e sangrenta guerra no Oriente Médio para frear os planos do Irã ou será o primeiro-ministro que aceitou flexibilizar a diretriz histórica do Estado judeu? E, ao optar por esta última opção, irá se tornar o dirigente que levou Israel ao patamar de maior vulnerabilidade em todos os tempos.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Nova onda de atentados a israelenses: algumas pistas para entender o que está acontecendo

Seria irresponsável de minha parte apontar culpados pela nova onda de atentados a alvos israelenses na Geórgia e na Índia. Do ponto de vista das autoridades de Israel, o Irã e a milícia xiita Hezbollah são os autores dos ataques. No contexto da guerra cada vez menos velada entre Israel e Irã, a troca de acusações mútuas não surpreende. De minha parte, cabe tentar recolher os fragmentos do que está acontecendo para tentar encontrar sinais.

Nesta terça-feira, três outras explosões deixaram quatro feridos na Tailândia (foto) quando um iraniano que carregava uma granada perdeu o controle do artefato, detonando-o na rua. Neste primeiro momento, parece que a chave para entender o que aconteceu está neste homem, identificado como Saeid Moradi.

Este espaço se dedica há quatro anos a tentar compreender os acontecimentos internacionais para além de propagandas e discursos. Por isso, vou tentar juntar alguns cacos. Os atentados em Nova Déli, na Índia, e Tbilisi, capital da Geórgia, apresentam características similares e ocorreram com minutos de diferença. Ou seja, é muito provável que tenham sido coordenados. Esta informação é importante, na medida em que afasta – a princípio – qualquer hipótese de uma eventual “coincidência”. Outro aspecto que deve ser levado em conta é a onda de atentados recentes a alvos israelenses na região. Autoridades Estado judeu em conjunto com forças de segurança tailandesas já haviam frustrado tentativas de ataques entre o final de 2011 e o início de 2012 – o mesmo aconteceu em Azerbaijão e Bulgária.

No caso específico do Azerbaijão, as informações são mais detalhadas. No último dia 17 de janeiro, o governo azeri prendeu três homens (um deles iraniano) acusados de planejar o assassinato do embaixador israelense em Baku – capital do Azerbaijão –, de um professor e de um rabino de uma escola judaica local. Segundo as acusações de autoridades azeris, a inteligência iraniana teria oferecido 100 mil euros pela execução do plano.

Ao mesmo tempo, desde janeiro de 2010, quatro cientistas iranianos envolvidos no programa nuclear foram mortos em circunstâncias ainda não esclarecidas: assassinados por motociclistas misteriosos em configurações que lembram muito as do atentado ao carro do diplomata israelense em Nova Déli. Ou seja, podemos estar testemunhando a guerra entre Israel e o Irã sendo pontualmente travada em campo neutro. Ninguém tem condições de afirmar onde isso vai dar, na medida em que qualquer país pode passar a palco de novas movimentações. A diferença, no entanto, é que Israel teria realizado os ataques no Irã, enquanto os iranianos têm agido no exterior. A resposta para esta questão está na dificuldade em realizar qualquer operação deste tipo em território israelense. Tailândia, Bulgária, Índia e Geórgia certamente são países onde os israelenses estão em posição muito mais vulnerável do que em Israel, obviamente.

A outra hipótese para explicar esta onda de atentados não está totalmente desvinculada do Irã. O Hezbollah, satélite dos iranianos na fronteira de Israel, estaria se vingando da morte de seu chefe de operações, Imad Mughniyeh, quatro anos atrás, em Damasco. A autoria do caso, que permanece sem solução formal, acabou por ser creditada aos israelenses. Mughniyeh era um dos acusados pelo atentado à Amia, a principal associação judaica de Buenos Aires, realizado em 1994, e que provocou a morte de 85 civis.

