segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Os acontecimentos no Egito e a mudança de padrões políticos no Oriente Médio

Após este intervalo de cinco dias, retomo o trabalho com a certeza de que os acontecimentos no Egito são de definitiva importância histórica e geopolítica. Um sinal de tal percepção – mesmo por aqui no Brasil – é o assunto figurar nas capas dos jornais brasileiros – algo raro para a editoria de Internacional, excetuando-se apenas os períodos de guerra. Ou pelo menos o início delas. O cenário que existe atualmente é repleto de uma certeza e de muitas questões. A certeza mundial é de que os protestos populares são consequência de profunda insatisfação interna e do efeito dominó regional gerado pelo exemplo da Tunísia. Isso ninguém contesta. No mais, restam especulações, sendo uma das mais importantes a dúvida sobre a participação dos grupos islâmicos na política egípcia a partir da queda de Hosni Mubarak.

Sobre esta dúvida, tendo a pensar de maneira distinta à maioria dos analistas que vem patinando neste assunto. Há certo otimismo prematuro e generalizado de que o silêncio da Irmandade Muçulmana é a prova de que o grupo não estaria envolvido nas manifestações. Esta é uma leitura parcialmente correta. É possível sim que os fundamentalistas egípcios tenham sido pegos de surpresa tanto quanto o presidente Mubarak. No entanto, isso não prova de nenhuma maneira que eles estejam à margem do processo de mudança política. Pelo contrário. Maior interessada na derrocada do regime, a Irmandade Muçulmana tem agido com inteligência. Ao adotar o silêncio como estratégia, espera colher os frutos da mudança sem que, para isso, seja obrigada a se expor ou entrar em confronto com o governo. Ou alguém acha que o grupo realmente vai aceitar ficar de fora da nova administração política do país?

Regionalmente, o cenário é de completa mudança dos padrões vigentes. O Hezbollah tomou o poder no Líbano; nos territórios palestinos, o Hamas ganha força com a publicação dos documentos que entregam posições polêmicas da Autoridade Palestina; a Turquia continua a se aproximar de Irã e Síria; e, principalmente, a credibilidade americana sofre um revés inédito – desde sempre contestada pelas populações dos países, a mediação de Washington e seu poder de barganha pode mudar para sempre neste cenário em construção. Se a Irmandade Muçulmana conseguir papel institucional num futuro governo egípico, o presidente Barack Obama e Israel estarão em situação muito difícil.

Do ponto de vista israelense, as previsões são desanimadoras. Se as relações com a Turquia já andavam muito ruins, agora com Egito e Autoridade Palestina ainda mais distantes, o isolamento passa a ser completo. Irã e Síria têm preferido esperar porque as perspectivas de ambos são semelhantes às da Irmandade Muçulmana egípcia. A tendência de vitória regional é tão clara que qualquer movimento corre o risco de atrapalhar o curso natural deste processo. Se melhorar, estraga.

Escrevo sempre sobre a grande guerra silenciosa do Oriente Médio; a dos Estados sunitas moderados – apoiados pelos EUA – contra os xiitas – liderados pelo Irã. Esta divisão só é válida enquanto os países sunitas contarem com lideranças políticas apoiadas pelos americanos, como no caso do Egito. Se grupos islâmicos conseguirem o poder nesses países, tudo muda. Por exemplo, mesmo majoritariamente sunitas, os palestinos do Hamas são apoiados pelo Irã xiita porque ambos compartilham os mesmos valores e ambições políticas: a destruição de Israel e a construção de uma Palestina regida pela sharia islâmica. É claro que Hamas e Teerã sabem que possivelmente não alcançarão tal objetivo, mas mantêm o discurso porque precisam dele como razão de existência (no caso do grupo radical islâmico) e massa de manobra política para o sucesso da empreitada em busca da hegemonia regional (no caso do Irã).

O momento é decisivo. Que Mubarak vai cair, não há dúvidas. Mas interessante também é perceber como tal mudança afeta a política mundial, os interesses americanos, e o futuro breve do Oriente Médio. Em meio à massa de informação, a história está dobrando uma esquina importante, com eventos de grandiosidade comparáveis ao nascimento do nasserismo ou à assinatura dos acordos de Camp David, entre Egito e Israel.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Documentos secretos palestinos: quem está sob pressão a partir de agora

Com a divulgação dos documentos confidenciais das negociações entre israelenses e palestinos, fica a dúvida sobre os próximos passos que restam aos atores regionais. Se as perspectivas parecem pessimistas – e tal percepção é bastante justificada –, os interessados em manter vivo o processo de paz precisam investir como nunca no fortalecimento da Autoridade Palestina.

Foto: o ex-primeiro ministro de Israel Ehud Olmert e o atual presidente palestino, Mahmoud Abbas

É muito provável que as potências ocidentais façam isso mesmo. Além de única alternativa de negociação, é preciso reverter agora a aura de incerteza que paira sobre as intenções americanas, por exemplo. Se os EUA já eram questionados pelos países árabes e islâmicos, a publicação de informações importantes sobre a atuação de Washington transformaram o sonho diplomático de Obama em miragem. Por exemplo, a divulgação de que a Casa Branca chegou a sugerir a alocação de refugiados palestinos em Chile e Argentina pegou muito mal mesmo.

Por isso, a primeira atitude oficial americana foi comunicar, através do Departamento de Estado, que seu governo considera o caso um fator complicador nos esforços para alcançar um acordo de paz entre israelenses e palestinos. É isso mesmo. Principalmente porque, do ponto de vista ocidental, alguns dos principais protagonistas no Oriente Médio perderam significativamente:  os EUA, o atual trio de comando de Israel – o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, o ministro da Defesa, Ehud Barak, e a caricatura que ocupa o ministério das Relações Exteriores, Avigdor Lieberman – e a líder da oposição, Tzipi Livni. 

O trio que dá os rumos atuais em Jerusalém passa a penar para explicar aos opositores, à imprensa e à população do país por que insiste em afirmar que não há parceiros confiáveis de negociação. Os documentos apresentados pela al-Jazeera e pelo Guardian mostram que o governo israelense anterior – do primeiro-ministro Ehud Olmert – e a Autoridade Palestina estavam em estágio avançado de diálogo, com propostas cada vez mais claras e dispostos a aplicar conceitos sofisticados para resolver os vários impasses entre as partes (e o conceito mais valioso é o da criatividade, a capacidade de fugir de respostas óbvias que jamais foram capazes de pôr um plano de ação em prática).

Tzipi Livni fica numa posição ambígua. Se por um lado manteve a fama de negociadora firme, por outro se expôs como nunca ao apresentar um plano de realocação das vilas árabes-israelenses dentro do futuro Estado palestino – solução abertamente defendida por Avigdor Lieberman, a quem Livni diz publicamente se opôr.

