quinta-feira, 27 de março de 2014

Crise na Ucrânia: saldo e débito de dois dos principais líderes internacionais

Já ao término desta crise na Ucrânia, duas pesquisas sobre aprovação popular aos presidentes Putin e Obama dão uma ideia interessante sobre como os cidadãos comuns de Rússia e EUA interpretaram a atuação de suas lideranças políticas. 

Levantamento do All-Russian Center for Public Opinion mostra que a aprovação a Putin chegou a 71,6%, o maior índice desde que ele retornou (ou retomou, o que também é apropriado) à presidência, em 2012. Já nos EUA, de acordo com pesquisa da CBS News, o trabalho de Obama especificamente na área de política externa é aprovado por somente 36% dos entrevistados. É importante dizer que os dois levantamentos têm naturezas distintas: o russo quis saber a aprovação de Putin, o americano estava interessado somente na avaliação da política externa do presidente Obama. 

De qualquer maneira, achei curioso comparar os índices, mesmo com essas diferenças. Até porque, no caso de Putin, o apoio a seu governo e a ideia positiva que os russos passaram a ter dele derivam diretamente de dois eventos intimamente relacionados aos assuntos internacionais: a realização das olimpíadas de inverno e, claro, a anexação da Crimeia e todo o discurso nacionalista que, segundo Putin, serviu para justificar este grande passo geopolítico. 

A interpretação das respostas dos entrevistados russos é bem mais simples, considerando o ambiente de “defesa da identidade russa contra a ambição ocidental”. Foi essa a campanha governamental e também da imprensa aliada ao Kremlin. O discurso foi poderoso e eficiente o bastante para conquistar os corações de maior parte da população russa. O sucesso desta empreitada está refletido neste índice de apoio a Putin. O caso americano é mais complexo, mas é possível explicá-lo. Diante das últimas ações internacionais americanas (guerras de Iraque e Afeganistão e intervenção na Líbia), os cidadãos americanos consideraram ter pago um preço alto demais (financeiro e humano) para tratar de assuntos que não dizem respeito aos EUA. 

Basicamente, a Ucrânia é mais um caso similar. Independente do que seu governo faça, os americanos continuam a ver a Ucrânia e a Crimeia (assim como já aconteceu com Iraque, Afeganistão e Líbia) como questões distantes e com possibilidade de, novamente, serem forçados a pagar um preço alto demais por algo com que não se identificam. Obama ainda sofre com índices baixos de aprovação quando o assunto é política internacional em função deste passado recente do início do século 21. 

terça-feira, 25 de março de 2014

Acomodação na Ucrânia

A crise ucraniana não vai dar em nada. Quer dizer, quem esperava guerra vai ter que continuar esperando. A Rússia anexou a Crimeia e vai ficar por isso mesmo. De forma muito pragmática, os envolvidos decidiram optar por discursos bonitos, promessas de ajuda mútua, sanções e nada além disso. Esta era a forma como enxergava a situação desde o começo. Diante dos não-acontecimentos após a decisão de Putin de tomar parte do território ucraniano, a Polônia é o país mais receoso – por mais que UE e EUA tenham prometido que não, não aceitarão de nenhuma maneira novas ambições russas sobre a antiga Cortina de Ferro. Este é o novo limite.

As chamadas “linhas vermelhas” têm mudado seu traçado cada vez mais, de forma a justificar a falta de disposição ocidental para entrar em novos conflitos. Não sem razão, claro. Comprar a briga alheia anda muito caro nesses novos tempos de crise econômica. Enfrentar a Rússia e a disposição de Putin de defender “a população russa” pelo mundo é o tipo de guerra que não leva a lugar algum. Pior para a Ucrânia. E a solução encontrada pela UE pune os ucranianos duplamente: só há defesa conjunta aos membros da Otan. Se a Ucrânia tivesse se aproximado do Ocidente antes, poderia contar agora com o aparato militar da organização. Como não o fez, está por conta própria, azar. 

De qualquer maneira, vale dizer que a tendência agora é de acomodação. No encontro dos países do G7 em Haia, oficiais europeus e americanos deixaram claro que não houve pressão por sanções econômicas mais amplas ao governo Putin. Mas todos concordaram que, se a Rússia decidir intervir no leste ou no sul da Ucrânia, aí sim haverá pressão internacional por punições firmes a Moscou. Deu para entender?  

segunda-feira, 24 de março de 2014

Na crise da Ucrânia, cada lado usa a história europeia como convém

Durante este processo todo na Ucrânia, é interessante notar como questões existenciais europeias voltaram a ser usadas com toda força para justificar este ou aquele lado. Desde o começo, Putin fez de tudo para convencer a opinião pública russa de que grupos nazistas eram os verdadeiros responsáveis pela derrubada do presidente ucraniano. Para o presidente russo, as potências ocidentais estavam iludidas ou pouco esclarecidas, mas, principalmente, estavam dispostas a qualquer aliança para impedir a aproximação da Ucrânia com a Rússia. 

