quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

2011: um ano para entrar na História

Está na hora da virada do ano. E não se pode dizer que 2011 seja um desses anos que passarão batidos pela História humana. Definitivamente, este é um daqueles momentos em que pudemos notar as páginas sendo escritas. E o que torna tudo muito único e especial é que os acontecimentos se tornaram populares. Não apenas os protagonistas da maior parte deles são, em sua maioria, pessoas comuns, mas também os consumidores de informação globais são pessoas comuns.

O fato mais relevante foi, sem dúvida, a Primavera Árabe. Como escrevi ao longo dos posts, a tal “revolução” ainda não se concretizou. É, por ora, apenas um clichê bacana adotado pela imprensa internacional. Ninguém pode prever o destino do mais populoso dos países árabes, o Egito, mas o que aconteceu por lá reverberou regional e globalmente. Foi a primeira vez que manifestantes não filiados a partidos ou movimentos islâmicos tomaram as ruas exigindo a queda do regime, democracia, liberdade, eleições limpas e, principalmente, oportunidades para construir um país mais justo. A Praça Tahrir se transformou em símbolo da indignação popular mundial e também do constrangimento das potências ocidentais.

Afinal de contas, os mesmos países que consideravam as ditaduras árabes do Oriente Médio e do Norte da África como fato consumado – e se aliaram a elas, vale lembrar – tiveram de dar meia-volta e se expor diante de todo o mundo. E por conta disso o presidente Barack Obama decidiu invadir a Líbia. É claro que houve manifestações populares por lá também. E é claro que Kadafi deu aos rebeldes o tratamento padrão destinado aos opositores. E este foi seu maior erro. A guerra travada contra os próprios cidadãos se transformou na justificativa perfeita para os EUA embarcarem no bonde certo da Primavera Árabe. Assim, com mais dificuldade do que se imaginava, a coalizão que armou rebeldes, promoveu ataques aéreos e acabou por criar um modelo de intervenção quase antiséptica, derrubou Kadafi e entregou a Líbia numa bandeja de prata a sabe-se lá quem. Entre os rebeldes há de tudo um pouco: ex-membros do próprio governo Kadafi, representantes das tribos líbias e até jihadistas islâmicos.

No ano de 2011 o mundo assistiu a um fato raro; os acontecimentos da rua árabe influenciaram movimentos similares no Ocidente: os indignados na Espanha, na Grécia e até o movimento Occupy Wall Street, em Nova Iorque (que por sua vez rendeu outros tantos protestos populares em diversas cidades americanas). Esta é uma mudança importante que mostra também a grande virada que já está em curso: a do eixo de poder internacional. Se as potências ocidentais não deverão deixar de usufruir de poder global, as graves crises econômicas nos EUA e na Europa forçaram um recuo desses países. E as circunstâncias acabaram muito favoráveis aos emergentes, principalmente ao Brasil, que termina 2011 com a notícia de impacto global de ter tomado da Grã-Bretanha a sexta colocação no ranking das maiores economias do planeta. Definitivamente, este foi o ano de grandes e profundas mudanças de paradigma.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O novo colapso do Iraque

A série de atentados cometidos nesta quinta-feira no Iraque é ruim para todo mundo. Pelo menos para aqueles que pretendem encontrar alguma forma de acomodação política no país que seja capaz de permitir a seus cidadãos algo parecido a uma vida normal. Depois de Saddam Hussein e das milhares de mortes e perdas materiais ocorridas durante o período de presença das forças americanas, as pessoas comuns estão cansadas, muito cansadas. Quando atentados coordenados voltam a matar centenas de civis, como aconteceu nesta quinta, a população teme por um retrocesso significativo. Quem já perdeu demais conhece os sinais de uma tragédia iminente. Se os ataques terroristas já representam por si só catástrofes humanitárias óbvias, fica também o alerta de que a estrutura nacional construída a duras penas está novamente ameaçada.