O que todo mundo já imaginava que poderia acontecer está tomando forma nos territórios palestinos. O Hamas se aproveita como pode. O grupo se refestela sobre os escombros de um governo que passou a desacreditado no mundo árabe e islâmico. Curiosamente, no entanto, o presidente, Mahmoud Abbas, e o negociador-chefe, Saeb Erekat, estão julgados e condenados como traidores morais justamente por demonstrarem algumas das características que o ocidente mais admira: pragmatismo e realismo político.

Por exemplo, a posição de Abbas sobre a problemática questão dos refugiados palestinos é, na prática, a aceitação do caráter judaico de Israel, algo que o próprio Netanyahu coloca como condição para retomar os diálogos.

“Nós dissemos que alguns mas não todos poderiam retornar para o que hoje é Israel.(...) É ilógico pedir a Israel que receba cinco milhões ou mesmo um milhão. (...) Isto significaria o fim de Israel”, diz o presidente palestino.

O problema é que este pragmatismo é interpretado como traição pelos grupos radicais. Se a AP ganha muito entre os ocidentais pela divulgação dos documentos, perde demais no próprio território. E aí só resta a EUA e Israel fortalecerem Abbas e Erekat. Mas é preciso esperar a poeira baixar. Qualquer iniciativa espalhafatosa atualmente pode ter efeito contrário, deixando-os em situação ainda mais delicada.

Um dos mais curiosos efeitos colaterais é notar que o maior avanço nos diálogos aconteceu justamente durante o governo de George W. Bush. Além de ter apoiado o fim de todos os assentamentos em Gaza e mais alguns importantes na Cisjordânia (25 no total), foi durante o mandato de um dos mais contestados presidentes americanos de todos os tempos que israelenses e palestinos chegaram muito perto de colocar em prática alguns dos principais pontos dos diálogos de Annapolis. Por isso, Barack Obama deve estar se sentindo muito pressionado a obter resultados mais significativos – e diante de um cenário muito mais complicado.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A Autoridade Palestina e o 'efeito Aljazeera'

O vazamento de documentos da Autoridade Palestina é mais um capítulo da nova modalidade em curso de atuação da imprensa: quando ela deixa de simplesmente informar e passa a influenciar diretamente o curso político. Isso sempre existiu, mas a criação do WikiLeaks transformou o fenômeno, acelerando-o. De certa maneira, este é um acontecimento até natural, uma vez que vivemos a era da velocidade da internet. Não se poderia imaginar que a história seguiria o ritmo do século passado. A diferença, no entanto, é que a rapidez transforma a análise. Ela perde o tempo de amadurecimento para acompanhar a sucessão de eventos bombásticos. Perde também em qualidade, como não poderia deixar de ser. É assim também diante das muitas informações apresentadas pela Aljazeera e pelo Guardian, veículos que tiveram o primeiro acesso aos cerca de 1.600 documentos que acompanham, preferencialmente, o ponto de vista da Autoridade Palestina durante as negociações com Israel e EUA.

Analisar os impactos de tantos e importantes dados exige uma mudança de olhar. Sob o ponto de vista ocidental, é muito bom saber que a AP estava realmente interessada em negociar. E como negociar nada mais é do que aceitar perdas – e algumas delas dolorosas – , é válido reconhecer que a liderança palestina se dispôs a perder muito. Por exemplo, o presidente Mahmoud Abbas e o negociador-chefe Saeb Erekat (foto) colocaram em xeque as próprias biografias ao aceitar abdicar da reivindicação por toda a Jerusalém Oriental.

Israel não aceitou a oferta porque ela não compreendia alguns dos principais blocos de assentamentos: Ma’aleh Adumim, Har Homa e, principalmente, Ariel. No caso deste último, é bom que se diga que se trata de um dos maiores assentamentos na Cisjordânia, com 20 mil moradores e mais uma população de dez mil estudantes universitários transitórios – num país de sete milhões de habitantes, este é um número que não pode ser ignorado. A contraproposta israelense consistia no controle de Ariel, Gush Etzion, Ma’aleh Adumim, Givat Ze’ev e Har Homa. Na prática, seriam anexados 6,8% da Cisjordânia e em troca Israel cederia 5,5% de território, além da construção de uma rodovia ligando Gaza e Cisjordânia a ser controlada pela Autoridade Palestina.

Fica muito claro que graves consequências aguardam os líderes palestinos moderados. A reação de Abbas e Erekat mostra que ambos sabem que suas vidas correm risco; Abbas disse que todo o material exposto era de conhecimento dos demais países árabes; Erekat procurou desqualificar os documentos e dizer que a Aljazeera tenta minar o governo da AP.

O que muitos veículos de imprensa procuram enxergar como condescendência por parte da AP nada mais é do que fruto de total desamparo político. Negociar com Israel e EUA foi o que restou aos membros do governo palestino, após o grupo ser expulso de Gaza pelo Hamas, em 2007. O realismo político está por trás desses documentos – e isso ninguém parece estar disposto a dizer – para israelenses e palestinos. Se o Hamas levanta a bandeira do radicalismo, defende a violência como método e condena as negociações com Israel, só restava mesmo a seus opositores internos – a própria Autoridade Palestina que tem nos membros do Fatah seus mais importantes e numerosos representantes – seguir pelo caminho inverso. Abraçar as negociações é a própria razão de existência da AP – criada após os Acordos de Oslo, em 1993, justamente com este objetivo. Unificar o discurso com o Hamas seria decretar o fim da mais importante instituição política palestina apoiada, bancada e legitimada pelo ocidente.

A atuação do governo israelense do então primeiro-ministro Ehud Olmert também foi guiada pelo realismo político. O país em crescimento e os atentados terroristas praticamente anulados tornavam a negociação no mínimo arriscada. Aceitar perdas – e, como escrevi antes, qualquer negociação compreende abrir mão de algo – era desnecessário. Deixar a situação correr em inércia era uma opção viável e que não acarretaria maiores prejuízos políticos nem a Olmert, nem para a então chanceler Tzipi Livni.

Quem mais perdeu com tudo isso foi o governo da Autoridade Palestina. Sem a menor dúvida, os muitos opositores à administração de Mahmoud Abbas irão se aproveitar do clima negativo de surpresa para tentar obter ganhos políticos. Não é impossível imaginar que o Hamas adquira ainda mais força. Até porque os territórios palestinos não estão isolados dos demais países árabes. Se a transmissão da Aljazeera dos acontecimentos na Tunísia motivou manifestações em todo o mundo árabe, a publicação desses documentos pela mesma rede de TV promete sacudir a política palestina.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Visita de Hu Jintao aos EUA cumpre objetivos traçados pelos chineses

Havia muita expectativa quanto ao encontro entre o presidente chinês, Hu Jintao, e o americano, Barack Obama. Não era para menos mesmo. Não se tratava somente da primeira visita de um presidente chinês aos EUA desde 1997, mas também da primeira ocasião em que os líderes das duas maiores economias do planeta iriam estar frente a frente após a China ultrapassar o Japão, no ano passado. Uma série de questões pairava no ar: Jintao aceitaria responder perguntas sobre direitos humanos? Faria algum anúncio sobre a manipulação do Yuan, a moeda chinesa, que permite ao país ser o exportador mais competitivo do mundo? Estaria disposto a explicar as estranhas diretrizes de direitos humanos aplicadas por Beijing a dissidentes políticos?