Como se vê, há muitos elementos nesta história intrincada de atentados, respostas e novos ataques. Certamente, é esta trama que explica os acontecimentos atuais. Ainda não se pode acusar este ou aquele grupo, estado ou força de segurança, mas as evidências apontam para o envolvimento dos interessados de sempre.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Os interesses geopolíticos na Síria estão ainda mais claros

É importante ficar atento às muitas movimentações estratégicas a partir do episódio em torno da violência na Síria. Como escrevi na terça-feira, a região é importante demais para imaginar que apenas uma eventual – e legítima – preocupação com os direitos humanos seria o bastante para mobilizar as potências ocidentais e do Oriente Médio. Obviamente, há muito mais o que se dizer.

Um dos pontos fundamentais é a aliança de Bashar al-Assad com os iranianos. Não se trata somente disso, mas ela explica parte da intenção dos atores de depor o presidente sírio. Ele mesmo um membro de uma minoria religiosa foi esperto o bastante para se cercar de outros membros das muitas divisões étnico-religiosas do país. Deu cargos importante a cristãos e xiitas para mandar um recado claro: ou as minorias se uniriam ou seriam relegadas ao segundo escalão em qualquer configuração envolvendo a tomada do poder pela maioria sunita.

A aliança com o Irã nasceu a partir disso. Ter o mais importante país xiita do Oriente Médio como suporte foi uma via de mão-dupla. Ao clã Assad, legitimidade, comércio e barganha política. Ao Irã, sua única aliança no mundo árabe. E este mundo árabe que cerca a República Islâmica tem uma agenda bastante diferente. Como disse, é impossível ignorar a rivalidade entre xiitas e sunitas em qualquer análise regional. A própria Liga Árabe se transformou na expressão política mais relevante dos Estados sunitas. E, agora, com a Síria mergulhada no caos – correndo o risco, inclusive, de se esfacelar como entidade política unitária –, a oportunidade que todos esperavam para dar o golpe fatal que pode decretar a vitória sunita. Acabar com a união entre sírios e iranianos é quebrar o vínculo principal do chamado eixo “xiita” (formado também por Hezbollah e Hamas).

Não por acaso os supostos principais articuladores e financiadores do Exército Livre da Síria seriam a Arábia Saudita e o Catar. O problema para os sunitas é que igualmente interessada em tomar sua própria parte dos escombros da Síria está a Turquia, a potência emergente da região e que deseja nada menos do que a liderança do Oriente Médio. É estranho classificar como “problema” ter um ator tão importante do mesmo lado. Mas é preciso entender que este é um daqueles momentos muito breves em que a união é construída unicamente como forma de derrubar o opositor, e não por semelhanças ou eventuais interesses futuros. Muito pelo contrário.

A base do Exército Livre da Síria está neste momento em território turco. E o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, o líder político mais sagaz do Oriente Médio, quer usar a seu favor a luta popular dos sírios contra o regime de Assad. Depois que ele cair – e isso deve acontecer mais cedo ou mais tarde – a luta deverá ser entre sauditas e turcos pela liderança regional. A Turquia vai usar o máximo que puder a popularidade de seu primeiro-ministro e a balela de que é um exemplo para a região de como islamismo, democracia e livre mercado podem se conciliar (eu digo balela porque, até agora, isso ainda não se repetiu nos outros países). Quem deve sair perdendo mesmo são os russos, como aponta o analista Leon Hadar, da consultoria geoestratégica Wikistrat. A análise é interessante e por isso acho que vale compartilhá-la:

“Trabalhando em conjunto com os membros da Liga Árabe, os turcos devem buscar uma solução (...) que envolva a remoção da família Assad e de sua comitiva do poder. Seu exílio em Moscou seria seguido pelo envio de tropas de paz de árabes e da Turquia”, escreve. Acho que deve ser bem por aí mesmo. Se os russos estão de tal forma engajados em sua aliança com Bashar al-Assad, é capaz de morrerem abraçados com ele.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

