quarta-feira, 30 de junho de 2010

Mais informações interessantes sobre o caso de espionagem

Ainda não se sabe exatamente a solução deste dilema: a espionagem é parte da cultura governamental russa ou o país de fato precisa de dados colhidos secretamente para manter seu poder? Poder este que, aliás, lembra muito pouco o período soviético. Curiosamente, a resposta do Kremlin para as prisões efetuadas pelo FBI soa um tanto enigmática.

"Não entendemos as razões que levaram o Departamento de Justiça (dos EUA) a fazer uma declaração pública (sobre o caso) no espírito das histórias de espionagem dos tempos da Guerra Fria".

São palavras de condenação ou autocrítica? Não fica claro de maneira nenhuma, mas soa como uma tentativa de imputar aos Estados Unidos a culpa pela descoberta da história.

Enquanto Rússia e EUA fazem o possível para minimizar os danos às relações bilaterais, especula-se sobre o envolvimento direto do presidente Dmitry Medvedev (na foto, ao lado de Putin). Não somente neste caso em particular, mas em seu reconhecido empenho para ter acesso privilegiado às informações de importantes ciclos políticos e empresariais americanos.

E aí é preciso mencionar outro ponto interessante. A denúncia sobre o uso da missão russa na ONU como base de espionagem. Se isso de fato ficar comprovado, acho que as Nações Unidas precisarão tomar alguma atitude formal. Afinal, o propósito das delegações baseadas em Nova Iorque não deveria ser transformar seus membros em funcionários de um posto avançado de espionagem. Na teoria, claro.

Sobre o questionamento quanto às despesas envolvidas na operação, a resposta é simples. Os acusados estavam tão envolvidos no cotidiano que boa parte deles já se mantinha pelos próprios meios. Dois casos interessantes: Cynthia Maurphy usufruía de rendimentos anuais de 135 mil dólares trabalhando no ramo financeiro; Anna Chapman era proprietária de empresa do setor imobiliário em Manhattan cujo valor estimado é de 2 milhões de dólares.

Como até agora a trama se sobressai aos resultados – ainda não foram encontradas evidências de que a missão tenha obtido algum sucesso –, acho que pode haver uma reviravolta à vista. Não ficaria surpreendido se, em algum momento, os acusados admitirem ter deixado a espionagem de lado para se entregar de vez a viver o sonho americano.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Espionagem russa nos EUA: a matéria do ano

O dia de hoje pode entrar para a história como a data que marcou o início da resolução de um dos mais fantásticos casos de espionagem de todos os tempos. O FBI prendeu 11 pessoas acusadas de se "infiltrar na sociedade americana" para passar informações cruciais do governo dos EUA para a Rússia. O grupo receberia dinheiro através de um funcionário de Moscou nas Nações Unidas. Os detalhes do caso – dignos de um roteiro premiado – são tão espetaculares que é difícil acreditar que tudo não passa de uma grande armação.

Os acusados estão sendo chamados de "ilegais" pelos investigadores. O termo é usado no jargão da espionagem para se referir aos que não operam com cobertura diplomática. A situação foi exatamente esta. Segundo informações liberadas até agora, o grupo tinha uma missão de longo prazo. O objetivo era chegar às mais altas esferas políticas dos Estados Unidos e repassar dados para o Kremlin. Por isso, os suspeitos usufruíam de padrão de vida confortável, inclusive fazendo amigos nos cinematográficos e familiares subúrbios americanos.

Dos acusados, oito são casados e trabalhavam em áreas importantes, como Comunicações e Finanças. Um deles, Vicky Pelaez, era repórter do jornal peruano El Diário/La Prensa.

A reação oficial russa à divulgação do processo foi negativa. Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores, disse não ter recebido qualquer explicação por parte de autoridades americanas.

A principal suspeita, até agora, recai sobre a SVR, uma das agências governamentais de Moscou que sucederam a poderosa KGB do período soviético. Levando-se em consideração que o primeiro-ministro, Vladimir Putin, é um de seus ex-oficiais, além de entusiasta, carente e nostálgico, nada soa improvável.

Sem a menor dúvida, o caso já é o mais espetacular do ano. Acho que, se comprovado, bate em ambição e investimento a operação supostamente realizada pelo Mossad – o serviço secreto israelense –, que, no início de 2010, teria sido responsável pelo assassinato de um dirigente do Hamas (Mahmoud al-Mabhouh) em Dubai.

Ainda é cedo para afirmar qualquer coisa sobre o imbróglio, mas já se pode dizer que este vai ser o grande assunto internacional do ano. Um contraponto interessante fica por conta de Nikolai Kovalev, ex-diretor do Serviço de Segurança Federal da Rússia.

Em entrevista ao Financial Times, ele acredita que todo o ocorrido seja obra de alguém que pretende envenenar o processo de reaproximação entre Moscou e Washington.

"Ilegais que lavam dinheiro, vivem com documentos falsos e obtém dinheiro em jarros enterrados (sim, este também é um dos detalhes da trama). Essas pessoas não podem ser funcionários de um órgão de inteligência russo. É totalmente ridículo. É como um romance barato de Agatha Christie", diz.

Pode ser. Mas o fato é que o caso muda completamente as intenções de relacionamento entre os dois países.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

G20: o mais importante ficou de fora

Se o G20 de fato valesse alguma coisa, seria correto dizer que o resultado do encontro poderia ser interpretado como uma derrota política americana. Os líderes reunidos no Canadá concordaram em estabelecer um cronograma para cortar pela metade os déficits governamentais e interromper o crescimento da dívida pública. Na teoria, isso poderia significar que os EUA não conseguiram impor sua posição.

Na prática, no entanto, as resoluções se resumem a meras expectativas acordadas pelos países. Não significa que, se até 2016 – ano final estabelecido para a redução da dívida pública – Washington não cumprir com o documento final alcançado no encontro deste fim de semana, haverá qualquer revisão da postura dos EUA, novo encontro, reprimenda internacional, nada disso.

Fica a mensagem de que, na batalha teórica entre americanos e europeus, os últimos saíram vencedores. A posição de Obama é muito compatível com o discurso apresentado durante sua campanha e até mesmo com os motivos pelos quais foi eleito. Seu governo argumentava que investir na economia poderia ser necessário para reduzir o desemprego. Já a Europa – liderada pela chanceler alemã, Angela Merkel – tem posição diferente: defende a aplicação de restrições e pacotes de austeridade. As medidas serviriam para dar um tempo na crise pela qual o continente atravessa e retomar a confiança nos mercados internos. Muito embora as expectativas do presidente americano também tenham sido mencionadas no texto final do G20, ficou claro que isso só aconteceu para não desagradar totalmente a Casa Branca.

De qualquer maneira, todo o empenho financeiro e logístico canadense para a realização dos fóruns (G8 e G20) valeu muito pouco. Simplesmente porque ninguém tem coragem de debater o que de fato é realmente importante: leis capazes de regular o grande mercado internacional – os jogadores invisíveis que buscam lucro a qualquer custo e trocam o destino de seus grandes aportes financeiros virtuais de tempos em tempos. Esses continuam a operar livremente, e o estabelecimento de regulamentação interna não impedirá suas ações.

E a pergunta que decorre desta afirmação é simples: por que os países emergentes não questionam este sistema? Porque, por ora, eles apresentam crescimento econômico e não se importam com a manutenção deste status quo. A posição do portal Daily Beast é categórica e explica como isso acontece na prática.

"Países que se seguraram (no fornecimento) do básico – agricultura, material cru e bens primários – representam atualmente as economias que mais crescem (Brasil, Turquia, Índia, Coreia do Sul) e as mais estáveis (Canadá, Austrália). Como resultado, a edição deste G20 testemunha algo novo: uma sutil, mas inequívoca mudança de poder na qual as nações que criam coisas, minam coisas e fazem coisas podem se afirmar de maneira singular".

