quinta-feira, 30 de abril de 2015

Acontecimentos em Baltimore exigem reflexão mais profunda sobre divisão social nos EUA e também no Brasil

Baltimore é a cidade mais populosa do estado de Maryland. Em Baltimore, mais uma vez, uma onda de protestos originados a partir da morte de um jovem negro levou os EUA a refletirem novamente sobre as divisões de raça (muito embora, de maneira mais ampla, o conceito de raça não exista, mas esta é outra história). Desta vez, Freddie Gray, um rapaz negro de 25 anos de idade, foi morto enquanto estava sob custódia policial. As circunstâncias estão sendo investigadas. A morte de Freddie Gray se soma às de outros jovens negros americanos ocorridas num curto período de tempo: Trayvon Martin, na Flórida; Michael Brown, Missouri; Eric Garner, Nova Iorque; Tamir Rice, Cleveland; Walter Scott, Carolina do Sul.

Em comum, o desequilíbrio na abordagem e tratamento violento destinado aos jovens negros e moradores de regiões e bairros pobres. Em Baltimore, no entanto, vale fazer a observação de que não se trata de uma cidade onde negros estão distantes da polícia e do poder municipal. A prefeita é negra, assim como 63% dos moradores e 40% dos policiais. Ao contrário de muitos dos casos listados acima, não se pode creditar a morte de Freddie Gray a um eventual distanciamento entre policiais e políticos brancos e cidadãos negros. Em Baltimore, esta equação não é exatamente simples. Na cidade, assim como em muitas outras dos EUA (e do restante do continente americano, para ser mais preciso), a pobreza é a causa da criminalidade, da falta de emprego e da licença velada para abordagens violentas a jovens pobres. Aliás, tanto lá como no Brasil. A forma como a polícia brasileira conduz investigações e aborda jovens pobres na periferia é muito conhecida por aqui também. 

Michael Eric Dyson, professor de Sociologia em Georgetown, lembra dados que ajudam a entender a origem do problema em Baltimore. Freddie Gray vivia numa comunidade onde o desemprego ultrapassa 50%, a evasão escolar é de 49,3%, e a expectativa de vida é de apenas 68.8 anos (exatamente dez anos menos que a média americana). É claro que, diante de mais esta crise (para muita gente, “racial” – as aspas se devem às minhas observações do primeiro parágrafo), as atenções se voltam para o presidente Obama. Ao contrário do que muitos podem pensar, Obama é sempre cauteloso em comentários sobre assuntos como este. Isso porque ele é presidente dos EUA, o que implica em ser um líder nacional de todos os americanos, e não uma liderança política de um segmento da sociedade. É a postura de alguém que tem bastante bom senso em relação ao cargo – o que não quer dizer que, intimamente, este não seja um tema que o comova.  

“Desde Ferguson (onde Michael Brown foi assassinado)(...), temos visto exemplos demais do que parecem ser policiais interagindo com indivíduos, principalmente afro-americanos – muitas vezes pobres –, de maneiras que levantam questões preocupantes. E esses casos parecem aumentar”, disse. 

Esta foi a forma encontrada para responder aos acontecimentos sem provocar ainda mais divisões sociais. A tendência é que o presidente americano recorra ao Congresso, pleiteando a criação de mais iniciativas educacionais, reforma do sistema judicial,  criação de empregos para ex-presidiários e muitas outras medidas progressistas que têm marcado a agenda de Obama em sua carreira política doméstica. 

domingo, 26 de abril de 2015

O terremoto no Nepal e as crises humanitárias de nosso tempo

A tragédia do terremoto no Nepal se assemelha aos igualmente trágicos eventos no Mar Mediterrâneo sobre os quais escrevi no último post. Os dois acontecimentos encontram paralelo também com a guerra civil na Síria e também com todas as grandes catástrofes humanitárias de nossos tempos. Por mais que no Nepal a natureza seja a responsável pelo terremoto, não se pode esquecer que a humanidade carrega sua dose de culpa. A guerra civil síria, as mortes no Mediterrâneo e a escalada na contagem dos mortos no Nepal têm em comum a incapacidade das lideranças internacionais de encontrar soluções para conflitos e para a pobreza em larga escala, esta a maior tragédia de todas.