A guerra entre Irã e EUA na Síria

A batalha geopolítica na Síria também está contaminada pela rivalidade regional entre sunitas e xiitas. A elite síria alauíta – ramo minoritário do islamismo com mais proximidade aos xiitas do que as sunitas – tem o apoio de seu grande aliado e patrocinador: o xiita Irã. Neste contexto, não é surpresa que a Liga Árabe – formada em boa parte pelos poderosos sunitas Arábia Saudita, Catar, Emirados Árabes Unidos e Omã, por exemplo – tenha dado um passo à frente ao tentar emplacar a resolução que condenaria o regime de Bashar al-Assad na ONU. Não deu certo, como se sabe.
 
No entanto, este quadro mais amplo que coloca em lados opostos xiitas e sunitas explica o que está em jogo. Se o regime de Assad cair, o Irã perde seu único aliado árabe. E, convenhamos, o poderio militar, político e econômico sírio não pode ser ignorado. Derrotar o presidente sírio e seu regime é, no fim das contas, impor também uma derrota importante aos iranianos. Isolá-los é subir mais um degrau na guerra que já está em curso no Oriente Médio. Derrotar a República Islâmica sem necessidade de um enfrentamento direto é a estratégia que mais agrada aos americanos. Quanto mais o governo de Mahmoud Ahmadinejad estiver enfraquecido, menores as possibilidades de um conflito militar. Isso, claro, se a estratégia de Washington não levar em consideração como pode ser perigoso forçar esta espécie de rendição total do Irã (a reflexão do pesquisador Mark A. Heller, da Universidade de Tel Aviv, é um contraponto a esta visão. Convido-os a lerem o meu texto do último dia 26 de janeiro para uma análise mais ampla sobre o assunto)

Para ser muito claro, acho que a estratégia americana é a de comer pelas tabelas. Autoridades dos EUA já declararam que uma intervenção na Síria é algo impensável. Até por conta de fatores externos, e não me refiro somente aos riscos políticos que envolveriam uma operação do gênero. O líder supremo iraniano, Ali Khamenei, disse abertamente que uma ofensiva americana seria respondida com um conflito regional. E, claro, Washington quer evitar isso ao máximo. Mas, ao mesmo tempo, a Casa Branca trabalha abertamente com o discurso de mudança de regime na Síria, o que soa contraditório, na medida em que descartam intervenção.

Os americanos vão optar pelo modelo líbio. Não o que concretizou a ofensiva aérea que, no fim das contas, contribuiu enormemente para a queda de Kadafi. O outro lado da guerra na Líbia foi o armamento dos grupos de oposição, mesmo que ninguém tivesse claro – e esta pergunta ainda não foi respondida, diga-se de passagem – quem eram seus membros e o que eles defendiam ideologicamente. Os EUA vão armar o chamado Exército Livre da Síria. A diferença neste caso – e que dá um pouco mais de sustentação à decisão americana – é que, ao contrário do que aconteceu na Líbia, Washington contava até esta segunda-feira com uma embaixada local. A representação em Damasco certamente fez contatos com os grupos de oposição durante quase um ano (tempo transcorrido entre o início dos confrontos até a decisão de Washington de fechar a embaixada devido ao temor de que o prédio pudesse ser alvo de represálias do governo Assad).

O embaixador Robert Ford (foto) – sobre quem, inclusive, já escrevi um post por aqui – é pessoalmente envolvido nos conflitos em território sírio desde o começo da agitação local. Tanto que os defensores de Assad o consideram mais ativista do que diplomata. O comunicado oficial da Casa Branca divulgado na segunda-feira deixa claro para quem quiser ler: “Ao lado de outros oficiais de nível sênior, o embaixador Ford vai manter contatos com a oposição síria e dar continuidade a nossos esforços de apoiar uma transição política pacífica”. Como até agora não há qualquer demonstração de alguma possibilidade de transição pacífica, o projeto de mudança de regime deve se basear no enfrentamento indireto com Assad. E, por consequência, com o Irã, aliado do regime também na esfera militar. Para os que ainda não notaram, a guerra entre Irã e EUA está prestes a acontecer.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A Rússia não é uma exceção internacional