Apesar de toda esta atmosfera grandiosa e da recepção de gala, nada de espetacular foi dito. É válido mencionar a coragem de repórteres da imprensa americana ao questionar Hu Jintao sobre direitos humanos, por exemplo. A bola foi levantada e o máximo que o presidente chinês se permitiu foi um comentário misterioso e nada revelador; “ainda há muito que precisa ser feito nesta área”, disse. De fato, mesmo com este relativo constrangimento, a visita valeu muito para o presidente da China. O desgaste não lhe importa muito porque ele é o retrato fiel da própria política externa do país.

Se está muito claro que Beijing pouco se importa com as grandes questões internacionais, Jintao também segue a mesma linha. A república popular continua a manter empreendimentos em centros de contestação mundial, como Irã, Sudão e Coreia do Norte. E há algumas razões que explicam este tipo de pensamento: a política externa chinesa é menos ideológica do que a interna. E isso soa até um pouco contraditório quando comparado aos próprios EUA.

Identificados como representantes óbvios do capitalismo, os americanos estão acostumados a estar no foco das atenções mundiais e, por isso, tentam justificar atitudes políticas internacionais cobrindo-as de uma aura ética (muito embora nem sempre tal ética se confirme na prática). Como a impressão vale muito mais do que a realidade – e muitas vezes há verdade sim, vale dizer –, Washington tenta definir alguns de seus gestos geopolíticos mais importantes a partir de certos eufemismos morais.

A China definitivamente não tem esta preocupação. Curiosamente, o regime comunista está interessado somente em fazer negócios, em crescer política e economicamente. Aliás, como se pode concluir no caso chinês, os ganhos políticos se consolidam através de sua grande e competitiva economia. E para que os resultados continuem positivos, vale tudo: pirataria, manipulação monetária, roubo de propriedade intelectual – americana, principalmente, é bom lembrar.

A visita de Hu Jintao aos EUA está cercada desses valores. E foi profundamente lucrativa aos chineses. Para o presidente do país, a simples grande atmosfera criada em Washington já era um sinal de vitória. Finalmente, os esforços – mesmo que muitos deles não tivessem qualquer preocupação ética, como escrevi, ou preocupação em se cercar de um “status ético” – de anos de trabalho da China foram reconhecidos pela maior potência do planeta.

E neste momento existe a expectativa de um maior “atrevimento” geopolítico do país. Está em curso um movimento estratégico para requisitar direitos sobre todo o Mar do Sul da China (imagem), apesar de suas águas se estenderem também a Vietnã, Tailândia, Filipinas e Malásia. Pode ser o início de mais um expansionismo chinês – e agora com uma espécie de “legitimidade” por seu status de grande potência mundial.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Tunísia serve de inspiração a líder islâmico do Sudão

A desestabilização dos países do norte da África é um processo em curso. No texto de ontem, comentei sobre a possibilidade de movimentos similares ao que derrubou o governo corrupto da Tunísia eclodirem pela região. O cenário se torna real a cada dia. O tempo está ao lado dos revoltosos.

E outro aspecto importante parece caminhar paralelamente às manifestações populares: a tentativa de grupos radicais islâmicos de se aproveitarem do vácuo de poder. Um exemplo esquecido é o caso sudanês. Para complicar o já complexo quadro político do país que vive o gerúndio da secessão, a principal liderança política islâmica do Sudão, Hasan al Turabi (foto), já se manifestou:

“Eles deveriam ter percebido (as autoridades governamentais) que este país precisava estar integrado socialmente. Você precisa criar fundações para poder construir a partir delas. Do contrário, cada uma das paredes irá desmoronar. Agora este país nunca vai estar conectado”, disse.

É preciso entender uma parte importante do intrincado histórico do Sudão para compreender o protagonismo de al Turabi.

Hassan al Turabi e o presidente Omar al-Bashir trabalharam juntos nos momentos anteriores à chegada deste último ao poder, em 1989. Durante dez anos, foram parceiros na tentativa de implementar a sharia, a lei islâmica, no Sudão. Em 1999, no entanto, a relação terminou. Turabi e Bashir se separaram, encerrando a parceria e dando início a uma era de estremecimento, alimentando ódio recíproco comparável a de Lex Luthor por Super-Homem.

Ne medida em que Bashir se tornou uma espécie de presidente vitalício a partir de sucessivas – e fraudulentas – reeleições, al Turabi foi posto na ilegalidade. Já foi preso inúmeras vezes sem maiores explicações e retornou para a cadeia nesta semana, após as declarações em que convocou a população a derrubar o governo através de manifestações como as que ocorrem na Tunísia.

Esta é a brecha de oportunidade sobre a qual falei ontem. O momento é muito propício e o governo Bashir está em péssima situação; por conta da divisão do país, o Sudão original deve perder cerca de 75% das reservas petrolíferas – localizadas na parte sul do território. Além das tentativas infrutíferas do banco central de estabilizar a libra sudanesa, o governo teve de reduzir os subsídios aos produtos derivados de petróleo e aumentar o preço do açúcar.

A equação é muito favorável à oposição: governo contestado, país dividido, perda das principais riquezas e medidas impopulares. E, não custa lembrar, Omar al-Bashir é investigado internacionalmente pelos crimes de guerra cometidos em Darfur. Ou seja, basta um leve empurrão para que o poder mude de mãos no Sudão.

É importante lembrar também que Hassan al Turabi não é nenhum, digamos, democrata. Entre 1964 e 1969, foi secretário-geral da Frente da Carta Islâmica, o braço político da Irmandade Muçulmana no Sudão. Se tomar o poder, irá implementar a lei islâmica e, sem nenhuma dúvida, irá fechar ainda mais o país.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Protestos na Tunísia e suas consequências regionais

As tensões políticas e sociais que tomaram as ruas da Tunísia podem se espalhar pelos demais países do norte de África. Pelo menos esta é a esperança de muitos analistas que acreditam que o movimento iniciado em Túnis deve ser a fagulha para a sublevação de populações oprimidas por décadas de governos corruptos e tiranos. Além da Tunísia, Jordânia, Líbia, Mauritânia, Egito, Argélia e Marrocos estão entre os regimes que compartilham características muito similares: déspotas de famílias ricas e tradicionais se apoderam do cargo máximo com apoio das forças armadas e - este fato tem sido ignorado até agora - das potências ocidentais.

É claro que o pacote compreende também o controle da imprensa e a extratificação da sociedade. Aos próximos do poder, tudo; à maioria da população, o resto. Talvez esta situação pudesse ser mantida por mais tempo, mas parece que os regimes ignoram o intercâmbio natural destes tempos. Nunca é demais lembrar que os protestos contra as eleições iranianas que reelegeram Ahmadinejad em junho de 2009 foram convocados por uma onda de mensagens de celular e twitter. A rede de TV Aljazira, baseada no Qatar, transmite as manifestações na Tunísia para todo o mundo árabe.