Escrevi sobre a participação de grupos neonazistas na violência da praça Maidan, em Kiev. De acordo com os opositores locais ao nazismo, os anarquistas, os nazistas correspondiam a no máximo 30% do contingente envolvido nos protestos. E, claro, a maior parte dos manifestantes nada tinha a ver com isso e suas demandas políticas eram independentes do discurso da extrema-direita. A polarização foi a maneira encontrada por Putin para defender sua atuação. E foi o argumento comprado também pela imprensa russa comprometida com seu presidente. Como observação, é importante deixar claro que o presidente russo costuma fechar os olhos para eventuais desaparecimentos de jornalistas que, obviamente, se equivocam ao se opor ao governo. 

Ainda em relação à memória da Segunda Guerra Mundial e sua influência na análise dos acontecimentos na Crimeia, é interessante ver o outro lado. Enquanto Putin busca justificar as ações russas como forma de contenção ao que considera papel central do nazismo na política ucraniana, o historiador, jornalista e escritor britânico Max Hastings faz o oposto; as ambições de hitler e o histórico da guerra são pilares para questionar a política russa atual:

“Sejam quais forem os argumentos para (defender) a secessão da Crimeia – e alguns são válidos –, a agressão armada de Putin, sob ameaças de mais (intervenções), se amparam exatamente nos mesmos argumentos usados por hitler para justificar suas investidas sobre Checoslováquia e Polônia em 1938-39”. 

quarta-feira, 19 de março de 2014

A resposta ocidental aos avanços de Putin

Escrevi na última segunda-feira sobre o temor da Polônia a partir da crise da Crimeia. O país é um dos mais interessados nos desdobramentos, porque se considera ameaçado pelas próximas ações russas. 

Não por acaso, foi justamente em Varsóvia que o vice-presidente americano, Joe Biden, esteve no começo de um giro pela Europa oriental de forma a garantir aos aliados que eles estão sob proteção. Por mais que haja promessas, envio de aviões de combate e treinamentos militares conjuntos, o primeiro-ministro polonês, Donald Tusk, reforçou o posicionamento geopolítico de seu país: “este desafio que estamos enfrentando não vai durar um mês ou um ano. Estamos diante de uma perspectiva estratégica para muitos anos que virão”. Como escrevi no texto de segunda, a Polônia não considera a Rússia uma ameaça passageira, mas um incômodo permanente cujas ambições, cedo ou tarde, entrarão em conflito com os interesses poloneses. 

Os EUA sabem disso. Da mesma forma, querem evitar um conflito a todo custo com os russos. Pragmaticamente, neste momento, EUA e União Europeia pensam numa maneira de passar adiante a crise da Crimeia sem que se consolide a imagem de que a Rússia pode fazer o que bem entender. O primeiro passo já foi dado nesta terça-feira mesmo. Joe Biden disse que “o compromisso americano de defender seus aliados da Otan é ‘ironclad’ (termo que significa puramente “recoberto de ferro”. Dá ideia de um compromisso que não será rompido em qualquer tempo)”. O vice-presidente disse ainda que americanos e europeus esperam que a Otan saia ainda mais fortalecida após a crise atual. Deu para entender a mensagem? 

Na prática, este foi um aviso a quem quiser entender de que EUA e UE não estão dispostos a uma guerra com a Rússia. O que é uma decisão absolutamente racional, na medida em que europeus e americanos têm se dedicado neste século a travar guerras duras, caras e que têm se tornado cada vez mais difíceis de serem pagas e justificadas em seus próprios países. E disse que a declaração de Biden foi um recado claro por uma razão simples: o fortalecimento da Otan tem a ver com os aliados americanos na Europa oriental, mas não com a Ucrânia. E isso porque, para azar do atual governo ucraniano, o país não é membro da Otan. Então, na prática, o que UE e EUA estão fazendo é deixando claro quais os limites de atuação de Putin. Se a tomada da Crimeia foi inevitável, que ele se contente com este território e não se aventure sobre os aliados do ocidente na região. 

terça-feira, 18 de março de 2014

Para Putin, Crimeia já é oficialmente parte da Rússia. E agora?