Como no Mediterrâneo, agora as líderes mundiais não têm muito que fazer a não ser buscar doações e dedicar esforços para amenizar parte das consequências. É bom deixar claro que não há teorias conspiratórias, ninguém tem culpa do que aconteceu no Nepal. Da mesma maneira, em 2010, ninguém foi culpado pelo terremoto no Haiti que deixou mais de 100 mil mortos. Mas não há dúvidas de que, se não fosse a pobreza extrema, não haveria 100 mil mortos no Haiti, da mesma forma que os números finais de mortos no Nepal (ainda em contagem) seriam menores. O Nepal inclusive tem como agravante o passado recente de uma década de guerra civil (1996-2006) responsável por 17 mil mortos e 100 mil deslocados.  Uma guerra civil com a qual ninguém se importou minimamente, é bom dizer.

Nepal, Síria, Haiti, Líbia e as águas do Mediterrâneo trazem a recordação das Metas do Milênio ratificadas por 189 países-membros da ONU em 2002 e cujos resultados deveriam ser atingidos até 2015. O primeiro ponto do compromisso internacional era erradicar, até este ano, a extrema pobreza e a fome. Isso não aconteceu. Há outros sete outros pontos dedicados a melhorias nos índices globais de educação, saúde, igualdade de gênero e meio ambiente. Houve poucos progressos em escala global. Há países na África que estão melhorando índices, mas que não deixam de ser o ponto de partida de milhares de migrantes que acabam por morrer no Mediterrâneo. 

A explicação para isso pode estar numa conclusão da jornalista Michela Wrong, da Foreign Policy: “eles (os migrantes) querem ter a chance de melhorar em suas próprias vidas, não promessas de uma utopia distante”. Acho que isso diz muito sobre as Metas do Milênio, muito embora considere que um compromisso internacional pacífico seja algo louvável. No entanto, as últimas tragédias mostram que há milhares de pessoas sem tempo para esperar. 

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Europa não sabe como responder às mortes de imigrantes no Mediterrâneo

Após as mortes de mais de 800 pessoas que tentavam chegar à Europa viajando numa balsa no Mediterrâneo, a imigração ilegal passou ao topo da lista de prioridades na agenda internacional.  Não era para menos. Para quem pensa que questões humanitárias podem estar no centro da discussão, sugiro pensar novamente. Há dois aspectos envolvidos neste assunto: a abordagem da Europa à imigração ilegal em tempos de crise, e a falência nacional de Líbia e Síria.

Por circunstâncias geográficas, a Itália está à frente da reunião que foi realizada nesta quinta-feira em Bruxelas. A península italiana é a porta de entrada para imigrantes africanos, principalmente os que partem da Líbia. Se em outros tempos o Ocidente imaginou que Kadafi havia sido enquadrado e a Líbia se reconciliado com a comunidade internacional, o ano de 2011 e os eventos que se sucederam deixaram evidente o contrário. Não apenas Kadafi foi morto nas ruas do país como também o processo de Primavera Árabe ocorrido por lá serviu tão somente para desmembrar o Estado líbio. Não há quaisquer garantias de que a situação será resolvida. E é justamente da Líbia que partiu a balsa que matou mais de 800 pessoas nas águas do Mediterrâneo.

De forma exponencialmente mais dramática, a Síria é outra grande “fornecedora” de imigrantes. O país comandado por Bashar al-Assad entrou em ebulição naquele mesmo ano de 2011. E, assim como na Líbia, ainda não se sabe quando – e se – haverá uma Síria após a guerra civil que já causou mais de 200 mil mortes e 4 milhões de refugiados. Paira sobre a situação síria constrangedor silêncio internacional.

