sábado, 31 de agosto de 2013

Armas químicas na Síria: chegou a hora de a comunidade internacional se manifestar

Mesmo os ataques de abril e de agosto com gás sarin não parecem ter causado comoção internacional. As imagens impactantes de crianças mortas ou feridas gravemente na Síria sensibilizaram somente cidadãos comuns. O presidente americano, Barack Obama, está decepcionado com o Reino Unido, país com o qual os EUA sempre mantiveram o que se chama de “relação especial”. Ao contrário do primeiro-ministro britânico, David Cameron, o parlamento em Londres preferiu deixar eventuais sentimentalismos de lado ao rejeitar a proposta de ação militar contra o regime de Bashar al-Assad. 

Ao lado de Obama, por ora, os franceses. A aliança entre EUA e França esteve por demais abalada em função de toda a discussão que, no final das contas, deixou Paris de fora – com razão, aliás – do grupo de países que, liderados pelos americanos, invadiram, procuraram e até hoje não encontraram as tais armas de destruição em massa de Saddam Hussein. O dilema moral de agora, no entanto, é bem diferente; o uso de armas químicas em uma guerra é inaceitável. Atacar crianças e grupos de civis com este tipo de armamento causa ainda mais horror. Pode-se até questionar quem são os responsáveis pelos ataques, muito embora as evidências apontem para Assad, detentor dos arsenais químicos. Mas não se pode duvidar de que os ataques aconteceram mesmo. 

Nos dois últimos anos e meio, a comunidade internacional fez o que pôde para fingir que os mortos não eram contados aos milhares na Síria. Todos os líderes das potências ocidentais rezaram silenciosamente para que, de alguma forma milagrosa, a situação por lá se resolvesse por conta própria, Bashar al-Assad decidisse recuar e que os rebeldes não fossem tão violentos e tivessem objetivos para lá de escusos. Nada disso, no entanto, aconteceu, ao contrário dos ataques com armamento químico (estou sendo redundante propositalmente). 

E aí os EUA enfrentam um impasse: afinal, Barack Obama disse claramente que seu governo consideraria o uso de armas químicas como a fronteira final, o máximo que os americanos poderiam aceitar. É isso o que está tirando o sono do presidente. O custo de uma nova guerra no Oriente Médio será altíssimo; os EUA começam somente agora a colocar a cabeça para fora d’água da crise, ninguém pode prever as consequências regionais da intervenção, somente 9% dos americanos entrevistados são favoráveis à ação militar. 

Mas diante de todos esses pontos negativos vale fazer alguns questionamentos: o que a comunidade internacional está disposta a fazer para impedir novos ataques com armas químicas?  O que Rússia e China, principais Estados defensores de Bashar al-Assad no Conselho de Segurança da ONU, propõem para impedir novos ataques? Mesmo que a culpa acabe por recair sobre os rebeldes, o que a própria ONU pode fazer para evitar o absurdo do uso de armamento químico? 

Por aqui no blog sempre escrevo sobre o caráter realista das relações internacionais quando se trata da defesa de interesses próprios. Mas não faz qualquer sentido que países, líderes internacionais e, principalmente, a ONU entendam como vantajoso ou aceitável o uso de gás sarin contra qualquer grupo, muito menos contra civis, menos ainda contra crianças. Posicionar-se contra uma nova guerra no Oriente Médio é aceitável, mas não apresentar qualquer solução para impedir novos ataques é inadmissível. O parlamento britânico deu uma aula de realismo político, mas fez um silêncio constrangedor diante do horror das armas químicas.  

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Patriota se sacrifica em nome de relação estratégica com a Bolívia

Em meio a tantas informações desencontradas, ainda é cedo para chegar a conclusões quanto ao estranhíssimo episódio da fuga do senador boliviano Roger Pinto Molina para o Brasil. O que poderia soar somente como um grande mal-entendido acabou provocando a queda do ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota. Curiosamente, foi esta consequência política que acabou ampliando a história até então pouco conhecida por aqui.

O senador boliviano estava abrigado na embaixada brasileira em La Paz há cerca de 450 dias. Durante todo este período, a imprensa mal tocou no assunto. Graças ao plano do diplomata Eduardo Saboia – encarregado de negócios na Bolívia –, a situação de desconforto e impasse chegou a uma resolução: a fuga de ambos do território boliviano numa operação oficial do Brasil. O ministro Patriota acabou não resistindo à pressão por algumas razões: a primeira delas devido à surpresa causada pela chegada de Saboia e Pinto Molina ao Brasil. A tentativa inicial – e oficial, uma vez que veio em nota do Ministério das Relações Exteriores – de pôr a culpa somente na conta do embaixador Saboia se mostrou insatisfatória. 