E isso somente quatro dias depois de as tropas dos EUA deixarem oficialmente o Iraque. Na raiz dos problemas atuais a velha conhecida divisão sectária entre sunitas e xiitas. Se este é o dilema geopolítico mais amplo de todo o Oriente Médio, é no instável território iraquiano que ele revela sua faceta mais conturbada. Nos anos de Saddam Hussein a minoria sunita (cerca de 20% da população) era beneficiada pelo ditador. Com a queda de Saddam, os sunitas foram os principais insurgentes a combater a coalizão anglo-americana por motivos óbvios. Eles temiam o que poderia acontecer se o país fosse comandado pela maioria xiita (60% dos iraquianos).

De forma muito sagaz, Washington buscou um modelo político que pudesse abrandar as rivalidades, dando representação a todos os principais setores nacionais. Os xiitas ficariam com o cargo de primeiro-ministro, os curdos, com a presidência, e os sunitas, com a vice-presidência. E assim foi feito. Aliás, este é um projeto que bem ou mal funciona no Líbano. No caso iraquiano, os sinais de que algo iria dar errado já eram percebidos durante o duro processo de formação do governo, que por meses deixou o país num vazio político. Por fim, o xiita Nuri al-Maliki assumiu a liderança, tendo o sunita Tareq al-Hashemi como vice-presidente.

O principal bloco político sunita, o Iraqiya, acusa Maliki de tentar tomar todo o poder para si. Por isso, seus membros abandonaram o parlamento no último sábado. Agora um adendo externo: o primeiro-ministro é apoiado politicamente pela maior potência xiita do Oriente Médio, o Irã. Em meio ao embate geopolítico entre as alianças de Estados sunitas e xiitas, transformar o Iraque em aliado – com o poder nas mãos exclusivamente dos xiitas – é o melhor cenário para os iranianos. Ainda mais neste momento em que o país de Mahmoud Ahmadinejad e Ali Khamenei está em desvantagem numérica. Do ponto de vista da população sunita – que, obviamente, não está alheia aos acontecimentos externos –, impedir tal aliança parece ser a única alternativa para evitar o que ela imagina que pode se transformar numa grande vingança xiita pelos anos de privilégios concedidos aos sunitas durante o regime de Saddam Hussein.

Agora, de volta ao Iraque. O primeiro-ministro Nuri al-Maliki pôs o vice Tareq al-Hashemi na ilegalidade. Acusando-o de ter participação num atentado contra membros do governo há cinco anos, Maliki determinou sua prisão. Hashemi fugiu para Erbil, capital da região curda autônoma no norte do país. Portanto, é preciso dizer claramente: o governo iraquiano está em colapso. As rivalidades sectárias entre sunitas e xiitas estão formalmente de volta ao tabuleiro menos de uma semana depois da partida dos soldados americanos. Num olhar mais amplo e que leva em conta a situação internacional, o Iraque hoje está no centro das disputas. Isso porque as províncias de maioria populacional sunita (Anbar, Diyala e Salahuddin) passaram a reivindicar autonomia política. Para completar, Anbar faz fronteira com a Síria, cuja maior parte da população é sunita, e, assim que Bashar al-Assad cair, deve se aliar formalmente aos sunitas iraquianos.

Se o Iraque de fato for fracionado – e esta é uma possibilidade real – a guerra sectária que tomou conta do país voltará a acontecer. E, desta vez, será ainda pior porque os diversos interesses regionais se manifestarão com mais força no território iraquiano: os sunitas apoiados por Arábia Saudita e o eventual novo Estado sírio; e os xiitas apoiados pelo Irã. E este é apenas o cenário mais restrito do novo confronto que está por vir.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Os próximos passos de Coreia do Norte, EUA e China

Mais além da morte de Kim Jong-il está um dos confrontos silenciosos mais importantes do mundo de nossos dias: a batalha retórica entre China e EUA. Aliás, nem tão retórica assim. Os dois países respondem pelas duas maiores economias do planeta e competem não apenas por influência – esta é uma questão menos relevante aos chineses, mais preocupados com mercados do que com simpatizantes –, mas pela posição de liderança no ranking econômico internacional.

Antes de entrar no mérito de como a Coreia do Norte é sujeito desta história, uma pequena explicação que considero fundamental: sou adepto da teoria de George Friedman, fundador e presidente do Stratfor, o principal instituto privado de análise política dos EUA. Grande parte dos estudiosos e mesmo a imprensa costumam ignorar o papel do comércio no jogo geopolítico. Pode parecer discurso do século 18, mas não é. Escoar produção ainda continua a ser peça-chave de nossos tempos. E, para isso, é preciso ter acesso ao mar. E ninguém supera até hoje os americanos em seu privilegiado posicionamento geográfico que permite controlar o Atlântico e o Pacífico – e, além disso, as empreitadas militares e políticas ainda deram aos americanos a capacidade de manter presença no Golfo Pérsico, principal centro exportador de petróleo.