Antes de imaginar que esta situação será o ponto-chave capaz de espalhar a democracia na região, é preciso entender as grandes diferenças que marcam os países. Gosto muito da definição do Rami G. Khouri, editor do jornal libanês Daily Star e diretor do Instituto Issam Fares de Política Pública e Assuntos Internacionais da Universidade Americana de Beirute:

"Na realidade, há dois mundos árabes. O primeiro compreende os ricos (países) produtores de energia do Golfo Pérsico e suas pequenas populações, onde paternalismo e bem-estar tribal mantêm os cidadãos materialmente confortáveis e politicamente dóceis. O resto do mundo árabe - cerca de 320 milhões de um total de 350 milhões - reflete com proximidade o perfil da Tunísia como cenário definido por pressões socioeconômicas, expandindo a disparidade entre os mais e menos providos, degradação ambiental, consideráveis tensões políticas e regimes autocratas ancorados em agências de segurança internas", diz.

Além disso, não se pode deixar de lado os interesses das potências ocidentais na região. Suas prioridades praticamente se resumem à manutenção da estabilidade. É bom que se diga: uma grande virada nesses países não necessariamente agradaria à Casa Branca, para ser mais claro. Aliás, a grande preocupação americana na região é restrita a questões de segurança internacional e à luta contra o terrorismo. Por exemplo, por mais que a situação na Argélia seja de profunda desigualdade interna, documentos do WikiLeaks mostram o apreço dos EUA pelo governo local devido a suas ações no combate à al-Qaeda do Magreb Islâmico (AQIM, na sigla em inglês).

Um dos maiores temores americanos é que uma eventual mudança extrema nesses países termine por beneficiar justamente os movimentos islâmicos radicais. Banidos da legalidade e mantidos à margem do sistema político, não é impossível imaginar que os partidos religiosos ganhem força se as lideranças atuais forem derrubadas. Certamente, seria isso o que aconteceria em Egito e Jordânia, para citar os exemplos mais óbvios.

Vale lembrar a vitória esmagadora do Hamas no território palestino quando o grupo pôde participar pela primeira vez das eleições legislativas de 2006. Pesquisa realizada pelo Instituto Gallup em 2010 nos 22 países árabes mostra a força da religião; entre os jovens entrevistados - pessoas com até 30 anos de idade e que correspondem a 65% de toda a população árabe -, 86% disseram ter confiança nas organizações religiosas. Se elas se transformarem em partidos políticos e adotarem o discurso da moralidade, é muito provável que conquistem ainda mais as mentes deste eleitorado frustrado por décadas de regimes excludentes.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Sudão a caminho do caos

Ao que tudo indica, o Sudão vai mesmo se dividir em dois. Resultados preliminares apontam apoio significativo da população do sul ao projeto de secessão. Estimativas otimistas preveem a vitória do "sim" com cerca de 90% dos votos. Neste clima de confiança e felicidade, é chato dizer a verdade: os problemas para os dois países estão apenas no começo.

O prazo para solucioná-los é curtíssimo. O acordo estabelecido em 2005 deixa claro que, se independente, o Sudão do Sul passa a existir já a partir do dia 9 de julho. Isso significa na prática que pelo menos as questões mais importantes devem ser respondidas até lá. E aí é preciso ser claro: o país sequer tem um nome definitivo e, muito mais grave, suas fronteiras não estão definidas. Este caso, inclusive, promete causar problemas mais sérios. As discussões entre norte e sul irão se acentuar porque, mesmo antes da secessão, este já é um dos pontos nevrálgicos nas péssimas relações entre as partes. Nunca é demais lembrar que a guerra civil entre milícias do país causou a morte de cerca de 2 milhões de pessoas.

Se os números são sempre trágicos e impressionantes no até agora maior Estado do continente africano, os desafios para o futuro novo país são igualmente catastróficos: apenas 25% dos futuros cidadãos são alfabetizados; somente 48 quilômetros de estradas têm pavimentação. O fluxo de pessoas retornado do norte em busca de suas origens é enorme. Mas a animação momentânea promete se transformar em decepção quando este grande contingente perceber que a infraestrutura é mínima. O Sudão do Sul, definitivamente, não é uma terra de oportunidade, apenas um projeto distante de país.

E nada impede que uma das primeiras notícias após a independência seja uma nova guerra, deste vez institucionalizada. A futura região de fronteira entre norte e sul é um problema real. Conhecida como Abyei, ela não é rica apenas  em petróleo, mas em cobre, diversos tipos de minerais e vida selvagem. Para completar, existe uma forte disputa étnica entre a população local - os Ngok Dinka, ligados ao sul; e os nômades Misseriya, fiéis ao norte.

O assunto é tão complicado que, para dar fim ao impasse, houve a proposta de um referendo paralelo ao atual que seria realizado apenas para decidir o futuro de Abyei. Mas o projeto não foi adiante porque as partes não conseguiram chegar a um consenso quanto a quem estaria habilitado a participar da votação.

Este é o cenário verdadeiro que transforma a perspectiva do novo Estado em possibilidade de mais uma catástrofe humanitária na África.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Apesar de tudo, Hezbollah mantém poder no Líbano

Não haveria como o Hezbollah aceitar um acordo capaz de mudar os planos do grupo de derrubar a coalizão do governo. As conversas sobre a situação do Líbano eram mediadas por Arábia Saudita e Síria. Comentei ontem sobre as características únicas do Estado libanês e da grande representatividade regional concentradas no pequeno país. Pois bem, se internamente a maior parte das etnias e religiões do Oriente Médio fazem enorme esforço para manter algum equilíbrio, a maior batalha geopolítica regional também está em curso.
 
Foto: estátua de Rafiq Hariri em Beirute
 
Ignorar a disputa entre as coalizões sunita e xiita seria um erro. E ela também teve participação na decisão do Hezbollah de virar a mesa. Se aceitasse o compromisso proposto pela sunita Arábia Saudita, estaria indiretamente colaborando com o jogo norte-americano. Acatar sugestões sauditas era absolutamente inaceitável para o xeque Hassan Nasrallah, líder da milícia xiita. Aliás, é bom lembrar que o atentado ao sunita ex-primeiro ministro Rafiq Hariri tem relações profundas com este mesmo jogo político e sectário que envolve todo o Oriente Médio. Próximo aos mesmos sauditas que ora tentaram forjar um acordo para evitar a dissolução do governo libanês, Hariri continua a ser a pedra no sapato do Hezbollah - mesmo mais de cinco anos depois de morto.
 
É bom que se diga que este tribunal da ONU que causa tanto pavor e ódio à milícia xiita foi convocado pelo próprio governo libanês - e inclui juízes estrangeiros e locais. E, agora, com os resultados divulgados por meio de vazamentos na imprensa responsabilizando o Hezbollah pelo atentado a Hariri, a divisão sectária volta a assombrar o país.
 