“Suponha que o regime sobreviva. Que tipo de Síria ele iria governar?”. Esta é uma das reflexões mais serenas que li sobre o guerra que já está em curso no país. Foi escrita por Robert Fisk, jornalista e reconhecido estudioso do Oriente Médio – com quem nem sempre concordo, diga-se de passagem. No entanto, ele consegue abstrair de toda a sorte de elucubração para lançar uma dúvida óbvia. Por quanto tempo é possível manter a própria população em estado de permanente insatisfação e belicosidade num mundo onde as fronteiras são cada vez mais perenes? E quando falo em fronteiras me refiro às que dividem países, mas também aos obstáculos que tentam impedir manifestações, interação e comunicação com o resto do mundo.

No século 21, a forma de controle rígido que muitos praticaram até o passado recente está muito difícil de ser mantida. Considero esta uma das principais contribuições da tecnologia – e, felizmente, algo que se fortaleceu neste começo de milênio. Escrevi na terça-feira sobre os motivos práticos que tornaram a Rússia a superdefensora dos interesses de Bashar al-Assad. Acho importante contextualizar esta diretriz de Moscou de forma a não transformá-la numa espécie de exemplo singular de agente internacional de decisões geopolíticas que estão no lado errado da história.

A Rússia está longe disso. Principalmente porque todos os países agem de acordo com seus interesses. A geopolítica não é o espaço do exercício da bondade humana, muito pelo contrário. Por exemplo, eu tenho escrito muito sobre o programa nuclear iraniano desde que criei este espaço, em 2008. Acho mesmo que as ambições atômicas iranianas são fator de instabilidade regional numa região que obviamente já é bastante problemática. A comunidade internacional se preocupa com o assunto e de tempos em tempos procura encontrar soluções capazes de conciliar os distintos discursos em jogo: o argumento iraniano de que tem o direito de buscar energia nuclear; a posição ocidental – amparada pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) – quanto a evidências de que o país tem intenções de produzir arsenal militar nuclear; e o discurso de todos os envolvidos de que a guerra é uma possibilidade, mas não reflete a vontade inicial de ninguém.
 
Em maio de 2010, Brasil e Turquia conseguiram resolver o problema, estão lembrados? O Irã chegou, inclusive, a assinar um acordo mediado por esses dois países em que se comprometia a enviar ao exterior urânio com baixo enriquecimento em troca de combustível para seu reator de pesquisas. A partir daí, no entanto, as potências nostálgicas do mundo do século 20 jogaram água na conquista diplomática de Brasil e Turquia. Porque geopolítica é o espaço de luta por interesses, não necessariamente de solução dos problemas mundiais. Se o acordo com os iranianos fosse levado adiante, brasileiros e turcos seriam alçados ao primeiro escalão da política internacional, tendo ainda mais força para pleitear a revisão das configurações de poder ainda vigentes e, inclusive, alavancando o discurso de inclusão de novos membros no Conselho de Segurança da ONU. Sarkozy e Obama colocaram na balança e optaram pelo mal que lhes parecia menor: a manutenção do impasse sobre o programa nuclear iraniano.

Mesmo a relação tão criticada entre Lula e Mahmoud Ahmadinejad pode ser lida como uma tentativa do ex-presidente brasileiro de alçar o Brasil ao palco principal do jogo de poder internacional. Aliás, acho que esta hipótese explica muito esta opção de Lula.

Tudo isso para dizer que a Rússia está errada ao sustentar o regime de Bashar al-Assad. Mas os demais países não podem se considerar os guardiões do bom-senso mundial. Muito pelo contrário.