Mas a conferência dos líderes europeus em Bruxelas teve como foco principal o sintoma, não a causa. Como resultado do encontro, a promessa de triplicar o orçamento para patrulhar o Mar Mediterrâneo e destruir as embarcações piratas, inclusive os portos de ondem partem. Os países europeus brigam para chegar a conclusões sobre quantos imigrantes poderão receber. Como exemplo desta situação que beira a surreal, o presidente francês, François Hollande, disse estar disposto a receber entre 500 e 700 sírios. De acordo com dados da agência da ONU para refugiados (UNHCR, em inglês), somente em 2014 cerca de 150 mil sírios se tornaram refugiados “oficiais”, ou seja, deram entrada no pedido formal de asilo. 

Para ilustrar os problemas que ainda estão por vir, vale retornar ao primeiro aspecto mencionado neste texto. A situação de caos institucional na Líbia pode voltar a atormentar os Estados europeus. Com o país falido – e politicamente dividido entre dois grupos rivais –, a Europa deve enfrentar novo problema. Isso porque, se levar adiante a ideia de atacar os portos líbios, pode sofrer resposta militar do grupo que governa paralelamente o país. Mohammed el-Ghirani, ministro das Relações Exteriores da facção que faz oposição ao governo líbio reconhecido pela comunidade internacional, diz que irá confrontar qualquer ofensiva europeia. Segundo ele, o governo líbio (o paralelo) já teria tentado oferecer alternativas para lidar com os imigrantes que partem do país, mas todas as propostas foram desprezadas.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Arábia Saudita ainda não obteve sucesso a partir da ofensiva no Iêmen

A intervenção militar dos Estados do Golfo no Iêmen ainda não conseguiu apresentar resultados práticos aos sunitas. Com o passar do tempo, inclusive, a situação começa a ficar delicada à Arábia Saudita, principal articuladora da ação e também o país mais interessado em disputar a hegemonia regional com o Irã em nome do eixo sunita. Um dos argumentos dos sauditas era de que um acordo ocidental com o Irã causaria uma corrida armamentista nuclear no Oriente Médio. Isso até pode vir a acontecer, mas a alternativa de recorrer ao aliado Paquistão não se concretizou.

Paquistão e Arábia Saudita mantêm, de fato, aliança de longa data. O próprio atual primeiro-ministro paquistanês, Nawaz Sharif, foi abrigado pela Arábia Saudita após sofrer golpe militar do general Pervez Musharraf em 1999. Em função disso tudo, os sauditas contavam com a ajuda de Islamabad, principalmente porque o Paquistão já detém armamento nuclear. Tanto que no início da empreitada militar no Iêmen a imprensa saudita (imprensa controlada pelo governo, é bom ser claro) declarava que o Paquistão participaria da ofensiva. Isso não aconteceu. O primeiro-ministro Sharif transferiu a responsabilidade da decisão ao parlamento que, por sua vez, aprovou resolução mantendo a neutralidade paquistanesa - embora expresse apoio incondicional aos Estados do Golfo e à integralidade territorial saudita. Este ponto, inclusive, não quer dizer muito, na medida em que a Arábia Saudita iniciou a ofensiva ao Iêmen e, aparentemente, não há evidência de que seu território esteja de alguma maneira sob ameaça. 

Para completar, o acordo entre as potências ocidentais e o Irã foi aprovado em termos mais abrangentes e, para azar os Estados do Golfo, a opinião pública ocidental recebeu os avanços do diálogo com entusiasmo. Assim, não apenas a ideia de mandar um recado militar ao Irã não atingiu o objetivo mais amplo de provocar um grande debate internacional sobre as ambições regionais da República Islâmica. Por ora, o Irã está mais fortalecido e o apoio dos aliados principais dos sauditas nesta questão (o Paquistão pela questão nuclear, e os EUA pelo histórico de sua política externa no Oriente Médio) está adormecido. 