Concordo com isso. Mas tenho certeza de que este é um momento único na história. Quando os mercados desenvolvidos se recuperarem plenamente – isso vai acontecer alguma hora –, os emergentes podem ficar para trás e possivelmente irão se lamentar por não terem exigido a revisão dos mecanismos do jogo de poder econômico internacional. E aí talvez seja tarde demais.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Encontro do G20 repete jogo de cartas marcadas

Ainda não bateu por aqui, mas nos próximos dois dias os líderes dos 20 países mais industrializados do mundo se reúnem no Canadá. Como símbolo da desigualdade, o G20 representa 85% da economia global. Curiosamente, o grupo que foi criado como expansão do G8 não deve conseguir atingir nenhuma decisão prática importante.

Aliás, cabe lembrar que, apesar da existência do G20, o G8 não foi desfeito. A reunião do seleto grupo – a seleção da seleção – também acontece no Canadá. A diferença é que ocorre em Muskoska, enquanto o G20, em Toronto. As críticas ao patrocínio governamental canadense aos encontros já são muitas. Em primeiro lugar, antes de qualquer divergência teórica, o primeiro-ministro Stephen Harper destinou 1 bilhão de dólares para cuidar da segurança, informa o Huffington Post. O político também pagou 2 milhões de dólares para a construção de um lago artificial no centro de imprensa (foto).

Além do aparato circense, é preciso recordar a primeira reunião envolvendo os chefes de Estado do grupo, há um ano e meio. Na ocasião, a ideia era debater a crise financeira que se abateu principalmente sobre EUA e Europa. Sem meias palavras, o objetivo era bem direto, como sempre, em casos deste tipo: contar com o apoio dos países emergentes para encontrar alternativas que resolvessem o problema originado nas economias desenvolvidas. Longe de qualquer discurso democrata, a intenção era basicamente esta. E agora não é diferente.

A diferença, no entanto, é que os europeus participam dos encontros mais acanhados do que nunca. O déficit enfrentado pelos países da zona do euro é um dos principais temas a serem discutidos. Quem paga o pato, para variar, são os cidadãos. O Estado quer cortar gastos e as soluções são as de sempre: demissões, redução de salários, aumento da idade mínima de aposentadoria. Desde quando isso é novidade suficiente para justificar o empenho destinado à realização de encontros como G8 e G20?

"Nas mentes do velho mundo representado pelo G8 havia a esperança de que, ao expandir o grupo, esses países poderiam espalhar o ônus de encontrar uma solução para o desastre financeiro que se abateu sobre eles. Da mesma maneira que lidou com a mudança climática, a velha geração exigia que a nova pagasse por seus pecados", escreve Adrian Hamilton, do britânico Independent.

Obviamente, os Estados em desenvolvimento, como o Brasil, sabem disso. O interesse de Lula em participar do encontro é distinto. Já que está claro que as velhas fórmulas não serão alteradas, a ideia é aproveitar este fórum para reafirmar a agenda política brasileira, sua força internacional e a urgência do Itamaraty para a reforma das arenas de discussão multilaterais. Os países em desenvolvimento vão se comportar da mesma maneira. A viagem vai valer também uma bela foto dos líderes mundiais reunidos.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Líbano e Irã jogam bomba no colo de Israel

O caminho para a guerra está aberto no Oriente Médio. Nos próximos dias, ela será lentamente preparada nas bases atuais do conflito: com muita propaganda e estratégias de relações públicas. De fato, Irã e Líbano estão empenhados em repetir os vitoriosos métodos empreendidos pela Turquia há pouco mais de 20 dias. Ambos os países preparam seus próprios barcos de ajuda humanitária para tentar furar o bloqueio a Gaza.

A situação é um tanto embaraçosa a Israel. Na prática, representa uma bomba-relógio prestes a explodir e cujas consequências não serão nada favoráveis às autoridades israelenses. Como dito acima, o intervalo entre o episódio envolvendo as embarcações turcas e a chegada de mais navios à região aparentemente não serviu para que o governo Netanyahu encontrasse soluções criativas de forma a contornar situações deste tipo sem passar por constrangimentos internacionais.

Existe, no entanto, grande diferença entre a Frota da Liberdade e os barcos iraniano e libanês. Israel não mantém qualquer relação diplomática com Irã e Líbano. Pelo contrário. Os países não reconhecem a existência do Estado Judeu.

"Mariam", a embarcação libanesa, deve partir rumo a Gaza nos próximos dias. "Crianças de Gaza", como o governo de Teerã decidiu chamar o barco, deixa o Irã no próximo domingo. A previsão é que alcance águas israelenses em duas semanas. Não sei qual a estratégia vem sendo pensada, mas o auge da ação de marketing iraniana deve se concretizar por volta do dia 9 de julho, dois dias antes da final da Copa do Mundo. Para chamar mais atenção, os organizadores provavelmente vão optar por evitar que a chegada aconteça no mesmo dia da partida decisiva.

A escalada de tensão não encontra precedentes recentes. Afinal, Jerusalém pode encarar a presença das duas embarcações como um ato de provocação protagonizado por dois países inimigos. E é tudo o que Líbano e Irã mais querem. Pelo rumo que os discursos e atitudes vêm tomando, é possível que um novo confronto aconteça. Segundo os jornais israelenses, oficiais de segurança que preferiram não se identificar dizem estar profundamente preocupados. As fontes também informam que os comandos navais estão preparados para a possibilidade de se deparar com um homem-bomba a bordo de alguma das embarcações.

Para quem quiser ver, os gestos apontam um enfrentamento mais direto, particularmente entre Irã e Israel. Ahmadinejad patrocina a própria frota humanitária para testar a reação israelense e, se possível, aumentar as críticas ao país. Já Israel anunciou o lançamento de um novo satélite no espaço. O equipamento é capaz de identificar imagens a partir de 70 centímetros e seguramente vai servir aos propósitos de vigiar as instalações iranianas.

A maneira como Israel irá interceptar este primeiro navio libanês é fundamental para descobrir se Jerusalém encontrou uma forma de lidar com as bombas de propaganda lançadas pelos seus inimigos. De qualquer maneira, ambos os casos são muito confortáveis para Irã e Líbano. Os dois não têm absolutamente nada a perder. A bomba estará nas mãos israelenses nos próximos dias.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Irã: por que o Brasil caiu fora

A situação se agrava entre os aliados do Brasil no Oriente Médio. A Turquia se afunda cada vez mais no confronto com os curdos, enfrentamento que retornou com força desde a última semana. Em relação ao Irã, as perspectivas não são muito melhores. Mesmo com a aplicação de sanções mais fortes de UE e EUA, o regime de Ahmadinejad não dá mostras de que pretende recuar - algo que já havia comentado por aqui. Ou seja, os atores se movimentam para impedir o desenvolvimento atômico iraniano por meios alternativos.

Como informa um ex-espião da CIA (Reza Kahliliis, pseudônimo do autor de "A Time to Betray", livro que conta suas experiências como agente duplo na Guarda Revolucionária Iraniana), a movimentação militar das potências já está em curso. Segundo ele, na última sexta-feira mais de 12 navios de guerra americanos e israelenses teriam atravessado o Canal de Suez, contando com proteção egípcia. O destino da armada seria o Golfo Pérsico. Além disso, os EUA teriam conduzido exercícios militares com França e Grã-Bretanha, enquanto a Alemanha estaria enviando embarcações militares.