O problema para Nasrallah e sua turma é que Hariri era uma das poucas figuras admiradas nacionalmente, mesmo entre os xiitas. Principalmente porque, num país dominado pela cultura do apadrinhamento (e tenho certeza de que os brasileiros sabem muito bem como ela funciona), o fato de o ex-primeiro ministro ser filho de família pobre sem quaisquer conexões políticas prévias o tornou uma espécie de alento nacional. Como Lula por aqui, Hariri deu esperança de que era possível, apesar de tudo, ascender numa sociedade profundamente desigual.
 
Todo este imaginário soa muito mal aos ouvidos do líder do Hezbollah. Principalmente porque o grupo xiita precisa perpetuar o assistencialismo como forma de sobrevivência política. É bom que se diga, no entanto, que há um tanto de simbiose nesta relação. Se o grupo se expandiu com base no assistencialismo e conseguiu ascender politicamente é porque o governo libanês deixou mesmo muitos vazios e carências. E, para completar, esta relação de vazios deixados pelo estado libanês também é a maior arma à disposição da milícia xiita; no final das contas, o poderio militar do Hezbollah é maior que o das forças armadas regulares do Líbano. Este dado final será usado caso o tribunal da ONU insista em divulgar suas acusações. Ou seja, a posição de poder e ameaça do Hezbollah continua garantida.
 

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Reviravolta no Líbano cria clima de apreensão no Oriente Médio

E aconteceu o que todo mundo já imaginava: o Hezbollah assistiu às manobras do tribunal da ONU que investiga o assassinato do ex-primeiro ministro Rafiq Hariri pelo máximo de tempo que o grupo considerou tolerável. Ao perceber que a divulgação de resultados culpando a milícia xiita pelo atentado que vitimou um dos mais populares políticos do país aconteceria em breve, jogou a carta que quebra a banca. Usou suas articulações políticas para reverter a situação a seu favor: retirou os 11 dos 30 ministros que compunham a base de sustentação do governo e, com isso, transformou o destino do país numa grande incerteza. Já havia descrito os possíveis cenários em curso num texto de novembro de 2010 (leia aqui).

O Líbano é uma espécie de microcosmos regional. Em parte porque as populações do Oriente Médio - a exceção de Israel, claro - estão representadas no país: muçulmanos sunitas, xiitas, drusos, cristãos. A proximidade com Israel também favorece os interesses dos demais países em realizar "testes" a partir do território libanês. Irã, Síria, Arábia Saudita e mesmo os EUA procuram influenciar Beirute politicamente.

Por isso é muito importante estar atento aos próximos acontecimentos desta reviravolta. Ela certamente não se restringe à política nacional libanesa. Aliás, não foi por conta dela que as mudanças passaram a tomar curso. O jogo estratégico regional é fundamental para compreender o que vem por aí. Sem a influência síria, Hariri não teria sido assassinado em 2005. Sem o auxílio iraniano, possivelmente o Hezbollah não teria tido fôlego em 2006 para provocar e resistir com firmeza durante a guerra contra Israel. Se ambos os eventos não tivessem ocorrido, a situação hoje seria muito diferente - principalmente porque a principal jogada da milícia xiita seria apenas uma vaga intenção: sua transformação em ator regional relevante.

Por sinal, a crise causada pelos resultados a serem apresentados pelo tribunal da ONU foi percebida pelo Hezbollah como atalho para alcançar mais uma promoção: é chegada a hora de subir um patamar e deixar de ser mero instrumento de provocação aos israelenses ao dispor de sírios e iranianos. Até porque há informações de que o líder do grupo, o xeque Hassan Nasrallah, estaria incomodado por sinais recentes de alguma aproximação entre Washington e Damasco.

A possibilidade da divulgação das descobertas de que militantes da milícia estariam envolvidos no assassinato de Hariri precipitou os planos por uma razão muito simples: por mais que o Hezbollah insista internamente na velha estratégia de culpar Israel por todos os assuntos, a complexa e sofisticada sociedade libanesa ficaria ainda mais dividida. Mesmo que o grupo não perdesse adeptos, certamente perderia ainda mais prestígio político.

Assim, diante do cenário que se apresenta, não ficaria surpreso se o próximo passo em busca da popularidade fosse apostar na velha moeda que costuma surtir efeito: provocar distúrbios na fronteira com Israel e apelar ao discurso de união nacional. O problema é que a oposição ao Hezbollah não parece disposta a arriscar as graves consequências de uma nova guerra contra Israel em nome dos objetivos da milícia xiita. É sobre esta linha tênue que o Líbano deve caminhar no futuro breve.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

ETA abandona luta armada em busca da própria reinvenção

Depois de 52 anos de existência e de causar a morte de 820 pessoas, o grupo separatista basco ETA declarou cessar-fogo nesta semana. A notícia foi dada em tom solene por três de seus representantes. A imagem bizarra dos homens vestidos de preto e rostos anônimos graças a seus capuzes brancos lembra mais uma reunião de dissidentes do não menos condenável Klu Klux Klan. A fotgrafia amplamente divulgada pelas agências de notícias poderia estar impressa em sépia. A importância do ETA, seus objetivos e métodos terroristas estão vinculados ao século passado - pelo menos no mundo ocidental.

Curiosamente, meu primeiro pensamento ao tomar conhecimento da decisão também foi nostálgico. Parou em algum ponto dos anos 1990, em minhas aulas de geografia na escola. Na época, sucessivos e entusiasmados professores davam como certo o fim de grupos como o ETA. O Tratado de Maastricht acabara de ser assinado, a União Europeia constituía suas bases e se apresentava como um inevitável modelo de sucesso. Os rumos políticos ocidentais estavam definidos: os países se uniriam em blocos; as aspirações nacionais dariam lugar ao desenvolvimento através de parcerias.

Mas aí o tempo e a certeza passaram. Até a UE anda cambaleante nesses dias. Países em crise econômica costumam adotar medidas impopulares. Isso vem acontecendo. Junto com a impopularidade, a insatisfação de populações carentes de emprego, renda, educação e, finalmente, governos nacionais. O fim do ETA parece seguir a contramão da tendência de se voltar para as administrações regionais. Curiosamente, no entanto, me parece que o cessar-fogo declarado pelo grupo não está tão distante assim de aspirações locais.

O apoio popular ao nacionalismo basco é cada vez menor. E isso ficou mais evidente durante os anos de vacas gordas da UE . Por que continuar a bater de frente com a rica unidade continental, se os militantes bascos tinham muito pouco a oferecer? Já era possível manter as tradições, estudar e falar basco sem o temor do período franquista, quando a cultura local foi sufocada sem pena. Era melhor entender o governo espanhol como um bom representante, um caminho para a riqueza europeia. E neste ambiente, o nacionalismo basco definhou.

A intenção do ETA ao sugerir ter abandonado a luta armada - "a solução do conflito basco vai acontecer por meio de um processo democrático que considere a vontade do povo basco como seu ponto máximo de referência, e diálogo e negociação como suas ferramentas" - é retomar pelo menos uma centelha do protagonismo perdido. Na prática, o ETA que se desvencilhar do próprio imaginário violento que alimentou com bastante orgulho durante as quatro décadas de atentados.

