terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Sobre Argo, Oscar e o Irã


O longa-metragem Argo, de Ben Affleck, foi o grande vencedor do Oscar deste ano. Apesar das qualidades artísticas da obra cuja narrativa é capaz de prender o espectador do início ao fim, o filme recebeu muitas críticas... do Irã. Isso mesmo; Mohammad Hosseini, ministro da Cultura e Orientação Islâmica, considerou-o “muito pobre do ponto de vista artístico”. Além desta resposta para lá de inusitada – até porque Argo está longe de poder ser considerado artisticamente pobre – , a emissora estatal do país também criticou a premiação, classificando-a como “política”. 

Este é um aspecto interessante, principalmente porque há muito pouco do que é feito no mundo que possa ser considerado apolítico. Portanto, quando parte do governo iraniano faz este tipo de acusação ao Oscar, acaba sendo, na prática, vazio. Acho que existe uma grande confusão de sentimentos nisso tudo. De fato, o Oscar tem sido muito mais político – no sentido do jogo político oficial, claro. As escolhas, não apenas dos títulos premiados, serviram como uma espécie de panorama das relações internacionais. 

Argo é sobre a fuga dos reféns da embaixada americana em Teerã; Zero Dark Thirty, sobre a captura de Osama Bin Laden, e os documentários Gatekeepers (entrevistas com ex-agentes diretores do Shin Bet, o serviço de segurança interna israelense) e 5 Broken Cameras (o cotidiano dos moradores da cidade palestina de Bil’in e seus confrontos com os soldados de Israel) acabaram por deixar em evidência cinematográfica assuntos que já estão no noticiário e são debatidos todos os dias. E daí? Quer dizer, quem decretou que a política não pode ser material cinematográfico? Sabe-se que o governo iraniano não permite a produção de filmes considerados contrários ao regime. Mas esta é uma decisão exclusiva do país, não um argumento para deslegitimar a premiação. 

No entanto, acho que é muito evidente a atmosfera que cerca a premiação de Argo; este é um ano muito importante para a tomada de decisões sobre o que pode ser feito em relação ao programa nuclear iraniano. Coincidência ou não, muitas das cenas do longa-metragem foram filmadas no prédio onde realmente funciona o Departamento de Estado americano. Para completar o ciclo de sinais, a primeira-dama, Michele Obama, anunciou a escolha diretamente da Casa Branca. Isso sem falar na torcida aberta pelo filme do secretário de Estado dos EUA, John Kerry. Acho que os iranianos talvez não tenham tido interesse de fazer todas essas críticas abertamente, mas é claro que eles sabem interpretar tudo isso. O que incomodou foi esta conjunção de fatores muito claros. E, obviamente, a decisão de dar o Oscar a um filme que mostra uma vitória do setor de inteligência americana sobre o governo do Irã. Mesmo que ela tenha ocorrido 34 anos atrás. 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Inverno árabe toma conta da Tunísia


Para encerrar as discussões sobre a situação da Tunísia nesta semana, alguns comentários que não foram incluídos no post de quarta. O primeiro deles diz respeito ao assunto abordado; em meio a tantas questões mundiais, acho importante tratar da incógnita sobre o futuro do país norte-africano porque a Tunísia é o berço da Primavera Árabe, o movimento espontâneo mais relevante e surpreendente deste século. 

Como já escrevi por aqui, ainda não podemos cravar revoluções, mas isso não tira nada da relevância do que aconteceu. Primeiro porque o foco é um dos cenários mais interessantes sob o ponto de vista geopolítico, segundo porque durante a maior parte do tempo esses movimentos eram espontâneos e sem coordenação de agentes políticos existentes, terceiro porque subverteu a ordem, quarto porque derrubou ditaduras e, por fim, usou as novas tecnologias para se reproduzir. O momento atual é tão grave porque põem todas essas novidades sob ameaça, a ponto do que se pretendia uma revolução acabar por se transformar meramente em substituição. 

Infelizmente, os grupos que acabaram tomando este poder popular - e legitimados por ela por meio de uma eleição limpa ocorrida em outubro de 2011 - passaram a se comportar como substitutos. No lugar de Ben Ali, o Ennahda não deu sequência aos apelos populares por mudanças concretas, mas optou por se apoderar do trono. É claro que foi eleito democraticamente, é claro que dizem representar uma corrente que prega a conjunção pacífica e produtiva entre islamismo e política. Mas, na prática, os sinais são bem distintos de que estão a caminho de protagonizar a mudança. Aliás, estão tão comprometidos ideologicamente com suas próprias bandeiras que exercem o poder exatamente como seus principais críticos previam. Por exemplo, sentenciaram a dois meses de prisão um casal que se beijou em público. 

Fora isso, Ali Larayedh foi indicado pelo partido para substituir o moderado Hamadi Jebali. Atual ministro do interior, Larayedh é considerado um linha-dura do Ennahda. O país está dividido e, para complicar, o cenário político está todo sob suspeita, na medida em que o principal partido é acusado pela oposição de planejar e executar a morte do líder de esquerda Chokri Belaid. A revolução realmente corre riscos e já há evidências suficientes para alarme. 