E aí entra mais uma explicação para o recolhimento estratégico brasileiro. O Itamaraty possivelmente tem conhecimento sobre esta movimentação. Com a temperatura em franca ascensão, o Brasil achou por bem deixar o palco de atuação por dois motivos específicos: em primeiro lugar, o país já se fez ouvir através de gestos diplomáticos - os ganhos políticos internacionais, inclusive, foram bem maiores do que os alcançados por qualquer outro governo brasileiro; como tem reforçado a já histórica preferência pelo diálogo, não faria sentido permanecer numa zona de conflito militar, uma vez que não haveria muito a ganhar com isso. Afinal, nem o país pretende partir para a defesa cega dos interesses iranianos a ponto de se contrapor de tal forma às potências ocidentais, nem dispõe de meios para tal.

Neste aspecto, vale o pragmatismo ressaltado por Celso Amorim: o governo brasileiro fez o possível para evitar novas sanções ao Irã. Mas elas vieram e não há muito a ser feito, além de marcar a posição de discreto protesto. A partir do momento em que os atores com reais poderes de inibição militar entram em cena, o Brasil correria riscos demais ao se apresentar como o mais fiel parceiro dos empreendimentos de Teerã.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O Irã e as eleições brasileiras

Em tempos de Copa do Mundo, o Brasil anunciou à imprensa internacional uma decisão importantíssima de sua política externa: o país não pretende mais atuar como mediador da questão iraniana, a não ser que seja solicitado. A declaração feita pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, ao jornal britânico Financial Times pegou todo mundo de surpresa. Esta é uma mudança fundamental de um dos mais controversos pilares internacionais brasileiros.
Não foi ocasional a escolha da data para o anúncio: exatamente no dia da partida entre Brasil e Costa do Marfim, quando as atenções estavam todas destinadas ao jogo. O Brasil entrou com entusiasmo nas disputas políticas do Oriente Médio. Optou sair com um tanto de discrição. De forma a evitar mais comentários, Amorim concedeu nova entrevista, pouco depois do abandono da defesa iraniana. O ministro disse ainda acreditar no acordo forjado por brasileiros e turcos para solucionar o impasse sobre o programa nuclear.

Fica claro que, se não abandonou de vez a defesa das pretensões de Mahmoud Ahmadinejad, Brasília busca uma espécie de distanciamento estratégico. E isso faz sentido. Bem ou mal, o Brasil já se expôs bastante por conta deste imbróglio. E, se não alcançou o objetivo internacional de ser um dos principais atores envolvidos, conseguiu mudar o status do país. Hoje, reconhecidamente é um líder regional incontestável. A simbiose com Teerã reforçou essa imagem. Curiosamente, no dia seguinte, a república islâmica proibiu a entrada em seu território de dois inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). O desgaste tem sido inevitável. Itamaraty preferiu dar um tempo na relação.

E este tempo tem muito a ver com as eleições presidenciais brasileiras. Afinal, o PT tem feito o possível para amenizar as críticas à Dilma Rousseff. Uma das mais frequentes é sobre seu posicionamento nos tempos da militância. Não tenho dúvidas de que a oposição vai fazer de tudo para atrelar seu passado militante ao rótulo de radicalismo. Embora sejam situações absolutamente distintas, a equipe de marketing de José Serra vai jogar tudo num saco só. O apoio de Lula a Ahmadinejad vai entrar nesse bolo cujo alvo será Dilma.

Como tenho repetido, esta será a primeira disputa eleitoral em que as opções internacionais brasileiras serão um ponto nevrálgico durante a campanha. E isso porque polarizar questões como Irã, Democracia, Cuba e Venezuela atendem bem mais ao PSDB do que ao PT. Afinal, se Lula tem números positivos para apresentar, as questões acima representam simplesmente um debate teórico e com enorme apelo político. Não há dados para comprovar eficácias e competências. Há um grande campo aberto para defender ou atacar este ou aquele lado. E é aí que Serra acredita ser capaz de ganhar uns bons votos. Afinal, como ele não tomou qualquer atitude, vai ficar fácil demais argumentar que a política externa brasileira se aliou a ditadores e radicais, certo?

A decisão brasileira de recuar em relação ao Irã passa por tudo isso. E também por um dado curioso divulgado pelo Pew Research Center. Pesquisa realizada pelo instituto mostra que 65% dos brasileiros apoiam a aplicação de sanções ao Irã. Ou seja, esta talvez seja uma das poucas áreas em que o governo não usufruiria de ampla aprovação. Serra vai explorar a questão o máximo que puder.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Esquizofrenia internacional

Será que a notícia de que o exército turco matou 120 rebeldes curdos no norte do Iraque nesta sexta-feira muda as posições dos países da região? Não creio. Até porque o novo status da Turquia parece consolidado pelos vizinhos. A aliança xiita já atingiu seu objetivo político maior ao reduzir significativamente os laços entre Ancara e Jerusalém. Agora, basta colher os benefícios de contar com a aliada de maior peso neste novo grupo de atuação geopolítica.

A situação dos curdos é muito parecida à dos uzbeques no Quirguistão. A morte de dois mil deles não comove tanto quanto a dos ativistas da frota humanitária. A morte de 120 rebeldes curdos segue a mesma "lógica". O raciocínio também é válido para os cerca de 300 mil mortos no Sudão. A solidariedade internacional é bastante seletiva.
O colunista Philip Stephens, do Financial Times, é pragmático em relação à Turquia. Cabe ao ocidente entender o novo papel exercido pelo país e destinar um novo tratamento a seu primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, argumenta. Se Ancara buscou uma aliança com o Oriente, é preciso legitimar esta liderança.
Este é um argumento parcialmente válido. Porque dá a entender que se trata de um fato consumado, como se a Turquia pudesse fazer o que bem entendesse.
Na prática, a mensagem é muito simples: quando a Turquia oprime os curdos, este é um problema interno da política turca - mesmo que a ofensiva militar tenha ocorrido no norte do Iraque. Quando Israel aborda navios que tentavam furar o bloqueio a Gaza, este é um problema da comunidade internacional. Dá para entender a diferença?
Não tento justificar nenhuma das ações. Mas acho que são exemplos claros da aplicação de padrões distintos. O fato de ambos serem acontecimentos recentes, relevantes e ocorridos na mesma região só dá contornos ainda mais evidentes à linha de raciocínio que tento seguir.
Acho que é chegado o momento de pensar sobre esses paradigmas esquizofrênicos que têm conduzido as relações internacionais e a formação da opinião pública mundial. Até porque, como escrevi ontem, contar ou não com o apoio popular tem se mostrado um fator determinante para estabelecer vitoriosos e derrotados nos conflitos recentes.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Nova crise no Quirguistão ressalta comportamento ambíguo da comunidade internacional

Já há quase 200 mortos nos enfrentamentos étnicos no Quirguistão. A ONU calcula em 400 mil os deslocados pelos conflitos. A situação atual do país é consequência da crise política de abril passado, que culminou com o exílio do ex-presidente Kurmanbek Bakyiev. Interessante notar que nada disso serviu para sensibilizar a comunidade internacional. Uma semana após o início dos confrontos, somente agora as Nações Unidas mostram alguma disponibilidade para enviar ajuda humanitária.

O fato ressalta algumas ambiguidades. Há duas semanas existia um clamor popular por conta dos eventos em torno da frota que tentou furar o bloqueio israelense a Gaza. Agora, silêncio. A Rússia, por exemplo, tem mostrado relutância em agir. Esta é a mesma Rússia empenhada em ser atuante no processo de paz no Oriente Médio. Onde os dirigentes de Moscou estão agora, quando um país vizinho é palco de confrontos étnicos?

A comparação entre as duas situações serve como lição sobre o comportamento dos Estados. Talvez isso cause alguma confusão na opinião pública mundial. Estados são entes impessoais e meramente dispostos a agir em nome de seus interesses. Ou seja, a Turquia tem intenções próprias no Oriente Médio. Daí o apoio à frota humanitária. Mas ela não demonstra qualquer interesse em dialogar com a Ásia Central neste momento. Assim, Ancara não se mobiliza para lamentar os quase 200 quirguizes de etnia uzbeque mortos na última semana.