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Hillary Clinton tem as maiores chances entre os democratas

Ainda é muito cedo para cravar que Hillay Rodham Clinton será a candidata democrata à presidência americana nas eleições do ano que vem, mas é importante analisar alguns dados sobre a pré-candidata que já permitem imaginar como seria a sua diretriz política no cargo. Como membro do partido Democrata, Hillary tem um olhar mais progressista. Ninguém pode saber ao certo como será a abordagem de Clinton a assuntos importantes, como economia ou política externa, mas é possível dizer que deve dar continuidade ao posicionamento de Obama. 

Na economia, deve optar por caminho mais assertivo que o liberalismo pragmático dos republicanos. Após a grande crise econômica de 2008 – e da lenta recuperação em curso dos EUA –, os democratas reforçaram a visão de que simplesmente deixar o mercado se regular sem qualquer intervenção – mesmo que mínima – é um risco que não deve mais ser assumido. O golpe econômico foi pesado, e a culpa, de maneira bem explícita, acabou recaindo sobre Wall Street – o mercado em sua versão mais hiperbólica. Hillary tem esta visão sobre a abordagem econômica. 

No campo internacional, a situação é mais complexa. Hillary é vidraça em qualquer debate com os republicanos. Isso porque, mais do que nunca, esses 14 anos de mudança de paradigma geopolítico após setembro de 2001 impuseram desafios aos EUA que aprofundaram as divisões conceituais e ideológicas entre os dois principais partidos do país. Para completar, Hillary foi secretária de Estado do atual governo e enfrenta investigação sobre sua conduta no cargo – nada que aos padrões brasileiros seria considerado escandaloso, mas não há dúvidas de que a colocará em posição defensiva nos debates (nas primárias democratas e também após possível escolha partidária e diante do adversário republicano). 

Hillary também articulou o caminho que acabou concretizando – até o momento – o pré-acordo com o Irã. Mas, ao contrário de Obama, mostra muito mais desconfiança em relação aos iranianos. Ao comentar o frenesi causado pelo pré-acordo, foi cautelosa (“o ‘inferno’ são os detalhes” e “a diplomacia merece uma chance de sucesso”). Não soa exatamente como entusiasmo, o que é muito coerente com suas posições políticas no Oriente Médio. 

Por ser conhecida nacionalmente, Clinton está bem nos números. Pesquisa do RealClearPolitics deste mês de abril mostra que, entre os eleitores democratas, sua candidatura tem apoio de 60% do entrevistados. Obama declarou oficialmente que irá apoiar qualquer candidato escolhido pelo partido, mostrando neutralidade. Hillary tem tudo para ser a próxima democrata a concorrer à presidência americana. 

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Irã e potências ocidentais lutam para responder ao dilema entre contenção e engajamento

Sempre que há oportunidade, faço questão de reforçar a ideia de que, na maioria das vezes, é decepcionante buscar coerência nas relações internacionais. Quem está em busca disso encontra contradições, poucas respostas e muita incoerência. Tudo isso se aplica de forma bastante clara na polêmica que gira em torno deste pré-acordo entre as potências ocidentais e o Irã. Michael Weiss, colunista de política externa e membro do Instituto da Rússia Moderna, escreveu um grande artigo mencionando todas as contradições. Há alguns pontos muito interessantes:

“Nos últimos 30 anos, os EUA mantiveram uma política externa inteligível e com precedentes históricos sobre a República Islâmica do Irã: contenção. A expansão do ‘Khomeinismo’ no Oriente Médio era algo a ser resistido como questão de segurança nacional e internacional. Se nossos aliados regionais podiam concordar sobre algo era quanto a prioridade (da contenção do Irã) bipartidária em Washington: a detenção do Estado que mais patrocinava o terrorismo em todo o mundo...”

“David Petraeus defendeu a posição para o então secretário de Defesa Robert Gates: ‘...acredito que o Irã esteja, de fato, travando uma guerra no Iraque contra os EUA... Acredito que o Irã tenha passado do limite de apenas lutar por influência no Iraque e pode estar criando (agentes, milícias) procuradores para ativamente nos combater... para agir como o Hezbollah libanês no Iraque”. 