O problema deste início de século 21 é que o centro do comércio mundial está mudando. Com a China à frente da economia, a Ásia passou à região estratégica também sob o ponto de vista comercial. E quem controla o Mar da China? Esta grande movimentação representa uma ameaça à soberania comercial americana, justamente num momento de profunda crise. Por isso os EUA têm buscado reforçar suas posições na região. Em novembro passado, o presidente Obama fez visita oficial aos aliados na Ásia. Algumas das decisões anunciadas neste giro regional são o envio de 2,5 mil marines para a Austrália, o fortalecimento da cooperação militar com as Filipinas e o deslocamento de navios de combate a Cingapura. Está claro o que isso significa, certo?

Agora sim, de volta à Coreia do Norte. O vácuo deixado por Kim Jong-il deve ser observado dentro deste contexto. Como escrevi na segunda-feira, a morte do “Querido Líder” é um evento ainda inconcluso. Ou seja, as correntes de interpretação levantam a bola em duas direções opostas: oportunidade de abertura ou aprofundamento do regime de silêncio, paranoia e espionagem interna. Sinceramente, acredito que a balança tende mais à segunda possibilidade. Isso porque a China tem muito interesse nisso. E é, de fato, a única com algum poder de influência sobre Pyongyang. Os chineses são responsáveis por 90% do investimento no país e respondem por 80% do comércio da Coreia do Norte. Na prática, são os únicos que estão com os pés por lá.

Ex-diretor para assuntos asiáticos da Casa Branca, Victor Cha extrapola e cogita, inclusive, a possibilidade de a China anexar a Coreia do Norte, tornando-a mais uma de suas províncias. Não me arrisco nesta previsão, mas acredito mesmo que Beijing se fará ainda mais presente no país –

menos por interesses humanitários e econômicos e mais para evitar qualquer presença ostensiva americana. Por falar nisso, não duvidem que esta janela de oportunidade para reforçar os laços asiáticos de Washington se aprofunde nos próximos meses. E este discurso da Casa Branca pode passar a assumir contornos mais concretos de duas maneiras: defendendo a reunificação das Coreias – sob liderança dos governantes da Coreia do Sul, claro – ou defendendo uma intervenção militar por conta das frustradas negociações em torno do programa nuclear norte-coreano (considero esta possibilidade a mais remota).

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A morte de Kim Jong-il

A morte do ditador norte-coreano, Kim Jong-il, não tem absolutamente nada a ver com a Primavera Árabe. Mas, em meio a tantos eventos internacionais importantes, acho bem curioso que o regime mais fechado do planeta perca o seu “Querido Líder” – seu vocativo compulsório no país – justamente neste ano. Admito ser um tanto forçado fazer comparações mais profundas entre os acontecimentos no Norte da África e no Extremo Oriente, mas este é um período de simbolismos, correto?

Nada mais simbólico que o vácuo momentâneo deixado pelo mais esquizofrênico dos líderes mundiais. Perto da Coreia do Norte, Cuba, Irã e Arábia Saudita são acampamentos de verão. Se a morte de Kim Jong-il encerra um ano marcado pela queda de algumas das ditaduras mais consolidadas do mundo, é preciso lembrar também que a “revolução” alardeada pela imprensa internacional ainda não aconteceu em países importantes como Egito e Síria.

Curioso também é assistir à reação internacional ao evento mais importante da Coreia do Norte. Há expectativas quanto ao jovem ditador que está para surgir; ninguém pode afirmar o que vai ser do país sob o comando de Kim Jong Un, o rapaz de 29 anos de idade , filho de Kim Jong-il e que deve ser seu sucessor. Sabe-se que recebeu uma parte da educação no Ocidente, numa escola de alto padrão na Suíça. Mas 2011 e a história recente das ditaduras globais não permitem a associação entre este fato e qualquer possibilidade de abertura: Bashar al-Assad, o presidente sírio que comanda um governo responsável pela morte de cerca de 5 mil de seus próprios cidadãos, é formado em medicina, estudou e fez residência em Londres, nos anos 1990; Saif al-Islam, o filho mais conhecido de Kadafi, estudou na prestigiada London School of Economics.