E este não é o caso apenas da Turquia. Nem mesmo simplesmente dos países. Onde estão as massas obstinadas enviando vídeos, fazendo passeatas e protestos diante das embaixadas ocidentais para que os países tomem alguma atitude capaz de interromper a violência no Quirguistão?
Neste caso, aos poucos se consolida a versão de que os ataques à minoria uzbeque (que corresponde a algo em torno de 15% a 25% da população do Quirguistão) ocorreram como gesto político orquestrado pelo deposto presidente Bankyiev para desestabilizar o atual governo e retornar ao país. A minoria uzbeque é alvo de ressentimento por parte da maioria quirguiz porque conseguiu obter mais desenvolvimento econômico.
Como no caso da frota de ajuda humanitária, a ideia era criar um fato e conseguir mudar a realidade política estabelecida. A diferença, no entanto, é que, até o momento, somente o episódio envolvendo as embarcações parece ter causado comoção. No entanto, fica a certeza da reinvenção de um tipo de fenômeno: o uso das massas para alcançar objetivos políticos. Em comum a esses dois acontecimentos recentes e distintos, a busca por modificar cenários internacionais através de atores pouco tradicionais: pessoas ideologicamente empenhadas, mas que não representam necessariamente um Estado nacional.
Cabe também uma questão em torno disso tudo: quem é manipulado pelo quê? Ou seja, a Turquia manipulou os ativistas para atingir seus objetivos de protagonsimo regional ou foram os ativistas que usaram os interesses turcos de forma a mudar a realidade no Oriente Médio? Foi Kurmanbek Bakyiev, o presidente deposto no Quirguistão, que usou sua influência no sul do país para mobilizar seus aliados quirguizes? Ou foi a população quirguiz que percebeu uma oportunidade de se revoltar contra o sucesso econômico da minoria uzbeque?
De qualquer maneira, parece que esta vai ser uma nova modalidade de atuação internacional. A crise para resolver este grande dilema vai ter que ser solucionada, como sempre, pelos Estados nacionais. Mas a opinião pública vai ter ainda mais importância nesses processos. No caso da frota, ela comprou em peso a questão. No caso do Quirguistão, ela parece não estar nem aí. Por que esta ou aquela crise humanitária provoca maior ou menor apoio, ninguém até o momento conseguiu encontrar argumentos racionais para explicar.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Riquezas do Afeganistão - parte 2

Algumas cifras curiosas e importantes: a British Petroleum aceitou criar um fundo indenizatório de 20 bilhões de dólares para os afetados pelo vazamento no Golfo do México. No ano passado, o governo Obama liberou 11 bilhões de dólares para o desenvolvimento de pesquisas de novas fontes de energia. Parando para pensar um pouco nos últimos acontecimentos, nenhum desses valores se aproxima das grandes possibilidade oferecidas pelo Afeganistão.

Tudo parece confluir para montar este quebra-cabeça. Os Estados Unidos já buscavam se livrar da dependência do petróleo. Este é um fator que amarra o país política e economicamente. Imaginem os benefícios para os americanos que uma redução significativa do poder de barganha da Opep (cartel formado pelos países exportadores de petróleo) poderia trazer? Mas apenas isso não resolveria o problema. Seria preciso encontrar uma nova maneira de liderar este novo mundo. Coincidência ou não, a resposta pode estar no Afeganistão, após o anúncio das descobertas minerais do país.

O maior desastre ambiental do planeta precipitou todo este processo. Agora, a tendência é que os fatos comecem a se suceder num efeito cascata. Não foi à toa que Barack Obama foi a público e fez um apelo nacional.

"Não podemos reservar este futuro a nossas crianças. A tragédia que se revela em nossa costa é a lembrança mais dolorosa e poderosa de que o tempo de abraçar a energia limpa é agora", disse.

Obviamente, o presidente americano não contava com este derramamento de petróleo. Mas a tragédia pode ter servido para articular uma tentativa de reversão de crise que ao mesmo tempo reafirma os ideais de campanha um tanto esquecidos pelos eleitores. Ao adotar o discurso da energia limpa, Obama investe no imaginário poderoso e positivo de mudança, respeito ao meio ambiente e, finalmente, revisão dos paradigmas econômicos - ecologicamente incorretos, diga-se de passagem - sobre os quais o mundo inteiro se baseia.

Mas nem tudo deve ser fácil para os EUA. Se a Casa Branca pretende contar com a parceria afegã, será preciso convencer o presidente Hamid Karzai. E isso pode ser feito a partir da lembrança de que foi Washington quem o manteve no poder, mesmo depois de ficar evidente que as eleições no Afeganistão foram fraudadas.

A atuação de Karzai não deve mudar muito em relação à atual. Como o país não possui tecnologia e dinheiro para desenvolver as minas de extração dos recursos, o governo central deve ratear os direitos exploratórios. E esta é a visão do paraíso para as autoridades do país. Um grande leilão sem limite de valor diante de potências sedentas e dispostas a liberar quantias altíssimas. Vale citar que, somente para a mina de cobre ao sul de Cabul, a China desembolsou nada menos do que 400 mil dólares. E essa quantia deverá ser depositada todos os anos enquanto a exploração persistir.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Riquezas do Afeganistão

No meio de toda a confusão de Turquia, frota de Gaza, Copa do Mundo etc, é bem capaz de uma notícia muito importante merecer pouca atenção: os Estados Unidos anunciaram a descoberta de cerca de 1 trilhão de dólares em depósitos minerais no Afeganistão. Assim como a tentativa de furar o bloqueio israelense ao território controlado pelo Hamas, este é um daqueles eventos capazes de mudar a balança de poder internacional. No caso, pode afetar toda a Ásia Central, o interesse na guerra do Afeganistão, as políticas interna e externa americana e o apoio à invasão ordenada por George W. Bush.

Um dos minerais mais importantes encontrados em território afegão é o lítio. Escrevi sobre o assunto em texto publicado aqui mesmo em dezembro do ano passado. A Bolívia é o país com a maior reserva do elemento. Se você não ouviu falar nele, com certeza isso vai mudar. Além de servir para a confecção de baterias de notebook e Blackberrys, o lítio será usado em baterias para os veículos elétricos que serão produzidos para gradualmente substituir os automóveis movidos a gasolina. Ou seja, o recurso é um dos pilares da nova economia mundial.

No caso da Bolívia, existe grande dificuldade para estabelecer formas de explorar o enorme potencial do lítio. O país não tem dinheiro para construir as minas. No Afeganistão, certamente esta questão será facilmente contornada, como se pode imaginar. A presença americana vai cuidar deste pequeno "problema". E sem a menor dúvida haverá grande lobby para que as tropas dos EUA permaneçam em solo afegão por mais tempo. Vale citar que a Rockwood, de Nova Jersey, é a empresa líder no planeta na produção de bens a partir do elemento. Ela não irá se ressentir se conseguir através do governo matéria prima em abundância para seus negócios.

Não é de hoje que os recursos afegãos causam polêmica. No ano passado, o ministro das Minas do país foi acusado por oficiais americanos de ter aceitado suborno de 30 milhões de dólares para permitir que a China desenvolvesse a exploração de cobre.

Se a descoberta atual pode trazer progresso, pode também causar ainda mais ambição por parte do Talibã. O grupo precisa de dinheiro e já controla a indústria do ópio. Não haveria razões para acreditar que os radicais abririam mão de um negócio que muito possivelmente será ainda mais lucrativo. A situação pode despertar cobiça também do corrupto presidente Hamid Karzai. Mas esse os americanos devem controlar com mais facilidade, uma vez que foi Washington quem o bancou durante as últimas e controversas eleições.