Petraeus serviu na escala militar americana em diversas posições e chegou a ser apontado como líder da ofensiva no Iraque em 2007. 

Michael Weiss opta por contrapor o momento atual de engajamento entre Washington e Teerã ao histórico que, ao longo dos últimos 36 anos, coloca os dois países em lados opostos, chegando mesmo ao combate quase direto. As posições entre Irã e EUA desde a Revolução Iraniana de 1979 sempre foram antagônicas, isso não é segredo a ninguém. Weiss e muitos comentaristas políticos questionam a opção do presidente Obama a partir dessas posições e do histórico de oposição. A resposta a tudo isso foi dada por Obama em seu pronunciamento e na entrevista que serviu de base ao meu texto anterior. Vale expor novamente o trecho em que ele aborda esta questão de maneira bastante direta: 

 “...em relação ao Irã, um país grande, perigoso e que se envolveu em atividades que resultaram na morte de cidadãos americanos. Mas a verdade desta questão é: o orçamento de defesa do Irã é de 30 bilhões de dólares. O nosso se aproxima de 600 bilhões de dólares. O Irã sabe que não pode lutar contra nós... Você perguntou sobre a Doutrina Obama. A doutrina é: nós vamos nos envolver (engajar, abordar os países, mesmos os rivais), mas vamos preservar as nossas capacidades”.

Obama dá como resposta a qualquer questionamento sobre o envolvimento com o Irã a opção do chamado realismo político. O governo americano busca o pragmatismo como forma de abordagem ao Irã. Se a ideia dos últimos 36 anos era conter os iranianos, está muito claro que isso mudou. A partir deste pré-acordo, o engajamento é prioridade. E engajar é muito diferente de conter, porque implica em conceder. É justamente este dilema que resume a possibilidade da assinatura de um acordo definitivo no final de junho. Se o acordo deixar claro que se trata unicamente de engajamento, o Irã assinará. Se houver traços de contenção, não irá assinar. Para o Irã, a situação é muito simples e muito fácil. Mesmo com sanções afetando o país, a economia local conseguiu sobreviver. O governo conseguiu manter seu programa nuclear. Se entender que os resultados práticos não significam o total abandono da ideia de “contenção”, os iranianos não prosseguirão com o acordo. Resta saber se as potências ocidentais estão dispostas a pagar este preço. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

A doutrina Obama

É difícil falar em sinceridade quando se discute política. Ainda mais política internacional. Ainda mais quando se trata do principal palco da grande política mundial, o lugar onde querem estar todos os que pretendem influenciar os rumos da geopolítica – os que querem ser lembrados nos livros de História. É por isso que a entrevista do presidente americano, Barack Obama, a Thomas Friedman, escritor e colunista do New York Times, tem tanta relevância. Em quase uma hora de conversa no Salão Oval, Obama expõe o que ele mesmo chama de sua doutrina para as relações internacionais dos EUA.

Obama reforça os motivos que levaram os EUA a assinar este pré-acordo com o Irã. O presidente americano decidiu expor esquematicamente suas razões para conter o tour midiático do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu pelos EUA. Obama entende que está sendo atacado e que o líder israelense está em busca de reforçar sua aliança com os republicanos. Como Obama quer fazer seu sucessor e, claro, acalmar os ânimos do Congresso, optou por contra-atacar da mesma maneira. Independente do assunto, é muito valioso ter a oportunidade de acessar o esquema geopolítico de um presidente em exercício. Ainda mais de um presidente americano. Normalmente, este tipo de exposição acontece após os mandatos, quando ex-presidentes se tornam palestrantes ou decidem criar fundações. Clique aqui para ver a entrevista. 

Um trecho especialmente interessante gira em torno da comparação entre as abordagens a Cuba e Irã. Já havia escrito por aqui que a retomada de relação com esses dois países seria muito exposta como dois dos principais trunfos da política externa americana recente. O que o presidente diz sobre isso confirma esta análise. 