Para tornar a situação ainda mais delicada, o país vizinho é considerado parceiro estratégico pela evidente aliança ideológica com o Brasil e, claro, devido aos muitos acordos conjuntos, como Unasul e o processo ainda em curso de adesão ao Mercosul. Membro da oposição boliviana acusado de crimes contra o erário de seu país, Roger Pinto Molina é o tipo de figura política que incomoda o governo de Evo Morales. Dar abrigo, asilo político e pôr em prática um plano de fuga para tirar Roger Pinto Molina do país soaram como tomada de partido no jogo interno de um Estado aliado. 

Entre todos os muitos mal-entendidos deste pacote de decisões, o que mais pesou ao ministro Patriota foi o suposto desconhecimento sobre uma operação que contou com fuzileiros navais, agentes da Polícia Federal e o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Ricardo Ferraço (PMDB-ES). Como escrevi, inicialmente a ideia era limpar a barra com o governo boliviano colocando a culpa unicamente no embaixador Eduardo Saboia. Não foi suficiente; para não arranhar de vez as relações com a Bolívia, foi preciso derrubar o ministro Antonio Patriota. 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Bashar al-Assad cruza todos os limites na Síria

Escrevi muitas vezes por aqui sobre a Guerra civil síria. O impasse da luta do presidente-ditador Bashar al-Assad pela permanência no cargo já causou cem mil mortes. Como também escrevi tantas vezes, é pouco provável que o mapa da Síria seja o mesmo quando tudo isso terminar. O problema é que a comunidade internacional não apenas se recusa a intervir, mas seu silêncio é interpretado pelo líder sírio como uma folha em branco assinada pelas potências internacionais. 

Os responsáveis pela condução da política externa de EUA, Grã-Bretanha e França – além de toda a comunidade internacional representada pela ONU – subestimaram o potencial radical de Bashar al-Assad. Quando a crise síria começou, na esteira do movimento popular que ficou conhecido como Primavera Árabe, a comunidade internacional optou por se resignar. Fruto do fracasso da intervenção na Líbia, mas também das duas guerras que continuam a ser travadas no Oriente Médio (Iraque e Afeganistão) e, acima de tudo, sob o argumento de que a região já é por demais complexa para uma nova ação militar. Soma-se a tudo isso a crise econômica que atingia e continua a afetar dramaticamente EUA e Europa. 

Por tudo isso, nada foi feito. Os cem mil mortos passaram a ser contados em estatísticas igualmente silenciosas e burocráticas acompanhadas rotineiramente pela imprensa. Nada haveria de ser feito a não ser fingir que nada acontecia na Síria e aguardar, pacientemente, para que tudo se resolvesse por si. Mas isso não aconteceu, pelo contrário. O tom dramático dos eventos se tornou uma ameaça ainda mais sombria a partir da notícia de que, nesta quarta-feira, dia 21 de agosto, cerca de 1,2 mil civis sírios foram mortos pelas forças leais a Bashar al-Assad por uso de armas químicas. A suspeita é de gás sarin, o mesmo usado por Saddam Hussein, em 1988, contra a etnia curda. 

E agora? O cenário de uso indiscriminado deste tipo de armamento deveria, em tese, afetar a comunidade internacional de maneira sem precedentes. Mas esta comunidade internacional é a mesma responsável por dar a Assad a facilidade de empregar gás sarin. Com o avanço dos rebeldes e, principalmente, com a presença de militantes radicais islâmicos entre eles, o líder sírio tem partido para o tudo ou nada. Como já havia usado armamento químico em março deste ano e conseguiu obter a aprovação silenciosa do Ocidente – na medida em que as chamadas potências não fizeram nada para detê-lo –, agora está muito seguro e à vontade para aumentar a dosagem de seu radicalismo. Em nome da manutenção do cargo, em nome da manutenção da unidade territorial e política da Síria. E, como de costume, com a aprovação declarada de Rússia e China. E com a aprovação silenciosa da ONU.

Para concluir este texto, reproduzo abaixo um trecho de um artigo assinado pelo jornalista israelense Ari Shavit, do Haaretz. Faço minhas suas palavras:

“Se civis podem ser mortos por gás em 2013, nos deparamos com o fim do mundo. É o fim de um mundo que se pretende moral e esclarecido. É o fim de um mundo que busca estabelecer uma ordem internacional justa da qual o Oriente Médio faria parte”. 

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Caos no Egito é exemplo da ampla crise institucional no Oriente Médio

A situação de absoluta incerteza em relação ao Egito é um complicador regional e que respinga sobre o governo dos EUA. Patrono de acordos de paz no Oriente Médio, Washington mantinha um tênue equilíbrio na região até a Primavera Árabe. 