Para os Estados Unidos, a situação vai ser interessante. Se os recursos minerais podem ajudar a pagar as altas contas da Guerra do Afeganistão, as tropas precisarão de ainda mais investimento para combater talibãs muito motivados por ideologia, poder e dinheiro. Este será mais um desafio para Barack Obama. Mas, possivelmente, a questão vai cair no colo do sucessor do atual presidente. O que se pode ter certeza agora é que a descoberta anunciada pelos EUA pode alterar o interesse mundial na Ásia Central. Até porque vizinhos importantes – Rússia, China e Irã, por exemplo – não irão ficar resignados na posição de meros espectadores diante desta nova riqueza.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Novas vidraças no Oriente Médio

Um ponto interessante nesta ascensão de Irã e Turquia é a percepção de países vizinhos cujas posições não são necessariamente as mesmas das duas postulantes a potências regionais. Michael Young, jornalista do Daily Star, do Líbano, levantou questionamentos que considero válidos sobre este momento de transição do Oriente Médio.

"A agenda política é cada vez mais estabelecida por Estados não-árabes (Turquia e Irã). Os países árabes (...) se mostram incapazes de oferecer desenvolvimento sustentável e educação, deixando-os com pouca capacidade de se dedicar a preocupações regionais importantes", escreve.

Curiosamente, o texto foi publicado com grande destaque no The National, principal jornal dos Emirados Árabes Unidos. O país é de maioria sunita e está muito interessado em frear as ambições iranianas e turcas – a Turquia, de maioria sunita, está aliada momentaneamente ao eixo xiita como forma de marcar posição internacional. Assim que se afirmar como potência, muito possivelmente irá se desvincular da aliança.

Os questionamentos lançados por Michael Young atendem às pretensões estratégicas dos Emirados Árabes Unidos. Por isso, quando o jornalista recorda os países árabes de que Estados não-árabes têm firmado as diretrizes regionais, de certa maneira convoca as demais nações a mudar o foco. Ou seja, relembra um pan-arabismo esquecido nos anos 1970. É claro que os EAU não têm intenção de se firmar como os líderes de um novo movimento do gênero, mas, sem dúvida, estão dispostos a usar quaisquer argumentos capazes de impedir instabilidades além das já conhecidas (a influência iraniana, por exemplo, é ruim para os negócios).

O caso turco também é curioso. Quando Ancara se lança como defensora dos direitos humanitários palestinos, levanta a ira de armênios e curdos, cujas disputas com o Estado turco estão longe de encerradas. É esta a posição de Raffi K. Hovannisian, em coluna publicada no Washington Times. Para ele, o primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, e o ministro das Relações Exteriores, Ahmet Davutoglu, apresentam-se como representantes de uma desgastada busca por hegemonia.

"Somente desta vez, esses negadores do genocídio (armênio) portam os conceitos de liberdade, direitos humanos e lei internacional de forma a atingir as profundezas de seus objetivos", escreve.

Esta é uma das contrapartidas de se abandonar a inércia em nome da busca por um protagonismo atuante de atitudes polêmicas. Algumas vozes dissonantes começam a se manifestar, lutando para transformar as atuais pedras em vidraças.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Aprovação de sanções não convence opinião pública mundial

Num primeiro momento, parece que as intenções americanas ao conduzir o processo de aplicação de novas sanções ao Irã foram mal-sucedidas. Menos de 24 horas após a votação no Conselho de Segurança da ONU, editoriais dos mais importantes jornais do mundo chegaram à conclusão óbvia de que as medidas não impedirão Ahmadinejad de prosseguir com seu programa nuclear. E, não tenham dúvidas, esta reflexão não atende aos anseios nem de Washington, nem de Teerã.

Barack Obama tentava consertar sua fracassada política externa. A montanha-russa internacional conduzida pelo porta-voz da mudança possui mais baixos do que altos. Houve o período seguinte à posse, no começo de 2009, quando fez discursos em Egito e Turquia clamando pela aproximação entre ocidente e o mundo islâmico. Mas muito pouco mudou; o novo governo não conseguiu bom desempenho na condução do processo de paz, por exemplo, e muito menos na tentativa de diálogo com os iranianos. E aí a Casa Branca passou a optar por investir nas pessoas; acreditava que ao apoiar o empreendedorismo no Oriente Médio poderia mudar a imagem americana na região. Não adiantou. Agora, retornou ao modelo anterior, quando se viu ameaçada de perder o controle da situação a partir da emergência de novos atores, como Brasil e Turquia.
O problema, agora, é que o tiro pode ter saído pela culatra. Quando o pacote de sanções virou motivo de piada, ficou claro que o governo dos EUA não sabe bem o que fazer. E aí Brasil e Turquia podem ter marcado posição de forma positiva. Muito embora por motivos distintos, ao se oporem às punições propostas por Washington, os dois países acabam, por consequência, distanciando-se da imagem de ineficácia chancelada pelo Conselho de Segurança. E isso pode contribuir para a retórica brasileira que defende a reforma do CS.

A situação atual, aprovada pelas Nações Unidas, representa grande equívoco – para dizer o mínimo –, sob o ponto de vista daqueles que rejeitam a ideia de um Irã atômico: a comunidade internacional aparenta ter tomado alguma atitude séria para frear as ambições de Ahmadinejad, mas, na prática, as sanções não vão mudar nada. O presidente iraniano ficou muito satisfeito com o resultado da votação desta quarta-feira, não tenham dúvidas. Mas ele certamente vai mudar de opinião ao se dar conta de que a opinião pública internacional não embarcou neste teatro. Até porque, talvez haja alguma pressão para os EUA mudarem de atitude e buscarem sanções que de fato ameacem a estabilidade do governo de Teerã.
É preciso também derrubar outro mito nesta arena de informações desencontradas: a oposição interna iraniana, liderada por Mir Hossein Mousavi, também rejeita sanções e acredita que a continuidade do processo de enriquecimento de urânio é um direito nacional.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Comunidade internacional admite incompetência para lidar com programa nuclear iraniano

Ao contrário do que possa parecer num primeiro momento, o Conselho de Segurança da ONU deu um grande passo favorável a legitimar junto à opinião pública o governo de Mahmoud Ahmadinejad. Ao aprovar novo pacote de sanções contra o Irã, as potências ocidentais prestaram um favor político para o presidente iraniano. Em primeiro lugar, esta é a quarta rodada de punições à república islâmica. Nenhuma das três anteriores foi capaz de impedir o desenvolvimento do programa nuclear de Teerã. E seguramente as novas sanções vão continuar a serem ineficazes.