É importante notar também as distintas abordagens dos governos ao regime norte-coreano. Os ocidentais querem novas negociações e esperam interromper o ciclo nuclear de Pyongyang. Há informações, inclusive, de que os EUA teriam conseguido autorização para novas inspeções de funcionários da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) em troca do envio de 240 mil toneladas de alimentos à Coreia do Norte. O comunicado da China, a potência que não permite interferências no Mar da China e principal aliada de Kim Jong-il, tem conteúdo bastante distinto: “o povo continuará a avançar na causa do socialismo norte-coreano”. Pois é.

Em meio a essas slogans, é preciso ser claro e dizer que a população está faminta e desempregada. Se Kim Jong Un tiver um pouquinho mais de humanidade que seu pai, abrirá o país e tentará desenvolver indústrias e empresas.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O que está por trás da atual troca de acusações entre EUA e Rússia

A nova rodada de tensões entre EUA e Rússia soa, para muita gente, como o lançamento de uma espécie de filme vintage sobre a Guerra Fria. Faz sentido. Principalmente porque as razões deste novo enfrentamento retórico entre os dois países se deve, em boa parte, à luta por influência regional. Os americanos não querem abandonar seus aliados da Europa Central; os russos consideram uma afronta que Washington vá se meter numa área de influência que ainda toma como a sua própria. É ou não é um jogo de poder um tanto empoeirado?

As eleições parlamentares realizadas na Rússia – cujos resultados são para lá de suspeitos – levaram para o centro das discussões internacionais um assunto que andava marginal. Principalmente porque a Casa Branca não quer repetir na Rússia o erro que cometeu no Egito e na Tunísia, quando demorou a reagir aos protestos populares que exigiam a queda dos respectivos regimes. O problema é que a complexidade geopolítica não permite uma simples esquematização dos acontecimentos. Não é possível aplicar a “fórmula” dos países árabes; primeiro porque a Rússia tem uma história completamente diferente; segundo porque os 60 mil manifestantes reunidos em Moscou na maior manifestação contra o governo desde o fim do comunismo não são os egípcios da Praça Tahrir.

Por mais que o número de gente protestando contra o regime de Putin-Medvedev seja grande, ainda não está claro se este é um movimento de massa contra o primeiro-ministro do país ou contra as fraudes eleitorais. E, além disso, a influência americana em assuntos internos russos sempre é um tema crítico.

Mais além desta troca de acusações mútuas (Putin já reforçou o discurso de que os russos contrários a seus projetos políticos estão, na verdade, obedecendo a ordens diretas da Secretária de Estado americana, Hillary Clinton), as disputas geopolíticas que de fato importam: a história não é novidade. Trata-se da batalha pela implantação do Sistema de Defesa de Mísseis Balísticos. A iniciativa americana é antiga e formalmente justificada como uma proteção do continente europeu diante das ameaças representadas pelo Irã. O problema é que, segundo o plano da Casa Branca, este armamento será instalado logo ali, ao lado da fronteira russa.

E, claro, Putin tem tudo isso em mente neste momento. Não será surpresa, por outro lado, se o governo americano passar a reforçar o discurso de democracia em Moscou. Afinal, o descontentamento do Kremlin pode induzir à dificuldade da passagem de suprimentos americanos para as tropas do Afeganistão, por exemplo. Esta polarização pode ter consequências mais graves. A Rússia já costumava embarreirar os interesses de Washington no Conselho de Segurança da ONU. Agora, deve tornar compulsória esta oposição.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Obama e o avião perdido para o Irã

O pedido do presidente Barack Obama para o Irã devolver o avião não-tripulado capturado no último dia 4 é o símbolo máximo da ingenuidade de Washington. Ou então de uma sagacidade ainda incompreendida por todo mundo. Como não acredito que a política externa da maior potência mundial é construída sobre esses pilares, fico com a posição de que a Casa Branca quer, mais uma vez, demonstrar não estar disposta a levar adiante qualquer tipo de confronto mais aprofundado com Teerã.