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Tunísia perde chance importante


Quando o politico de esquerda Chokri Belaid foi assassinado no último dia 6 de fevereiro, a Tunísia entrou em colapso. A frágil estabilidade ruiu de forma assustadora, acendendo o alerta vermelho aos esperançosos quanto as consequências práticas da Primavera Árabe. Desde então, o que se pôde ver foram protestos populares nas ruas, trocas de acusações e o recrudescimento da corrente mais intransigente do Ennahda, o partido que pretende conjugar islamismo e política e principal vencedor das primeiras eleições após a derrubada do presidente Zine al-Abidine Ben Ali. 

Quem mais perde com isso é a Tunísia, claro. Do ponto de vista econômico, por exemplo, este aparente retrocesso já custou um rebaixamento significativo da classificação da agência de risco Standard & Poor’s. Por mais questionável e um tanto perverso que seja o trabalho da empresa, é inegável o impacto representado por uma fuga de capitais. Ainda mais quando se leva em conta que o país está num processo de reconstrução que vai muito além da economia. Resgatar a credibilidade e a eficiência das próprias instituições talvez seja até mais importante neste momento. O fato é que entrar num vácuo de incertezas não deveria ser uma opção. 

Para completar, o primeiro-ministro Hamadi Jebali (foto) renunciou. O líder político tinha um enorme valor neste ambiente de vazio. Em primeiro lugar, foi um dos fundadores do próprio Ennahda. Engenheiro e jornalista, Jebali entendeu que neste momento é importante salvar as conquistas que tornaram a Tunísia o centro propulsor da Primavera Árabe. Com trânsito internacional e ampla experiência política, apresentou a proposta sobre a qual tratei por aqui na última semana: acabar com os protestos e unir o país dando uma trégua às rivalidades a partir de uma medida tão pragmática quanto radical; a formação de um governo composto estritamente de técnicos,  dando uma pausa nas disputas religiosas e políticas em nome da garantia de um período de estabilidade. 

Acho que seria uma saída. Até porque, como costumo repetir, encontrar pragmatismo no Oriente Médio é raridade. Encontrar um líder político ocupando um cargo disposto a tomar medidas realmente pragmáticas é quase impossível. A Tunísia acaba de perder essa chance. 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Constantino, documentário brasileiro que registra imagens do cotidiano sírio antes do início da guerra civil

Quando esteve de férias na Síria, em setembro de 2001, o cineasta brasileiro Otavio Cury talvez não imaginasse como sua vida e os episódios geopolíticos poderiam encontrar paralelos de tamanha grandiosidade. Durante o período em que esteve no Oriente Médio, assistiu de longe aos atentados de 11 de Setembro, eventos cujo grau de dramaticidade alteraria de forma indiscutível a relação entre Ocidente e Oriente. Mas foi também naquele mesmo mês que o diretor descobriu uma parte importante de sua herança familiar: um livro escrito por seu bisavô, o escritor, professor e dramaturgo Daud Constantino Al-Khoury. 

Curiosamente, Cury teve acesso aos textos de seu antepassado quando esteve na cidade de Homs por uma única noite. Voltando ao Brasil, passou a buscar a história do parente e, principalmente, encontrou um tradutor iraquiano para a obra, escrita em árabe clássico contendo poemas e as primeiras peças do teatro sírio. As coincidências não param por aí: a herança literária havia sido redescoberta em São Paulo nos anos 60 por Shakir Mustafá, diplomata alçado ao cargo de ministro da Informação na Síria tempos depois. Diante de tantos elementos, o cineasta passou a se empenhar em desvendar os mistérios em torno da figura familiar.

Em 2009, oito anos depois da descoberta, Cury retorna ao Oriente Médio, levando consigo a tradução e também a câmera para documentar o processo. A jornada pessoal acaba, de forma inesperada, por alcançar status de registro histórico, na medida em que exibe imagens do cotidiano sírio pouco tempo antes dos graves conflitos iniciados em março de 2011. Inclusive, a cidade de Homs, palco da criação literária de seu bisavô, tornou-se, nos últimos dois anos, epicentro da atuação dos insurgentes dedicados a derrubar o regime do presidente Bashar al-Assad.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Um tiro para assustar a Primavera Árabe


Na Tunísia, o assassinato de uma das principais lideranças políticas de oposição do país fez com que o mundo mais uma vez voltasse os olhos para o berço da chamada Primavera Árabe. Em janeiro de 2011, a revolta popular conseguiu derrubar o então presidente Zine al-Abidine Ben Ali, dando início a um processo que mudaria não apenas a realidade do Oriente Médio, mas também criando um dos mais importantes eventos políticos e sociais do século 21. A situação na Tunísia parecia até certo ponto resolvida, principalmente porque a população e as instituições nacionais conseguiram realizar eleições limpas, permitindo que um novo governo – eleito pelo voto da maioria – assumisse o poder. 