Somos todos testemunhas de um grande jogo de enganação internacional. O Irã continua a progredir rumo à bomba atômica. E o mundo finge tomar medidas para frear as intenções do regime Khamenei-Ahmadinejad. O sinal mais óbvio disso é a resolução desta quarta-feira ter contado com os votos de China e Rússia, países que mantêm lucrativos negócios com os iranianos. A explicação para a adesão dos dois é simples: as medidas punitivas excluem quaisquer restrições às indústrias de gás e petróleo do Irã. Ou seja, Moscou e Beijing dormirão tranquilas; os contratos de suas empresas com o regime islâmico não sofrerão nenhuma alteração. Vale citar também que a área energética responde por boa parte dos rendimentos econômicos de Teerã.
Ora, a pergunta óbvia que poderia ser feita neste caso é: "por que então adotar novas sanções?". Simplesmente porque, a partir do acordo alcançado por Brasil e Turquia, era preciso dar uma resposta prática internacional capaz de bater de frente com as ambições políticas demonstradas por Erdogan e Lula. Um assunto tão importante estrategicamente não poderia ser conduzido por dois países emergentes.
Na prática, as sanções desta quarta mudam pouco o cenário do ponto de vista de quem realmente quer impedir que o Irã desenvolva um programa nuclear. As punições econômicas serão contornadas por Ahmadinejad; os ganhos políticos do presidente iraniano serão muito mais significativos. Por exemplo, ele continuará a culpar o ocidente por seus problemas internos; irá transformar suas ambições atômicas num projeto nacional, calando a oposição; principalmente, a aprovação de sanções neste momento vai quebrar ao meio qualquer intenção de os opositores protestarem contra o regime, quase exatamente um ano depois das controversas eleições presidenciais realizadas em 12 de junho de 2008.
Como bem admite a BBC, as punições reafirmam que a comunidade internacional corrobora os ganhos nucleares alcançados pelo Irã até hoje, além de excluir a possibilidade de ataques militares contra as instalações da república islâmica por um bom tempo.
Steven E. Miller, diretor do Programa de Segurança Internacional da Universidade de Harvard, é taxativo quanto à incompetência representada pelo momento atual:
"Acho que acabamos optando por sanções porque não sabemos o que mais poderíamos fazer", diz. Não acredito que um assunto tão importante possa ser tratado com tamanho descuido estratégico.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Interesses muito particulares por trás do empenho de Erdogan

A política externa em diálogo com a interna. As ambições internacionais para alimentar pretensões nacionais. As interações entre as duas plataformas de expressão políticas não são novas, mas têm conseguido alcançar patamares interessantes nesta nova crise do Oriente Médio. Três de seus principais atores têm demonstrado exemplos claros desta simbiose - para quem sabe lidar com seu potencial. Mahmoud Ahmadinejad e Tayyip Erdogan são pontas-de-lança adesta estratégia; Benjamin Netanyahu está enrolado com ela. A situação enfrentada por Ancara talvez seja a mais complexa e explica o enorme empenho da maior autoridade nacional no episódio da frota humanitária.

No caso do primeiro-ministro turco, as intenções externas são claras, têm sido expostas sem muito disfarce na última semana. Graças ao patrocíncio velado à frota que tentou furar o bloqueio israelense a Gaza - apoio este que passou à política de Estado quando o próprio Erdogan manifestou o desejo de enviar navios da marinha nacional para escoltar futuras embarcações humanitárias -, o Estado turco transformou-se num mártir político da luta palestina com possibilidade e vontade de defender a causa nas altas esferas de negociação a que tem acesso. Esta sinopse dos acontecimentos dos últimos dias esconde um problema interno latente: enquanto surfa na onda da popularidade, Erdogan trava uma desgastante batalha com os militares de seu país.

O exército da Turquia tentou derrubar o governo em 2003. As revelações são recentes e vieram à tona graças a denúncias da imprensa do país. A ação ocorreria porque as forças armadas acreditam que o atual primeiro-ministro e seu partido de orientação islâmica são ameaças concretas ao caráter laico do Estado. Tradicionalmente, os militares se consideram guardiões ferozes dos ideais de Kemal Ataturk, o fundador da Turquia moderna, em 1923, para quem a religião jamais deveria interferir nos rumos do país. Com o apoio à frota e sua tentativa de furar o bloqueio a Gaza, Erdogan anula o apelo das alegações militares junto às massas. Não por acaso, as autoridades políticas em Ancara determinaram o fim da cooperação entre as forças armadas de Turquia e Israel.

"O confronto com Israel aumenta ainda a popularidade interna do governo e enfraquece a legitimidade dos adversários internos, nomeadamente os militares. Não é difícil imaginar o discurso que se prepara. O governo do AKP (partido de Erdogan) enfrenta Israel em nome dos direitos dos palestinos. Os militares ignoram a luta palestina em nome de uma aliança com os israelenses. Também não é difícil perceber quem terá mais apoio popular", escreve o analista João Marques de Almeida, do Instituto Português de Relações Internacionais.

Dá para entender agora esta enorme boa vontade do primeiro-ministro turco com a frota, certo? O medo de sofrer um golpe de Estado é tamanho que ele considera válido, inclusive, pôr a perder 61 anos de boas relações diplomáticas, econômicas e militares da Turquia com Israel.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Vitória da aliança xiita está garantida

Há novas embarcações internacionais a caminho de Gaza. A notícia mostra um passo prático da aliança xiita que se apresenta no Oriente Médio. O Crescente Vermelho Iraniano decidiu enviar dois barcos de ajuda ainda nesta semana. Segundo a AFP, o diretor da organização no Irã disse que a decisão reflete um desejo "da sociedade de seu país". Pode ser que a retroalimentação político-social na república islâmica esteja em curso, mas não tenho dúvidas de que se trata de um gesto predominantemente de ambições políticas e até militares. Até porque, o próprio diretor da organização iraniana admite que a decisão ocorreu após reunião com o ministro das Relações Exteriores, Manouchehr Mottaki.

A politização regional do bloqueio a Gaza não parou por aí. Na Turquia, o presidente da Síria, Bashar Assad, declarou estar pronto para acatar qualquer decisão tomada por Ancara para pressionar Israel. Damasco ameaçou, inclusive, adotar medidas práticas. A submissão de Assad às determinações turcas mostra que os líderes do Oriente Médio estão dispostos a tudo para atingir seus objetivos. É claro que o mantra humanitário continua a ser repetido. Isso agrada aos ouvidos ocidentais e permite ganhar tempo. Mas a meta é mesmo reequilibrar a balança de poder na região. E se os israelenses perderem bastante neste processo, ainda melhor - acreditam.

A estratégia marítima de agora representa uma tremenda "evolução" aos mísseis lançados pelo Hamas nas cidades do sul de Israel. Não me espantaria se centenas de barcos tentassem furar o bloqueio. Do ponto de vista de relações públicas, a tática é vitoriosa em alguns aspectos: ganha enorme cobertura de imprensa, e o regime de Ahmadinejad conquista humanidade e simpatia - inversamente proporcional a Israel, claro.

Qualquer resposta israelense é arriscada. Se prender ativistas, o governo irá continuar a sofrer com as críticas internacionais. Por outro lado, como permitir que iranianos enviados pela cúpula de Teerã desembarquem em Gaza? Se isso acontecer, Ahmadinejad, Bashar Assad e Tyyip Erdogan capitalizarão o acontecimento como grande vitória política, aplacando, inclusive, as vozes opositoras internas. A liderança deste grupo de países na região será quase um fato consumado. E as sanções contra o programa nuclear iraniano estarão cada vez mais distantes, é claro. A mudança de percepção sobre o Oriente Médio já está em curso. Os presidentes de China e Rússia, ambos com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, afirmaram que este não é o momento para acelerar a decisão de aplicar sanções a Teerã.