Depois de assinar o tratado que reconhece oficialmente a Crimeia como parte da Rússia, chegou a hora de pensar as consequências deste ato. Antes, porém, acho válido fazer um questionamento simples: num mundo onde tudo acontece muito rapidamente, alguém imaginava que a derrubada do presidente ucraniano por manifestantes insatisfeitos com a retirada das negociações para adesão à União Europeia resultaria no desmembramento de parte da Ucrânia? 

Pode parecer distante, pode parecer que isso nunca aconteceu, mas a verdade é que o ódio popular inicial em Kiev girava em torno do destino do país como um todo. Para ser muito direto, a ideia era integrar a Ucrânia à UE. Com isso, os cidadãos imaginavam que teriam acesso aos produtos, serviços, mercados e territórios do bloco. O sonho da UE ainda se mostrava poderoso o suficiente para levar milhares de pessoas às ruas insatisfeitas com um presidente que lhes havia negado esta chance – mesmo numa realidade conhecida em que a Europa enfrenta grave crise há seis anos. Mas aí tudo mudou. Hoje o que está na pauta de discussões é a disputa aberta por territórios. 

A razão inicial das manifestações foi relegada a segundo plano. A forma como Moscou interpreta as relações internacionais e seu próprio papel geopolítico se sobrepuseram às razões primárias de descontentamento popular de boa parte da população ucraniana. A situação agora é tão grave que há uma escalada aberta do grande jogo político internacional cujas consequências podem – e possivelmente devem – ser dramáticas. Reproduzo abaixo a opinião de Jochen Bittner, editor político do semanário alemão Die Zeit:

“Assim como quando ocorreu a desintegração da Iugoslávia, a população da Crimeia está sendo obrigada hoje a escolher fidelidades nacionais. Apesar de estar claro desde o começo que o chamado referendo só poderia resultar na união com a Rússia, a paixão com que pró-russos e pró-ucranianos têm argumentado sobre suas posições surpreendeu a ambos os lados. Estamos assistindo na Crimeia – e também na região leste da Ucrânia, onde pró-russos passaram a reclamar seus próprios referendos – à ascensão de duas nações dentro de um único Estado”. 

O que Biter quer dizer é que há riscos reais de secessão da integralidade do território ucraniano. Ou seja, as populações do país podem decidir, aos poucos ou de uma vez só, criar seus próprios Estados tendo como base suas identidades nacionais. Isso pode levar à construção de novas fronteiras não apenas no que hoje é a Ucrânia, mas também em boa parte da Europa oriental. E, claro, as potências ocidentais – UE e EUA – não vão ficar de plateia neste processo. A Rússia já deixou muito claro que está disposta a defender seus próprios interesses nacionais, tendo como prerrogativa básica a ideia de encampar as populações que se identificarem como parte da nação russa.  

segunda-feira, 17 de março de 2014

Na Crise da Ucrânia, a Polônia é a protagonista silenciosa

A Crimeia quer ser anexada à Rússia. Este é o resultado do referendo deste domingo. Já no dia seguinte, a repercussão prática das partes que não aceitam a legitimidade do pleito: sanções internacionais de EUA e União Europeia. De acordo com pronunciamento de Barack Obama, as medidas têm como alvo 11 oficiais russos e ucranianos – dois deles conselheiros próximos ao presidente Putin. 

Esta é uma guerra – por enquanto barulhenta e movimentada, mas não armada – baseada em realismo político. Se isso não está claro o bastante, vale dar uma lida no comunicado oficial da Casa Branca: “(as atividades russas) têm como objetivo enfraquecer processos e instituições democráticas na Ucrânia; ameaçar a paz, (sua) segurança, estabilidade, soberania e integridade territorial; e contribuir para a apropriação de seus ativos e, portanto, constituem incomum e extraordinária ameaça à segurança nacional e política externa dos Estados Unidos”. Ou seja, Washington considera as ações de Moscou como ameaçadoras não apenas aos ucranianos, mas também diretamente aos interesses norte-americanos. 

O Conselho de Política Externa da UE seguiu Obama e foi adiante com sanções. São restrições à movimentação de pessoas e bens de 21 oficiais de Ucrânia e Rússia. O foco principal dessas medidas – americanas e europeias – é o isolamento do regime russo. A ideia é mandar uma mensagem clara a Putin e impedi-lo de ampliar sua ambição final de criar uma zona de proteção ao território do país (pelas razões que expus nos textos anteriores). A Rússia considera fundamental retomar para si parte do que perdeu com o fim da União Soviética (não estou brincando). Considerando-se sob permanente ameaça externa, a Europa Oriental é seu alvo prioritário. Os atuais Estados independentes da região nunca se sentiram tão apavorados como agora, justamente porque enxergam na anexação da Crimeia uma espécie de primeiro passo para as ambições futuras de Moscou. 