Isso porque, como escrevi na última semana, os americanos sabem que o momento atual é de disputa interna na República Islâmica. E a guerra política por lá pode ter consequências regionais ainda mais profundas. Se com Ahmadinejad na presidência é ruim, com Qassam Suleimani, comandante da Guarda Revolucionária, a situação pode e deve ser pior. Talvez isso explique, em parte, a acomodação dos EUA neste caso – até porque, por mais que haja riscos de a inteligência iraniana extrair dados militares americanos deste avião, ao que parece esses riscos são mínimos; trata-se de um equipamento que envia imagens para quem o opera em terra, mas não armazena informações em quantidade significativa.

É provável que a perda do avião seja um mal menor para os americanos. Que Ahmadinejad leve esta vitória política, que sirva ao menos para impedir Suleimani de ganhar ainda mais força. Este raciocínio pode parece absurdo, mas vale lembrar que, quando se trata do Irã, Obama tem optado por acomodar a situação, empurrando o quanto pode qualquer definição mais clara. E vai fazer isso pelo menos até as eleições presidenciais de 2012.

O problema desta estratégia silenciosa é justamente fornecer munição política ao Partido Republicano. O que Obama espera que seja esquecido certamente será usado nos debates do ano que vem. Os republicanos vão tomar o caso do avião não-tripulado como o símbolo máximo da capitulação Democrata diante da República Islâmica. E, não se enganem, este é o tipo de retórica bastante poderosa nos EUA.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A Turquia se transforma no superestado do Oriente Médio

A situação cada vez mais deteriorada na Síria é importante do ponto de vista regional e global. Ela também explica em boa parte a ascensão de um ator mundial que dia a dia assume status de crescente influência: a Turquia. O governo de Ancara talvez seja um dos principais beneficiados da Primavera Árabe, mesmo que o movimento não se consuma sobre os pilares dos sonhos ocidentais.

A Turquia mantinha uma política externa que parecia muito clara: forjou alianças com os atores islâmicos de poder (Síria e Irã) na tentativa de obter popularidade entre a população islâmica. Afinal de contas, Ancara era um governo aliado às ambições de “libertação” contra as muitas tentativas de presença ocidental no Oriente Médio e, ao mesmo tempo, usufruía de condições únicas (como já listei algumas vezes por aqui); assento na Otan, economia de mercado relevante e que mantém índices de crescimento bastante consideráveis mesmo nesses tempos de crise e, finalmente, um sistema político que conjuga islamismo e democracia. A Turquia é popular graças ao primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, mas também porque conseguiu se estabelecer como a representação oficial dos muçulmanos junto ao Ocidente. E, principalmente, uma representação que sabe jogar pesado quando necessário, que não se curva diante das pressões.

Este discurso é muito poderoso e as autoridades turcas sabem fazer uso dele com muita habilidade. A repressão que Bashar Assad coordena aos manifestantes antirregime desde março acabou por mudar um pouco a linha de raciocínio da cúpula política de Ancara. Os turcos adaptaram parte de sua estratégia; “o grande pai dos islâmicos” que patrocinou a Frota da Liberdade, por exemplo, passou a incluir a proteção à população muçulmana também quando ela é vítima de seus próprios governantes. A Turquia precisou ser flexível e foi bastante perspicaz ao entender rapidamente as mensagens das ruas árabes durante as manifestações populares.

Assim, no lugar de simplesmente ser parte do eixo político contestador, o país deixa claro que se transformou num ator independente que não mantém necessariamente vínculos com os Estados muçulmanos, mas com a população comum muçulmana. Este foi o pulo do gato de Erdogan. E por isso rompeu com o presidente sírio Bashar al-Assad. Esta estratégia tem se mostrado vitoriosa de uma maneira muito rara. Hoje, a Turquia é admirada pelos cidadãos comuns dos países islâmicos, mas também é reconhecida pelo Ocidente. EUA e União Europeia enxergam em Erdgoan e em seu governo uma ponte para o Oriente. Este é o melhor dos cenários porque coloca a Turquia na posição privilegiada de superestado, quase uma entidade a representar justiça e bom-senso na região mais conturbada do planeta.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Irmandade Muçulmana sai na frente nas eleições no Egito

Os primeiros resultados das eleições egípcias não são nada animadores ao Ocidente. O islamismo político obteve 60% dos votos, provocando um clima de desapontamento e preocupação pelo menos entre EUA e União Europeia. Não é possível dizer, no entanto, que esta situação seja surpreendente. Vitoriosa na Tunísia e amplamente popular graças à Turquia, a união entre religião e política aparece como o grande modelo de sucesso entre esses países que acabaram de derrubar seus ditadores históricos.