“Somos poderosos o bastante para testar essas possibilidades sem nos colocarmos em risco. E este é um ponto que as pessoas parecem não entender; tome por exemplo um país como Cuba. Para nós, testar a possibilidade de relacionamento significa dar melhores resultados ao povo cubano, não há muitos riscos (aos EUA). É um país pequeno. Não é um (país) que ameaça os nossos principais interesses de segurança, e por isso (não há razões) para não testar esta possibilidade (de engajamento com Cuba). E se acontecer de não haver bons resultados, podemos ajustar as nossas políticas. Isso também é verdade em relação ao Irã, um país grande, perigoso e que se envolveu em atividades que resultaram na morte de cidadãos americanos. Mas a verdade desta questão é: o orçamento de defesa do Irã é de 30 bilhões de dólares. O nosso se aproxima de 600 bilhões de dólares. O Irã sabe que não pode lutar contra nós... Você perguntou sobre a Doutrina Obama. A doutrina é: nós vamos nos envolver (engajar, abordar os países, mesmos os rivais), mas vamos preservar as nossas capacidades”. 

O texto acima é uma tradução com comentários, mas dá para entender onde o presidente americano quer chegar. Na prática, este parágrafo resume não apenas toda a entrevista concedida a Thomas Friedman, mas os aspectos que envolvem o processo de tomada de decisão externa deste governo americano. Também é uma dica de como a Casa Branca irá defender o envolvimento com Irã e Cuba (comparando ambos os casos, é bem deixar claro) diante do Congresso. A sociedade americana é amplamente favorável ao pré-acordo com o Irã. Cuba é mencionada como caso similar de propósito, já que, ao menos conceitualmente, a abordagem aos dois países ocorre a partir de uma mesma raiz geopolítica: a ideia de que, apesar de estar aberto ao diálogo, o presidente não abre mão de deixar claro sobre a mesa de negociação o seu grande poder de dissuasão. 

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Irã e potências ocidentais chegam a acordo histórico

O prazo final foi ampliado e, finalmente, as potências ocidentais e o Irã atingiram um acordo histórico sobre o programa nuclear iraniano. Lembrando que se trata de um acordo sobre parâmetros-chave a serem implementados e que levarão ao estabelecimento de um entendimento mais detalhado e complexo a ser negociado até o próximo dia 30 de junho. Seja como for, já se trata de um dia importante e que movimenta ainda mais o cenário efervescente em torno da atuação regional da República Islâmica e de seus opositores sunitas. Para além disso, representa uma conquista importante da administração Obama por meio de seu secretário de Estado, John Kerry. É também uma vitória de Obama e Kerry sobre a aliança entre o presidente da Câmara John Boehner e o primeiro-ministro israelense reeleito, Benjamin Netanyahu. 

O primeiro recado de Obama a seu desafeto em Jerusalém já foi dado logo após o anúncio do acordo: “se estes parâmetros (nos) levarem a um acordo final, eles tornarão o nosso país, os aliados e o mundo mais seguros”. 

Sobre as questões práticas envolvendo este acordo geral: segundo a ministra das Relações Exteriores da União Europeia, Federica Mogherini, o Irã não poderá produzir combustível para armamento, e os inspetores internacionais terão acesso garantido às instalações nucleares. Tampouco haverá instalações para enriquecimento de urânio fora da já existente em Natanz. A usina construída sob uma montanha em Fordow será convertida em centro técnico e de treinamento para pesquisa e desenvolvimento nuclear. O Irã não poderá reprocessar plutônio. 