Diante da fragilidade dos vizinhos (Estônia, Letônia, Lituânia, Bielorrússia, Moldávia, Bulgária e mais a Geórgia do outro lado do Mar Negro), a Polônia é o país que mais teme as consequências do impasse na Ucrânia. Podem ter certeza de que é o governo polonês o principal articulador das reações da União Europeia e a dos EUA. 

terça-feira, 11 de março de 2014

Os temores de Putin

Há grande incompreensão sobre as ações russas na Crimeia. A própria imprensa não consegue explicar as razões de Putin ter invadido o território. Por mais que o presidente russo tenha criado a justificativa bacana de proteção aos interesses de seus cidadãos na Ucrânia, esta não é a verdade. E este impasse retórico cria a principal dificuldade de um acordo. Para que fique claro, no entanto, não é um problema específico da imprensa, mas dos líderes envolvidos. Eles sabem quais os reais motivos, mas, por alguma razão, ainda preferem mantê-los em segredo. 

O kremlin está agarrado à Crimeia devido ao conceito que rege a política externa do país de que as alianças com os ex-membros da União Soviética são fundamentais para proteger a Rússia fisicamente. Escrevi sobre isso na semana passada. Li um artigo na revista alemã Der Spiegel que questiona as razões de Putin. E as perguntas são brilhantes:

“O que Vladimir Putin quer? Ele quer anexar a Crimeia ou até mesmo o leste da Ucrânia ou talvez controlar outros territórios ao longo da fronteira da Rússia? E essas são ações de um lutador encurralado ou ele realmente acredita ser capaz de criar a reencarnação moderna da União Soviética?”. 

Disse que as perguntas são brilhantes por uma razão simples; elas são as respostas para boa parte do que está acontecendo. 

quinta-feira, 6 de março de 2014

Os anteparos russos

Há uma especulação que corre em segredo entre lideranças europeias de que os atiradores de elite responsáveis pelo assassinato em massa de manifestantes em Kiev estariam a serviço da oposição política ucraniana, não do presidente deposto, Viktor Yanukovych. Isso é estranho. É mais uma das muitas camadas de informação desencontradas que certamente ainda irão surgir. Se for verdade, é traço de uma maldosa artimanha. Por enquanto, por mais que tenha sido descoberta por meio de um vazamento de conversa telefônica, não passa de especulação. Mas já se transformou em amparo argumentativo da imprensa russa – a imprensa que joga junto com o presidente Putin, uma vez que a imprensa independente é punida por ele. 

Pensando em formas de solucionar o impasse, li um posicionamento interessante de Henry Kissinger, secretário de Estado dos EUA entre 1973 e 1977. “a política americana inteligente para a Ucrânia procuraria um caminho para que as duas partes do país cooperassem entre si. Deveríamos procurar reconciliação, não dominar uma das facções”. Ele se refere ao equacionamento das necessidades do leste e do oeste do território, sendo bastante genérico sobre a divisão ucraniana. O problema de Kissinger é o que ele lista como o segundo ponto rumo à solução:

“a Ucrânia deveria ter o direito de escolher livremente suas associações políticas e econômicas, inclusive com a Europa”. Kissinger chama a Europa Ocidental, e a União Europeia (UE) em particular, somente de “Europa”. Mas aí é que está o traço de ingenuidade de Kissinger – se é que existe algo como ingenuidade em Kissinger. Na verdade, discordo dele porque imaginar que a Rússia irá permitir que a Ucrânia se associe à UE é, na verdade, o foco da problemática atual. É justamente isso o que Moscou mais teme. E toda esta confusão está acontecendo justamente porque a Ucrânia quer se associar à “Europa”, como Kissinger escreve. Putin não admite isso porque considera que a Rússia precisa de territórios que lhe protejam contra a “Europa”. A Ucrânia e os demais estados que os russos consideram como de sua esfera de influência servem ao Kremlin como parceiros econômicos, claro. Mas não se pode esquecer que o foco principal desta relação especial é o interesse estratégico da Rússia em manter empecilhos à sua própria fragilidade. Sem  grandes barreiras geográficas, a Rússia vê os países orientais da Europa como anteparos físicos. 

Por isso, imaginar que Putin irá abrir mão da Ucrânia – e, pior, permitir que ela se associe à “Europa – soa como uma solução que, na prática, é inviável sob o ponto de vista russo