A equação encontrada pela Turquia é sonho de consumo não simplesmente pela forma como promove uma maneira de manter o islamismo aliado à democracia. Longe disso. O governo de Ancara é líder regional indiscutível e o primeiro-ministro Erdogan é a figura política mais popular nos países muçulmanos. Todas essas características não podem simplesmente ser esquecidas quando se pensa em alguma forma de análise quanto ao futuro do Egito. No entanto, é bom que se diga que não necessariamente a Irmandade Muçulmana aplicará o modelo turco – o que, diante das demais alternativas, seria de bom grado a EUA e UE.

Agora, em relação à ascensão política da Irmandade Muçulmana: é um fato que desaponta por conta também de uma visão um tanto inocente da imprensa ocidental. Todos acreditavam que a queda de Mubarak seria sucedida por um governo democrático nos moldes de França, EUA, Brasil etc. A democracia não resolve todos os problemas e ela não é resposta a tudo. Todo mundo acreditou que a democracia egípcia seria seguida também pelo respeito às liberdades individuais e aos direitos humanos. Este pensamento é lógico no Ocidente pela simples razão de que a ideia de um regime democrático jamais é dissociada desses valores.

Todos parecem se esquecer da ascensão política do Hamas por meio de eleições democráticas palestinas em 2006. O simples processo eleitoral democrático não garante absolutamente nada. E é exatamente isso o que ocorre no Egito neste momento. A Irmandade Muçulmana recebeu, por ora, 37% dos votos; os salafistas – que defendem, dentre outras iniciativas, a adoção de impostos adicionais aos cristãos egípcios pelo simples fato de eles não serem muçulmanos – estão em segundo lugar com 24%. A massa de gente que brigou na Praça Tahrir causou uma ilusão coletiva de que o Egito estava pronto para se tornar um Estado laico e democrático. Por ora, as urnas mostram que esta não é a vontade popular. Tanto que o partido liberal Bloco Egípcio conquistou somente 15% dos votos.

O melhor a fazer neste momento é justamente esperar e ver o que deve acontecer. Acredito que mesmo um governo liderado pela Irmandade Muçulmana deverá tentar algum tipo de acomodação com os ocidentais. Principalmente porque, como escrevi, o Egito conta com três bilhões de dólares em ajuda anual dos EUA. Não me parece que o sucessor de Mubarak poderá abrir mão desta quantia. Atualmente, o turismo está parado (por motivos óbvios), o país perde um bilhão de dólares por mês em reservas cambiais e 25% dos jovens estão desempregados. Este é um cenário que praticamente obriga qualquer líder a deixar ideologias de lado e a pensar de maneira pragmática.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Rússia: está na hora de Putin e Medvedev pegarem leve

Os resultados das eleições parlamentares na Rússia mostram um quadro desfavorável a Putin e Medvedev – respectivamente, primeiro-ministro e presidente do país. Os aliados que se revezam no poder há quase 12 anos sofreram um revés que tem sido classificado pela imprensa internacional como humilhante. A Rússia Unida (RU), a legenda de ambos, recebeu pouco menos de 50% dos votos. Ainda é um número expressivo, mas aponta redução de 77 cadeiras na Duma, o parlamento russo, forçando o partido a formar coalizões com os demais.

Na prática, o processo eleitoral do país tem repercutido também pelas evidências de fraude. Jornalistas russos denunciam ter visto grupos de partidários do RU votarem mais de dez vezes; há vídeos e imagens postados no Facebook e Youtube mostrando coerção oficial a eleitores e urnas violadas. Observadores europeus não avalizaram as eleições por todas essas razões.