De qualquer maneira, o menor dos impactos impõe grande derrota a Israel. Jerusalém já pode contabilizar um gol contra. Afinal, sem a menor dúvida, a situação atual vai mudar. Não há qualquer chance de o bloqueio - agora contestado em todo o mundo - permanecer em mãos israelenses. Aliás, talvez este seja o melhor dos cenários, mas irá representar uma vitória para o Hamas e a aliança de países xiitas que estrategicamente o apoiam.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

A vitória de Irã, Turquia e aliados. E como fica o posicionamento do Brasil

A Turquia anuncia nesta sexta-feira que vai reduzir significativamente seus laços diplomáticos com Israel. Os Estados Unidos, por outro lado, declaram que a operação de abordagem à Frota da Liberdade foi legítima. Fica evidente que o episódio se tornou um polarizador importante no conflito árabe-israelense. Mais do que isso, a semana se encerra com a vitória da aliança xiita na nova guerra travada através da imprensa e da opinião pública.
Vale ressaltar que esta mudança de paradigma foi, provavelmente, a mais rápida em toda a história de enfrentamentos no Oriente Médio. Em menos de sete dias, o foco das expectativas e cobranças mudou completamente. As discussões sobre o programa nuclear iraniano se tornaram apêndices. O bloqueio israelense a Gaza - assunto esquecido há pelo menos três anos - substituiu as pretensões nucleares do Irã como o grande "impedimento à pacificação da região". Por si só, como escrevi anteriormente, a empreitada das embarcações já pode ser considerada um case de sucesso.
Essa grande mudança de paradigma não foi construída apenas graças à tentativa da flotilha de furar o bloqueio. Ela é simplesmente sua expressão midiática mais bem sucedida. Há exatamente uma semana, as nações aliadas de Turquia e Irã conseguiram uma considerável vitória política.
No meio desta confusão, é compreensível que pouca gente se lembre do que dizia o documento final aprovado na conferência de revisão do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP). O texto exige a adesão de Israel ao acordo e conclama o país a pôr fim a suas instalações nucleares. A ambiguidade fica por conta de o programa atômico iraniano sequer ter sido formalmente mencionado. O Irã é signatário do TNP, o que, teoricamente, impediria a república islâmica de desenvolver um programa nuclear militar.
Agora, com dois pontos importantes obtidos pela aliança xiita (Turquia, Irã, Síria, Hezbolah e Hamas) em sequência na arena internacional, resta saber como os demais países irão se comportar. Fica claro que o mundo terá de se posicionar. Este é um desafio também para a política externa brasileira, uma vez que o Itamaraty argumenta preferir o diálogo à confrontação. No caso do incidente envolvendo a Frota da Liberdade, Celso Amorim, Lula e Marco Aurélio Garcia condenaram Israel publicamente.
Ao fazer isso, o Brasil se alinha principalmente à Turquia. Resta saber o que isso poderá significar para as relações bilaterais com Israel - com quem o Mercosul possui um acordo de livre comércio - e Estados Unidos - que, apesar de terem condenado a ação num primeiro momento, mostram-se agora favoráveis a uma investigação liderada pelos próprios israelenses.
Se o Brasil subir o tom, certamente irá agradar à aliada Ancara. Mas Washington pode tomar como um segundo golpe recente desferido por Brasília - o acordo mediado por Brasil e Turquia com o Irã pode ser considerado o primeiro ponto de atrito profundo nas relações entre brasileiros e americanos.
Acredito que, após o grande impacto internacional dos acontecimentos desta semana, o Itamaraty vai preferir esperar o desenrolar dos fatos. Se Irã e Turquia optarem por bancar mais discussões nas Nações Unidas, o Brasil vai enfrentar um grande problema de identidade. Ao mesmo tempo em que o país pretende exercer maior protagonismo internacional, não admite romper com o Ocidente. Até porque, o livre trânsito entre atores tão antagônicos é um dos principais argumentos defendidos pela diplomacia brasileira de que Brasília pode exercer um papel mais relevante mundialmente. Se passar a adotar medidas opostas demais a Estados Unidos e seus aliados, correrá o risco de perder esse "passaporte" político.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

As novas velhas estratégias no Oriente Médio

Todo o processo em curso no Oriente Médio pode ser compreendido através dos próprios acontecimentos da história recente da região e, mais especificamente, do conflito árabe-israelense. A estratégia usada para acabar com o bloqueio israelense a Gaza não se trata de nenhuma novidade. Basta analisar como foram conduzidos outros episódios similares cujas resoluções terminaram por representar vitória árabes - ou melhor, ganhos políticos expressivos da aliança xiita sobre a qual já tratei algumas vezes.
O primeiro caso: em 1978, Israel invadiu o sul do Líbano para combater guerrilheiros da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) que usavam o território para atacar comunidades da região norte de Israel. Durante 22 anos, as forças israelenses ocuparam 1.200 Km2 do território libanês no que chamaram de "zona de segurança". Em maio de 2000, após grande clamor interno em Israel exigindo a retirada unilateral das tropas - por conta dos mais de mil soldados mortos em confrontos com o Hezbolah, milícia xiita criada para combater a presença israelense -, Jerusalém decide, finalmente, deixar a região.
Seis anos mais tarde, o Hezbolah ultrapassa a fronteira norte de Israel, sequestra dois militares e mata mais oito. O então primeiro-ministro, Ehud Olmert, decide contra-atacar. Entre 12 de julho e 14 de agosto, ocorre a Segunda Guerra do Líbano. O conflito resulta na morte de 1.200 libaneses e 120 israelenses. A milícia xiita surpreende pelo armamento apresentado e lança cerca de quatro mil mísseis contra o território israelense. Há uma grande condenação internacional de Israel, e o confronto termina após a aprovação da resolução 1.701 pelas Nações Unidas. A ONU envia 13 mil soldados de diversos países para patrulhar o sul do Líbano.
Israel declara ter alcançado a vitória. O Hezbolah faz o mesmo. Seja como for, a atuação da milícia faz com que ela se torne um ator importante no jogo político regional. Em maio deste ano, durante as comemorações pelos dez anos da retirada israelense, o xeque Hassan Nasrallah, líder do Hezbolah, declara que "a próxima guerra irá alterar todos os parâmetros do Oriente Médio". Israel acusa a Síria de ter fornecido mísseis Scud para a milícia. Nasrallah afirma possuir hoje dez vezes mais armamentos do que em 2006. Todas essas novidades aconteceram desde que a ONU estacionou suas tropas para impedir a violência mútua. A presença da força internacional, no entanto, tem servido apenas como garantia de que Israel não pode impedir a transferência de armas para o Hezbolah. Por isso, o grupo radical sequer contesta a atuação dos 13 mil soldados das Nações Unidas no território libanês.
Talvez não fosse necessário fazer um paralelo com a situação atual, mas não me custa nada. Israel passou a controlar Gaza e Cisjordânia a partir de 1967, quando emergiu vitorioso da Guerra dos Seis Dias. Durante 38 anos, o país ocupou Gaza - ainda ocupa a Cisjordânia -, inclusive mantendo no território colônias com população judia. Após grande embate político interno em Israel, o então primeiro-ministro Ariel Sharon decide, em 2005, encerrar unilateralmente a presença israelense no território. Os críticos acreditam que a medida permitiria que Gaza se transformasse numa base do grupo terrorista Hamas. Sharon banca a decisão assim mesmo.
Em 2006, o Hamas disputa as eleições legislativas palestinas. O grupo se consolida como maior vencedor do pleito. No ano seguinte, após uma guerra interna, os membros do Hamas expulsam de Gaza os militantes do Fatah, grupo que majoritariamente forma a Autoridade Palestina - instituição criada nos Acordos de Oslo, de 1993, para representar oficialmente os interesses nacionais palestinos. Simultaneamente, o Hamas passa a lançar mísseis de curto alcance contra Israel. A quantidade é estimada em dez mil ao longo de quase quatro anos. Egito e Israel impõem um bloqueio ao território para impedir a entrada de armamento. Entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009, israelenses e membros do Hamas travam nova guerra em Gaza por conta do lançamento de mísseis. Cerca de 1.400 palestinos morrem no conflito. Há uma nova condenação internacional à ofensiva de Israel. O Hamas alega ter vencido a guerra. Alguns países, inclusive o Brasil, acreditam que o grupo deve ser incluído na busca por uma solução para o conflito no Oriente Médio.
Agora, há novo clamor internacional contra a ação israelense em alto-mar. Da mesma maneira como ocorreu com o Hezbolah, no sul do Líbano, não tenha a menor dúvida de que, para o Hamas, o estabelecimento de uma força multinacional liderada pela ONU para controlar a entrada de bens e pessoas em Gaza seria uma excelente opção. No final das contas, os soldados estrangeiros não serão capazes de impedir a entrada de armamento no território. Para responder ao clamor popular mundial, a solução envolvendo as Nações Unidas parecerá a mais justa. Israel não poderá mais inspecionar o tráfego de bens e pessoas no território. Não por acaso, Hezbolah e Hamas estão do mesmo lado do atual jogo de poder no Oriente Médio. Melhor ainda do que no final da Segunda Guerra do Líbano, em 2006, o grupo conta atualmente com a Turquia, um importante aliado para representar os interesses da aliança xiita - a nova, emergente e poderosa força da região.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Frota da Liberdade: um golpe de mestre da Turquia

Aos poucos, mais informações relevantes têm sido publicadas sobre a empreitada do comboio que tentou furar o bloqueio a Gaza. Fica cada vez mais claro o objetivo geopolítico da iniciativa. A Turquia se tornou um dos principais atores envolvidos. A participação da elite política e econômica do país no episódio é tema da principal reportagem da edição desta quarta-feira do New York Times.