Para isso, precisa criar um processo vitorioso onde consiga convencer espanhóis, espanhóis-bascos, europeus e o governo espanhol de que pode se transformar num representante basco legítimo. E por conta disso, o partido nacionalista local Batasuna é um ator muito importante. A legenda, banida pelas autoridades espanholas em 2003 por acusações de vinculação ao ETA, está particularmente dedicada em se afastar do grupo. Inclusive, em setembro do ano passado, participou junto a outras facções nacionalistas da assinatura de uma declaração na cidade de Guernica (o que torna tudo ainda mais simbólico), pedindo o fim do ETA.

Como os incautos não tem vez no mundo político, todos esses passos parecem caminhar para um novo patamar do nacionalismo basco, quando o Batasuna - o representante que passará a agregar o movimento regional - seguir toda a cartilha estipulada pelo governo espanhol e, finalmente, conseguir legitimidade. Como em maio deste ano haverá a realização de eleições regionais, o ETA pretende mudar e se transformar definitivamente (?) em Batasuna para continuar a existir.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A frustração nacional americana por trás do tiroteio no Arizona

Acho realmente válido prosseguir um pouco mais com a discussão em torno do tiroteio no Arizona. Não apenas pelo fato em si, mas porque o debate tem se encaminhado para uma reflexão ampla política e social. E quando se trata de algo deste tipo na maior potência do planeta, é impossível negar sua importância. O momento atual gira em torno da busca por culpados pelo episódio. Apontar o dedo para o óbvio e violento protagonista é uma das facetas. Está em curso também uma tentativa de desconstrução intelectual cujo melhor resultado seria encontrar rastros de suas motivações e inspirações políticas.

Como sociedade complexa e altamente sofisticada, é natural que os EUA mergulhem nesta jornada. Há um tanto de luta por superação de traumas passados e presentes nisso. E não me refiro somente aos muitos casos de jovens que foram agentes de tragédias semelhantes em escolas e universidades. Mas existe no foco de toda esta luta para entender o novo episódio violento uma pergunta maior: por que mais uma vez isto acontece enquanto as forças armadas do país continuam a sofrer graves e dolorosas baixas nos esforços militares em Iraque e Afeganistão?

Este é o tipo de questionamento não-declarado, como se o horror do tiroteio no supermercado se potencializasse diante de duas guerras que assolam muitos filhos do país. Nos comentários políticos e nas muitas teorias publicadas na imprensa, existe algo de frustrante, desanimador. O atirador não entendeu o momento; é um jovem que não compreende as muitas dificuldades enfrentadas pelos seus pares. E isso, de fato, é verdade.

Também é verdade que Jared Loughner entende muito pouco da maior parte das complexidades políticas americanas. Fechado em seu confuso mundo de "inspirações", o rapaz é fruto do meio onde vive, como escrevi no texto de ontem. Este é um argumento que não tem como objetivo isentá-lo de punições pelo ocorrido, muito pelo contrário, mas entender que, sendo quem era, ele jamais poderia nutrir algum senso de "compreensão nacional".

Loughner é obcecado pela congressista desde 2007, quando esteve num encontro muito parecido ao do último final de semana e foi ignorado após fazer a seguinte pergunta: "O que é o governo se as palavras não têm significado?". Bom, quem tiver uma resposta à altura, favor compartilhar na caixa de comentários. O fato é que o jovem é descrito pelo amigo Bryce Tierney como uma pessoa sem qualquer ideologia que pretendia simplesmente que a "mídia elouquecesse por tudo isso".

Talvez por conta deste perfil - e dos objetivos vazios do atirador - exista um certo desejo de enquadrá-lo sob qualquer escopo teórico. Como projeto de manutenção da identidade nacional, é muito frustrante notar que mais esta tragédia - com o requinte de ter uma congressista do partido do presidente como uma das vítimas - tem origem na profunda falta de senso político e no grande vazio de ideias que, por mais contraditório que pareça, ocupa boa parte das mentes humanas.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Tiroteio nos EUA: corrida precipitada em busca de conclusões rápidas

O grande debate em curso nos EUA neste momento gira em torno das motivações que levaram Jared Loughner a atirar a esmo em Tucson, no Arizona. No foco dos 17 atingidos pelos disparos está a congressista estadual democrata Gabrielle Giffords. Há a natural politização do atentado e boa parte da imprensa americana embarcou na tese de que o movimento Tea Party é indiretamente culpado pelo acontecido. O radicalismo político que preencheu as eleições legislativas de novembro - e a consequente polarização em torno de temas com imigração e a reforma do sistema de saúde - teria criado uma atmosfera hostil.
 
Particularmente, prefiro esperar mais um pouco para chegar a tais conclusões. É claro que as tensões internas nos EUA afloraram ainda mais neste período eleitoral. Mas culpar o discurso radical do Tea Party - e as consequentes manifestações da biblioteca de imagens usada na campanha - é um tanto exagerado. De certa maneira, é aplicar uma lógica que os próprios americanos tentam não usar para interpretar, por exemplo, os atentados cometidos por fundamentalistas islâmicos. O raciocínio passa por entender os motivos que supostamente explicariam o ato - no fundo, uma forma de fazer um "favor" ao terrorista ao lhe atribuir todo o escopo teórico que, no final das contas, termina por justificar tais atitudes.
 
É bem possível que no final de tudo isso se conclua que Loughner é mais um dos muitos malucos a cometerem atos de violência no país. No entanto, isso não exclui a possibilidade de intrincadas linhas de pensamento que passem por objetivos políticos. Os indícios, inclusive, mostram isso. Mas também apontam que o rapaz de 22 anos de idade tinha suas próprias interpretações - um tanto equivocadas, por sinal - sobre o destino dos EUA. Como tantos outros malucos, acreditava em teorias da conspiração e era aficionado por personalidades distintas como Hitler e Karl Marx.
 
Ao que tudo indica, o jovem é simplesmente uma exacerbação de ícones e ideias políticas. Como todo mundo é fruto do meio onde vive, não se pode ignorar a atmosfera política no Arizona. O estado passou a ocupar as manchetes mundiais após Jan Brewer, o governador do estado, se transformar numa espécie de símbolo da luta contra os direitos dos imigrantes. Uma lei estadual discutida no ano passado permitiria às autoridades locais deportar simples suspeitos de serem imigrantes ilegais. É nesta atmosfera que Loughner vive e, sem dúvida, este não é um fato a ser ignorado. Mas daí a culpar o partido republicano pela decisão do rapaz de planejar e executar um atentado contra um ato comandado pela congressista democrata é, no mínimo, bastante precipitado.
 