Mas um tiro disparado contra Chokri Belaid acendeu o sinal de alerta. Não somente porque soa muito estranho que uma das principais vozes críticas ao governo seja para sempre calada pela violência, mas também porque coloca em xeque o próprio processo da Primavera Árabe. Assim como em Egito e Líbia, a Tunísia ainda não havia conseguido revolucionar a vida dos cidadãos comuns, que foram às ruas, de maneira espontânea e apartidária, exigir eleições livres, imprensa livre, emprego e acesso à possibilidade de viver num país mais justo. 

É difícil imaginar processos políticos regionais importantes como movimentos únicos e restritos a um único país. À exceção de Israel, o Oriente Médio é formado por Estados que apresentam características comuns também naquilo que pode ser considerado negativo; por exemplo, o histórico de líderes ditatoriais que se apoderaram dos cargos e baniram qualquer grupo de oposição. Quando os tunisianos derrubaram Ben Ali, a influência que esta conquista teve sobre as pessoas dos países vizinhos provocou uma onda de manifestações similares e que, de uma forma ou de outra, acabou também alcançando um ponto fundamental em parte deles: a queda de ditaduras históricas. 

A dúvida agora, justamente por todas essas questões, é quais os impactos do assassinato de um líder de oposição no processo ainda em curso nos países árabes do Oriente Médio. Principalmente no Egito, o maior país árabe e também um importante pilar estratégico da política regional. Curiosamente, Tunísia e Egito passam por momentos similares: ambos derrubaram ditadores históricos, realizaram eleições e acabaram por eleger partidos islâmicos que dizem ser possível adotar princípios e práticas religiosas ao mesmo tempo em que defendem a democracia. É no mínimo complicado pensar numa forma prática de estabelecer limites, principalmente porque estamos falando de grupos que se mantiveram clandestinos durante os anos de ditadura e que agora precisaram se reinventar para assumir a liderança política. 

Na época das eleições na Tunísia escrevi sobre o Ennahda, partido vencedor das eleições e que busca imprimir modelo similar ao da Turquia, onde, bem ou mal, o islamismo político encontrou uma maneira de ser o protagonista bem sucedido de um cenário democrático. O problema é que não se alcança este tipo de equilíbrio bastante complexo de uma hora para outra. E os turcos têm suas próprias particularidades. Resta saber como o tiro que matou Belaid vai influenciar os acontecimentos de agora em diante. As manifestações que já tomam as ruas do país devem prosseguir, até porque a população e a oposição não estão dando sinais de que irão aceitar as soluções paliativas do governo. 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

John Kerry assume secretaria de Estado


É engraçado pensar nisso, mas estamos diante do segundo mandato do presidente Obama e há algo no ar um tanto contraditório; parece-me que Obama quer encontrar um perfil único para a maior potência do planeta nesses seus derradeiros quatro anos no cargo. Se o presidente é reconhecidamente alguém interessado em política externa, é também um líder que quer minimizar a atuação americana nas questões internacionais. Isso não quer dizer que os americanos estarão ausentes nesses próximos quatro anos, mas empenhados em estudar com afinco cada um dos próximos passos a serem tomados. 

Ou seja, até o momento, a sensação é que os EUA estão apostando numa espécie de liderança discreta. E faz algum sentindo, na medida em que a Casa Branca quer resolver problemas internos, como a recuperação da crise, a criação de empregos  e a reforma nas leis de imigração. Afinal, graças a essas promessas Obama ganhou as eleições. No entanto, o país não pode simplesmente sumir do mapa e esquecer os problemas internacionais, até porque tem bases espalhadas em todo o mundo e continua a ser protagonista. 

Tudo isso talvez explique a escolha do senador John F. Kerry (JFK, nada é por acaso) como secretário de Estado, o cargo mais importante da hierarquia política dedicada à área internacional. Kerry é silencioso, cuidadoso e, acima de tudo, discreto. Ao contrário de Hillary, não me parece ter pretensões mais ousadas em sua carreira. Kerry é um político sereno e especialista da área que tem em sua biografia uma trajetória marcante ligada à política externa. Foi membro do comitê de relações internacionais do Senado por quase 30 anos, é filho de diplomata e até sua irmã, Peggy Kerry, é funcionária de carreira da missão dos EUA na ONU. Victoria Nuland, porta-voz do departamento, observou que, desde o momento em que foi indicado pelo presidente Obama, John Kerry conversou pessoalmente ou por telefone com todos os ex-secretários de Estado vivos. Kerry foi escolhido por ter o perfil que Obama procura. Um perfil tão específico que só ele mesmo poderia assumir o cargo neste momento. 

A revista Foreign Policy resgatou para lá de curiosa. A matéria lembrava um acidente no Afeganistão envolvendo três figuras-chave do atual governo. Em fevereiro de 2008, os então senadores John Kerry, Joe Biden e Chuck Hagel foram observadores das eleições no Paquistão. Durante a viagem, acabaram feridos quando o helicóptero em que viajavam precisou fazer um pouso de emergência no Afeganistão. Eu diria que algo de mágico deve ter acontecido, uma vez que, cinco anos depois, os três sobreviventes são fundamentais ao governo dos EUA: Biden é vice-presidente, Kerry é o secretário de Estado e Hagel, secretário de Defesa.