Diante de tudo isso, mesmo os pouco menos de 50% conquistados por Putin e Medvedev representam uma marca muito boa para eles. Se fosse possível extrair um resultado limpo, no entanto, é bem possível que o RU obtivesse uma votação bastante inferior. Seja como for, os dois líderes estão assimilando o recado. Por mais insistentes que sejam, por mais autoconfiantes que se apresentem diante do público, vão sentir o golpe das urnas. O próximo desafio é a campanha presidencial cujas eleições estão marcadas para março do ano que vem. Alguém tem dúvidas de quem será o vencedor?

Na Rússia não há este tipo de questão. Putin não apenas apresentou sua candidatura, como também anunciou que será o próximo presidente. De novo. Neste cenário, o agravamento da polarização entre o futuro chefe de governo e a população pode precipitar um movimento urbano bastante similar ao da Primavera Árabe. Uma das grandes lições deste ano diz respeito justamente ao limite da pressão exercida sobre os insatisfeitos. Governantes que pretendem se estabelecer em seus cargos – não simplesmente ocupá-los por tempo determinado – passaram de temidos a desafiados. A votação na Rússia neste domingo reafirma esta mensagem.

Agora, Putin e Medvedev têm duas alternativas: ou pegam leve na repressão a jornalistas, dissidentes e membros da oposição ou mantêm a repressão atual e correm o risco de aprofundar o clima de impaciência vigente (principalmente em Moscou e São Petersburgo). E 2011 não parece um ano aconselhável para isso.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O Irã ainda mais afastado da comunidade internacional

O distanciamento entre o Irã e o Ocidente chegou a seu momento mais agudo nesta semana. A invasão à representação diplomática britânica em Teerã é o ponto mais flagrante de uma relação que tem piorado ano após ano. Não se pode descontextualizar o momento, por isso é importante deixar claro que os iranianos estão especialmente incomodados não somente com as sanções, mas também com medidas “paralelas” tomadas pelos potências ocidentais para frear seu programa nuclear.

Vamos às mais relevantes: a sabotagem por computador das centrífugas de enriquecimento de urânio, os assassinatos de três cientistas nucleares do país e uma explosão ocorrida na última semanada na cidade de Isfahan que acabou por matar um general diretamente envolvido no desenvolvimento balístico. Todos esses eventos – ainda não esclarecidos – estão relacionados à guerra indireta que já está em curso. A escalada de acontecimentos, no entanto, deixa em aberto quais serão os próximos passos deste conflito cada vez menos silencioso.

O que fica claro, pelo menos por ora, é que o Irã está mais isolado da comunidade internacional do que nunca. Isso também se deve ao contexto regional: a Síria está envolvida com seus muitos problemas; e a Turquia parece ter rompido com Teerã pela razão óbvia de que os dois países estão mais para competidores pelo protagonismo no Oriente Médio do que para aliados. Os turcos estão muito preocupados com a situação na Síria por conta da crise humanitária no vizinho e também porque temem a possibilidade mais real do que nunca de fragmentação do Estado Sírio – o que deixaria os curdos em polvorosa e com chances reais de criação de seu país.

Curiosamente, a estratégia de isolamento sempre foi constante no discurso e nas práticas do próprio presidente Ahmadinejad. Direcionada a Israel, as táticas eram compartilhadas com os turcos e atingiram seu ponto alto com o episódio da “Frota da Liberdade”, no final de maio do ano passado. O problema para os iranianos é que, por conta da divulgação do relatório da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o mundo voltou olhos e esforços para a iminente produção de armamento nuclear pela República Islâmica. E os iranianos reagem mal, muito mal, às pressões internacionais.

A tomada da embaixada britânica é uma retaliação. O problema para o Irã é que este tipo de operação serve apenas para deixar seus aliados ainda mais constrangidos. China e Rússia, por exemplo, se uniram ao uníssono coro internacional de condenação – o que é muito raro, diga-se de passagem. No entanto, as autoridades de Teerã parecem estar mais preocupadas no momento em conseguir uma espécie de união nacional. Isso é muito ruim porque dá a impressão de que o país se prepara para eventos externos graves e também porque distancia ainda mais os iranianos da comunidade internacional, deixando o caminho aberto para a eleição de um previsível governo ainda mais radical e nacionalista do que o representado pelo presidente Ahmadinejad.