Talvez esta tragédia seja uma boa oportunidade para os americanos retomarem importantes discussões, como a venda indiscriminada e legalizada de armamento ou a responsabilidade partidária durante períodos eleitorais. Afinal, por mais que os partidos não sejam culpados por atos como o deste final de semana, não se pode garantir que os ícones de violência exibidos durante a campanha sejam mal-digeridos ou interpretados de forma literal por eleitores perturbados.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Iraque: clérigo xiita retorna de exílio e cenário no país é o pior possível para os EUA

O clérigo radical xiita Muqtada al-Sadr está de volta ao Iraque. Toda a esfera místico-religiosa que cercou seus quatro anos de autoexílio promete ter um tremendo impacto no cotidiano político iraquiano a partir de agora. Segundo ele mesmo disse para quem quisesse ouvir, o período em que esteve na cidade de Qom, no Irã, serviu para que se aprofundasse nas leituras e reflexões religiosas do islamismo xiita. Este é o véu sagrado que encontrou para deixar o país quando seus militantes armados sofriam as piores baixas, e o Iraque era razoavalmente domado pelas tropas americanas. Quando Sadr se foi, o número médio de mortes variava entre três e quatro mil pessoas por mês. Hoje, o número é o mesmo, mas durante todo o ano.
O retorno do líder xiita radical - que já esteve entre os mais procurados pelos EUA - é estratégico e evidencia alguns sinais que podem determinar os traços deste novo país: a possível maior influência do Irã a partir da vitória eleitoral do também xiita primeiro-ministro iraquiano, Nuri al-Maliki; o grande mico em que se transforma o processo de desocupação americana do Iraque.
Sim, após oito anos de presença americana, bilhões de dólares e o desgaste envolvendo a morte de milhares de soldados, o resultado final parece confirmar uma lição que o Oriente Médio não cansa de "ensinar": a construção forçada de pretensas democracias apoiadas por potências ocidentais se transforma, em médio prazo, numa simples transferência de poder a outros ditadores. No caso iraquiano, a situação é bastante óbvia; Washington destituiu o regime de Saddam Hussein e os privilégios concedidos à minoria sunita e transferiu o poder para fundamentalistas xiitas apoiados pelo Irã. Quem quiser interpretar este cenário como uma vitória ocidental, sinta-se muito à vontade para tal.
Para os que ainda têm dúvidas quanto ao futuro da "democracia" iraquiana com a efetiva participação de Sadr, é importante mencionar que Nuri al-Maliki conseguiu seu apoio para a formação da coalizão governamental somente quando aceitou ceder aos partidários de Sadr os ministérios da Justiça e Educação (além de outras seis pastas). Com o controle sobre essas áreas, o clérigo xiita conseguirá difundir preceitos e práticas religiosas radicais, além de manter a lei islâmica em detrimento da legislação laica e, para completar, certamente impedirá qualquer avanço dos direitos femininos.
É bem provável que o movimento militar comandado por Sadr ganhe ainda mais poder no país. E é bem possível que ele se transforme em algo muito similar ao também xiita Hezbollah, do Líbano. Então, para os EUA, o resultado até o momento é o seguinte: a possibilidade do nascimento de um novo Hezbollah, a garantia de uma maior participação iraniana nos destinos políticos do Iraque e o eterno agradecimento xiita pelo serviço americano competente de passar o poder a suas mãos.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Caso Cesare Battisti: entre pragmatismo e ideologia

A decisão do agora ex-presidente Lula de não extraditar o militante Cesare Battisti para a Itália tem motivações políticas. Da mesma forma que a onda de protestos em alguns setores da sociedade e imprensa brasileiras. E tudo me parece muito natural. Longe de mim justificar os assassinatos cometidos por ele no final dos anos 1970. Mas é preciso entender que, como aconteceu nos oito anos de Lula no poder, as decisões externas têm variado entre o pragmatismo e a assertividade. E muitas vezes há componentes ideológicos. No caso, a opção por não extraditar Battisti foi tomada a partir de um parecer técnico da Advocacia-Geral da União (AGU).

Desta vez, o ex-presidente apenas assinou embaixo da recomendação da AGU. Vale ressaltar que o documento de 65 páginas deixa expresso que o melhor a ser feito é mantê-lo no país, uma vez que há "razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados". Ou seja, para ser bem claro, a AGU defende a permanência de Battisti no Brasil como forma de preservar sua vida.

É um argumento a ser levado em consideração. Sem a menor dúvida - e com razão, diga-se de passagem -, o empenho brasileiro de agora não foi o mesmo para, por exemplo, salvar a vida da mulher iraniana condenada a morte. Ou para defender os dissidentes cubanos. É preciso ter em mente dois aspectos em relação a esses casos: em nenhum deles as vidas que corriam risco estavam sob responsabilidade do governo brasileiro. Como política não se baseia somente em boas intenções - e para os que duvidam recomendo a leitura dos incessantes relatórios vazados pelo WikiLeaks -, há diferenças estratégicas. Brasília não esconde seu relacionamento estratégico com Teerã, da mesma forma que tampouco pretende condenar Havana.

Se as boas relações com a Itália fazem parte da orquestração mais ampla de manter linhas de diálogo com todos os países, o parecer sobre Battisti só foi tomado após o esclarecimento de que, juridicamente, manter o prisioneiro por aqui não acarretaria maiores problemas com o governo italiano. E, por mais que os protestos populares digam o contrário, o próprio primeiro-ministro Berlusconi fez questão de assegurar que não, imagina, a amizade entre os países está garantida. Para completar o nó, a União Europeia também deixou claro que não vai se meter no assunto.

Não acredito que exista um projeto nacional de acobertar Battisti. Está muito claro que há setores políticos - que contam com suas ramificações na imprensa, diga-se de passagem - tentando usar essa história para construir a primeira crise internacional do governo Dilma. O Brasil não apenas manteve o italiano preso, como também participou - ao lado das polícias de França e Itália - de sua captura, em 2007. No entanto, acho que a decisão por sua permanência em solo brasileiro foi tomada num momento equivocado, potencializando a atmosfera desgastante desses primeiros dias de governo.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Fundamentalismo investe na desestabilização do Egito

O atentado que matou 21 pessoas em Alexandria, no Egito, na virada do ano pode ter consequências políticas graves. Ainda não se conhece o grupo que realizou o ataque, mas não há qualquer dúvida quanto à participação efetiva - ideológica e prática - do fundamentalismo religioso. Tendo como alvo a principal igreja copta local, o trágico evento mostra as grandes divisões internas no país - que podem se alastrar por todo o Oriente Médio. Os cristãos no Egito correspondem a cerca de 10% da população. A verdade é que jamais o governo se empenhou de fato em protegê-los, mas a situação agora é diferente. O Egito pode ser a bola da vez da al-Qaeda. Esta é inclusive a posição oficial adotada pelas autoridades locais.

Foto: cristãos protestam no Egito

E ela explica até certo ponto a situação. Como já tratei inúmeras vezes, o jogo político regional é dominado por tensões e disputas entre Estados e organizações xiitas e sunitas. O caso egípcio expõe parte da complexidade geopolítica, uma vez que tanto o país quanto a organização terrorista de bin Laden são sunitas. Isso não impede, de nenhuma maneira, que ambos possuam visões e ambições conflitantes. Até porque há outra dicotomia envolvida: o Egito é um dos principais aliados americanos no Oriente Médio.