Graças a anos de trocas de favores de bastidores e acordos financeiros e políticos, sucessivos governos americanos conseguiram empurrar mais para frente as grandes mudanças que, cedo ou tarde, viriam a acontecer. Para o azar de Barack Obama, o processo de ruptura com o modelo de sustentação das velhas estruturas foi acontecer justamente sob seu mandato. O que quero dizer é muito simples: Síria e Egito, dois dos principais atores da região, mantiveram-se como Estados nacionais até bem pouco tempo. Tinham problemas, nunca foram democracias, sempre sufocaram a oposição, nunca apresentaram resquício de imprensa livre, mas existiam como Estados nacionais. 

Novamente, para azar de Obama, esta realidade mudou completamente. Nem Síria, nem Egito estão próximos de retornar ao status anterior à chamada Primavera Árabe. Para completar, o Oriente Médio é hoje uma grande incógnita, na medida em que movimentos de contestação popular – e, claro, a repressão violenta e habitual dos governos locais – põem em xeque a mínima possibilidade de prever como, quando e se haverá um fim para o tumulto regional. A crise é ampla. Não se sabe o que poderá emergir dos escombros do Oriente Médio. Arrisco mesmo a dizer que é bem capaz que Estados nacionais existentes hoje deixem de existir num futuro breve. O caso mais emblemático é o da Síria, cujas profundas divisões étnico-religiosas devem desmembrar o país.

Diante disso tudo, Obama tem um problemão a resolver. Sua insatisfatória resposta ao massacre cometido pelo exército egípcio aos partidários da Irmandade Muçulmana é somente a ponta do iceberg de uma equação que, na prática, nenhum líder mundial tem capacidade para resolver. A expectativa depositada sobre o presidente americano é derivada não apenas das responsabilidades que seu cargo exige, mas também da aura de líder cinematográfico que lhe é tão natural. 

terça-feira, 13 de agosto de 2013

A retomada do diálogo entre israelenses e palestinos

Nesta quarta-feira, os olhos do mundo estarão novamente voltados para Jerusalém. Negociadores israelenses e palestinos retornam à mesa de negociações graças à insistência americana. Diante de tanto pessimismo – justificado, diga-se de passagem –, acredito que há esperança para acreditar que algum passo mais concreto possa ser dado em direção ao início de um acordo definitivo. 

As questões são as mesmas de sempre: o destino dos refugiados palestinos, o estabelecimento de fronteiras definitivas aos Estados israelense e palestino, como fica Jerusalém e, acima de tudo, como conter os radicais de ambos os lados. No entanto, creio que, timidamente, há evoluções desde já; o próprio formato das conversas foi pensado para evitar rompimentos unilaterais. Os grandes nomes desse jogo atual não estarão frente a frente, ao contrário de edições anteriores. Nem o secretário de Estado americano John Kerry, nem o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, nem o presidente palestino, Mahmoud Abbas, estarão na sala de reuniões. 

O diálogo será mediado pelo enviado especial do EUA, Martin Indyk. Do lado de Israel, dois experientes negociadores: a ex-ministra das Relações Exteriores Tzipi Livni, e o negociador chefe e advogado Isaac Molho. Do lado palestino, o negociador chefe Saeb Erekat (que participou de praticamente todas as rodadas de negociações desde a própria fundação da Autoridade Palestina) e o economista Mohammed Shtayyeh, que desde 1996 dirige o Conselho Econômico Palestino de Desenvolvimento e Reconstrução. 

Acredito neste formato de negociação por algumas razões. A primeira é que todos os envolvidos têm larga experiência com negociação. Se por um lado já assistiram a diversas tentativas fracassadas, também sabem o que não deve ser repetido para desperdiçar mais esta oportunidade. Essas pessoas também estão mais do que familiarizadas com os limites do que podem ceder de cada um dos lados que representam. E, acima de tudo, vejo neste formato de diálogo uma possibilidade real de os representantes atuarem como escudos políticos de seus “chefes”. Benjamin Netanyahu e Mahmoud Abbas evitariam empenhar seus nomes em negociações que julgassem por demais satisfatórias ao lado oposto. Sem a pressa de ter de deixar a sala de reuniões com uma grande novidade ou decisão, suas equipes de negociadores sofrem menos pressão política por resultados. Podem apresentar e ouvir propostas sem a necessidade de assinarem o compromisso definitivo. Até porque – e eis aí mais um aspecto interessante deste formato – nenhum dos presentes está autorizado ou possui a legitimidade política e mesmo técnica de fechar um acordo. 

Voltarei a abordar o assunto em posts futuros, mas deixo aqui minhas primeiras considerações sobre o início da retomada das negociações. Timidamente, a experiência de fracassos anteriores já teve o mérito de evitar o naufrágio desta rodada antes mesmo de ela começar.