A classe comerciante religiosa é a maior doadora de recursos para o IHH, grupo à frente da chamada "Frota da Liberdade". Não por acaso, esse mesmo setor da sociedade turca forma a principal base de apoio popular que sustenta o partido do primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan. Ou seja, financiar o IHH é uma espécie de troca de favores interna que atende aos interesses de todo mundo. Para o grupo – cujos laços com o Hamas passaram a ser investigados –, representa o ápice de sua existência. Para Erdogan, ajuda a contemplar parte de seus objetivos políticos internacionais.

Nesta quarta-feira também, o Ministério das Relações Exteriores turco declarou que as relações diplomáticas com Israel poderiam ser retomadas se Jerusalém suspendesse o bloqueio a Gaza. Para completar, o Hamas disse que não se interessa em receber a ajuda humanitária enviada pelo comboio enquanto todos os ativistas presos não forem libertados. O que menos importa nisso tudo parece ser a carga de alimentos, remédios e combustíveis. Tudo passou a ser usado em nome da guerra de propaganda. Ao mesmo tempo, Israel se encontra numa situação política complicada. Após a operação de tomada dos navios, restam poucas opções diante da grande pressão internacional: se mantiver o bloqueio, continuará a sofrer condenação global. Se suspendê-lo – o que, particularmente, não acredito que irá ocorrer –, terá confirmado a eficácia do comboio, abrindo o precedente para novas ações do gênero.

Um novo dilema se apresenta, diante da possibilidade de que em algum momento fique claro o envolvimento do Estado turco no episódio. Israel responderia diretamente à Turquia? Seria uma resposta militar ou um pedido de retratação? Como agiria o Conselho de Segurança da ONU neste caso? E a Otan, da qual o país faz parte?

Acho mesmo que isso vai acontecer. Mas possivelmente o assunto já não vai causar mais comoção internacional. Seja como for, a Turquia só tem a ganhar. Além de se posicionar como um importante ator regional, a atuação do país agrada à opinião pública muçulmana, uma vez que o patrocínio à iniciativa é visto quase consensualmente como medida corajosa para interromper algo que, num estágio quase psicológico, é avaliado como uma injustiça contra os muçulmanos em geral. Ou seja, a liderança política da Turquia no Oriente Médio passaria a ser legitimada pelas próprias populações dos demais países da região. Mesmo que seus governos não tenham a mesma opinião, seria difícil sufocar tamanho clamor popular. Sem a menor dúvida, bancar a Frota da Liberdade – cujo navio Mavi Marmara foi comprado por 1,8 milhão de dólares de uma companhia pertencente ao governo municipal de Istambul – foi um golpe de mestre.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Os objetivos estratégicos da guerra de propaganda no Oriente Médio

Há mais pontos importantes por trás da abordagem de Israel à frota de embarcações que tentou furar o bloqueio a Gaza. Fica claro que hoje há uma mudança de mentalidade capaz de transformar significativamente o conflito árabe-israelense. A grande aliança xiita que pretende se firmar como força hegemônica no Oriente Médio percebeu que os embates militares podem até voltar a ocorrer, mas crê de forma clara que a guerra de propaganda é atualmente muito mais fundamental para que alcance seu objetivo. E este é um ponto central em todo o imbróglio envolvendo a invasão israelense ao comboio marítimo.

Para recapitular e entender o raciocínio estratégico desse grupo de países e organizações (Irã, Turquia, Síria, Hezbolah e Hamas): desde que Israel declarou independência, em 1948, houve três grandes conflitos armados entre o Estado Judeu e seus vizinhos árabes – a própria Guerra de Independência, a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e a Guerra do Yom Kipur, em 1973. Em todos esses confrontos físicos, os exércitos dos países árabes se envolveram diretamente. Em todas as ocasiões, foram derrotados. Pior, a partir desses eventos, Israel se tornou a maior potência militar regional e conseguiu aumentar seu território. Ou seja, em todos os conflitos, os países vizinhos perderam muito e não ganharam nada.

A verdade é que a causa palestina nunca foi prioridade entre os árabes. No entanto, Irã e Turquia – que são Estados islâmicos não-árabes, diga-se de passagem – perceberam uma grande oportunidade a partir da popularidade internacional palestina. Como os dois países pretendem liderar o grupo de novas potências no Oriente Médio, eles notaram que os palestinos podem representar o trampolim necessário para que alcancem seus objetivos. E de formas diferentes: primeiro porque este é o único tema capaz de mobilizar a opinião pública árabe e islâmica de todo o mundo. Segundo, isolar Israel pode representar, além do óbvio, uma espécie de garantia de que o governo israelense será condenado internacionalmente se decidir dar qualquer passo militar. Para ser mais claro, alguém imagina neste momento que algum país relevante iria apoiar uma ação militar do Estado Judeu para frear o programa nuclear iraniano?

O momento não poderia ser mais propício para pôr em prática esta nova estratégia de guerra da informação. Vale lembrar que foi a Turquia quem convocou a reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU para debater a abordagem à frota. Vale lembrar também que Ancara ocupa hoje assento rotativo neste mesmo conselho.

Para o Irã, a aliança com os turcos é fundamental. Graças a ela Ahmadinejad vai conseguir dar um nó na comunidade internacional usando de seus próprios mecanismos. Por exemplo, a Turquia não vai permitir qualquer ataque ao Irã, seja um confronto armado, seja a aplicação de sanções enquanto permanecer no Conselho de Segurança. Ao mesmo tempo, os turcos fazem parte da OTAN, a aliança militar ocidental, cujo pacto fundamental deixa claro que um ataque a um dos membros deve ser interpretado como um ataque a todos eles. Ou seja, os demais países devem partir em defesa do país atacado. Já deu para entender o que isso significa, certo?

Essa estratégia de mudança do eixo de poder internacional envolve também, é claro, o enfraquecimento diplomático de Israel. Afinal, com o país ainda mais isolado, os Estados Unidos perdem sua única ligação importante com o Oriente Médio. Quem poderia ser um interlocutor fiel aos americanos na região? Síria, Irã, Turquia? Creio que não. As peças todas se encaixam para permitir que a aliança silenciosa xiita alcance todos os seus objetivos estratégicos. Somente o governo de Israel comandado por Benjamin Netanyahu não percebe isso. Enquanto os demais países têm tomado decisões estratégicas baseadas em relações públicas e propaganda, o atual gabinete israelense prefere continuar a responder de maneira estomacal, como aconteceu há pouco. Se essa diretriz permanecer – e não há sinais de que haverá qualquer modificação –, Israel vai novamente contribuir ingenuamente para levar a cabo as grandes mudanças políticas no Oriente Médio.