Outra forma de entender os ataques aos cristãos é recordar a disputa interna do país. No poder há 30 anos, o partido do presidente Hosni Mubarak (Partido Nacional Democrático) venceu as recentes eleições parlamentares sob duras acusações de manipulação de votos. Havia alguma expectativa de que seu filho Gamal o sucedesse no poder, o que ainda não aconteceu. Em meio à frustração local, o extremismo ganha força e adeptos. E justamente um dos mais importantes movimentos radicais do mundo - a Irmandade Muçulmana - representa o principal polo de oposição ao presidente egípcio. O grupo não apenas é o pioneiro do radicalismo islâmico, como também suas ideias são fonte de inspiração para a maior parte das organizações terroristas muçulmanas.

Talvez, o raciocínio radical siga alguma lógica. Se não foi possível mudar o regime egípcio através de eleições, atingir a minoria religiosa mais importante do Oriente Médio seja uma alternativa. E, para completar, deixar cristãos em situação delicada num país cujo governo é apoiado pelo ocidente torna tudo ainda mais constrangedor. Não apenas expõe as fraquezas de Hosni Mubarak diante de seus aliados, como também deixa o presidente egípcio em maus lençóis: num país amplamente muçulmano que tem a prestigiosa organização fundamentalista islâmica como principal opositora ao governo, Mubarak se empenhar em proteger cristãos para acalmar aliados ocidentais vai pegar mal. Muito mal.

Nunca é demais citar que reacender as disputas religiosas regionais é o maior sonhos dos fundamentalistas islâmicos. Principalmente de bin Laden, que, após os atentados de 11 de Setembro, fez questão de citar a expulsão dos muçulmanos da península ibérica, no final do século 15, como um dos motivos para a realização dos ataques.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Fogo no céu: nova disputa entre Alemanha e França revelada pelo WikiLeaks

A divulgação de documentos secretos não terminou. Pelo contrário. Como prometeu o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, o vazamento será contínuo como forma de manter o interesse mundial no assunto. Esta estratégia é muito inteligente. As informações são também cada vez mais constrangedoras para os governos - e mais interessantes para o público apresentado a elas, evidentemente. A novidade agora é a formalização de uma disputa silenciosa, mas que tem colocado em rota de colisão os dois países europeus mais poderosos: França e Alemanha.

No estilo dos roteiros cinematográficos do velho século 20, a Alemanha está em busca da supremacia europeia. Para isso, não apenas a liderança econômica é importante, mas também uma maior participação estratégica na área de segurança. Já de volta ao século 21, uma das formas mais importantes para atingir tal objetivo é a primazia de informação. O que explica a intenção de construir um importante aparato de satélites espiões.

Como os documentos vazados informam, o HIROS (High Resolution Optical System - sistema ótico de alta resolução) dará aos alemães independência de fontes externas para obter imagens. Bom, pelo menos esta é a justificativa apresentada pelas autoridades do país para explicar o investimento de 270 milhões de dólares no projeto.

O fato é que nada é tão simples quanto parece. Em primeiro lugar, o termo "independência" deve ser lido com uma importante restrição: a construção do HIROS é uma parceria entre Alemanha e EUA. Na verdade, o interesse do governo de Berlim é explícito na consolidação do empreendimento ao lado dos americanos: ter acesso à ampla cobertura que Washington já realiza de Irã, Coreia do Norte e movimentos de grupos terroristas em Paquistão e Afeganistão.

Do ponto de vista dos EUA, a parceria é muito produtiva sob todos os aspectos: a aliança com a maior potência europeia pode ser interpretada como uma forma de estabelecer importante conexão europeia, ao mesmo tempo em que mantém as possíveis ambições alemãs sob controle. Afinal, as rivalidades históricas entre os dois países não são esquecidas geopoliticamente. E a ainda positiva situação econômica de Berlim - ou menos negativa, se comparada aos demais membros da União Europeia - poderiam incentivar a Alemanha a dar passos militares mais ousados.

Esta relação próxima entre EUA e Alemanha incomoda profundamente a França. Segundo os documentos revelados, os franceses fizeram de tudo para inviabilizar o projeto. De acordo com oficiais entrevistados, o empenho francês em melar a parceria se deve ao monopólio que a indústria do país mantém no mercado de imagens eletro-óticas. Esta é uma explicação, mas não a única.

Acredito que o caso envolvendo a construção do sistema é apenas mais uma expressão da disputa entre franceses e alemães no continente europeu. É claro que Paris sabe da liderança exercida por Berlim, mas pretende marcar território, como se quisesse minimizar prejuízos, impedir que a Alemanha dê mais um salto adiante. Operar satélites em conjunto com os americanos - e excluir a França, obviamente - seria um golpe duro demais a ser assimilado.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Vade retro, 2010

Primeiro dia útil de 2011. Ainda sob ressaca nacional, é hora de recomeçar o ciclo. Pensando sobre o ano que passou, consigo resumi-lo com facilidade: um grande acontecimento; uma grande perda. Mas esta é somente a forma de enxergar pessoalmente 2010. Cada um tem a sua própria.

Do ponto de vista internacional, o ano é um desses que não deixam dúvidas sobre sua importância. Será lembrado para sempre por tantos eventos, mudanças, catástrofes e até atos heroicos. Baseado na experiência da revista Foreign Policy, estabeleci os principais acontecimentos do ano passado. Para não extrapolar qualquer limite de espaço, decidi somente citar fatos, uma vez que a maior parte deles já foi amplamente discutida aqui no site. Este é um ranking dos dez principais acontecimentos. Vamos a eles:

- WikiLeaks passa a divulgar 250 mil documentos secretos do Departamento de Estado americano

- Em 13 de outubro, os 33 mineiros chilenos são resgatados após mais de dois meses

- Eleições parlamentares nos EUA alteram a balança de poder e dão controle da Câmara aos republicanos

- Cerca de 300 mil haitianos morrem devido a terremoto de sete graus na escala Richter que atingiu o país

- Milhares de voos são cancelados na Europa quando o vulcão islandês Eyjafjallajskull entra em atividade

- Flotilha turca tenta furar o bloqueio em Gaza. Nove militantes a bordo morrem em confronto com soldados israelenses que abordam o navio Mavi Marmara

- Em torno de 10% da população paquistanesa passa necessidades básicas por conta das fortes chuvas e inundações que atingem o país


- Iraquianos vão às urnas, em sete de março, para eleger o novo parlamento. Somente no início de outubro, no entanto, o primeiro-ministro, Nuri al-Maliki, consegue formar um governo de coalizão


- Explosão afunda sonda perfuradora da BP no Golfo do México, provocando o pior vazamento da história dos EUA - o acidente espalha 780 milhões de litros de petróleo no mar


- Em 16 de agosto, a China ultrapassa oficialmente o Japão e se torna a segunda maior economia do mundo

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