Como escrevi no texto desta terça-feira, fica claro, portanto, que o caminho não aponta para o encerramento do projeto nuclear do país, mas para o estabelecimento de regras e restrições. Esta é também uma conquista de Teerã e dos sucessivos regimes que venderam caro o comprometimento do país. No final das contas, ao público doméstico e regional, os iranianos apresentarão o resultado das negociações como uma vitória sobre os interesses ocidentais, não tenham dúvidas. Como os europeus e americanos também apresentarão o acordo como uma vitória diplomática, parece que o resultado vai ser bem recebido em todos os lados diretamente envolvidos nas conversações realizadas na Suíça. Por enquanto, os derrotados são o próprio partido Republicano, o primeiro-ministro israelense e a coalizão sunita que opera neste momento no Iêmen. 

As sanções econômicas serão suspensas se, após verificações no Irã, a Agência Internacional de Energia Atômica (da ONU) considerar que não há violações ao estipulado pelas partes. De acordo com relatório oficial do Departamento de Estado americano, os fundos congelados entre janeiro de 2013 e janeiro de 2014 ultrapassam os 100 bilhões de dólares. Os valores atuais certamente são bem maiores, podendo tornar o governo do presidente Hassan Rouhani o mais rico da história do Irã. 

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Sunitas adicionam ainda mais elementos às negociações sobre programa nuclear iraniano

Curiosamente, mesmo após vários pronunciamentos do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, nada foi tão eficiente para ameaçar as negociações sobre o programa nuclear iraniano que a decisão dos países árabes sunitas de formar uma força militar conjunta – já em atuação no Iêmen, o teatro de operações do momento que põe em prática as divisões sectárias entre xiitas e sunitas. Mas não há inocentes nesta história toda; os Estados sunitas não são os bons moços da região. E, apesar de o projeto atômico de Teerã de fato contribuir largamente para desestabilizar ainda mais o já instável Oriente Médio, a coalizão liderada pela Arábia Saudita está bem distante de ter como objetivo a altruísta pacificação regional. 

No campo da negociação em torno de seu programa nuclear, o Irã continua a ser muito eficiente naquilo que sabe fazer de melhor: deixar o tempo passar sem necessariamente chegar a termos definitivos. Os representantes da República Islâmica sabem que têm em mãos o bem mais valioso perseguido pelas potências ocidentais. Sabem também que o presidente Obama quer muito apresentar aos cidadãos de seu país a solução do impasse iraniano. Sabem também que, se alcançada de modo pacífico, esta solução terá ainda mais valor, considerando que as discussões sobre a sucessão na Casa Branca irão se tornar mais vibrantes a cada mês. Institucionalmente, os EUA não estão dispostos a uma nova guerra no Oriente Médio. O público americano tampouco. Pesquisa da rede ABC mostra que 59% dos cidadãos americanos ouvidos são favoráveis a um acordo em que o Ocidente aceite suspender as principais sanções econômicas ao Irã em troca de restrições ao projeto nuclear. Restrições, não encerramento. Este deve ser o caminho escolhido pelo secretário de Estado John Kerry.

Já os países sunitas buscam deixar claro que não aceitarão a interferência iraniana em seus assuntos internos. Esta é uma parte da verdade. De fato, o Irã, em sua ambição regional, busca maximizar seu poder de ação; é assim na Síria, ao lado do ditador Bashar al-Assad, é assim no Líbano, fortalecendo e armando os também xiitas do Hezbollah, é assim no Iraque, apoiando os grupos xiitas locais, inclusive em seus desdobramentos políticos e religiosos, no Bahrein, apoiando os grupos xiitas locais, e, claro, os houthis, no Iêmen. Nada disso é segredo. No entanto, os Estados sunitas querem estar preparados não apenas para enfrentar a atuação regional iraniana; mais do que isso, temem qualquer movimento popular como a Primavera Árabe, por exemplo. Os países do Golfo são comandados de maneira ditatorial por famílias que em muitos casos herdaram territórios graças a acordos com as potências coloniais, como a Jordânia, por exemplo. É a realeza que certamente não está disposta a flexibilizar suas posições. Ter o Irã como oponente é muito conveniente. Mas vale sempre repetir que não há espaço para inocentes e não se pode dividir geopolítica entre certo e errado. O Irã também tem seus próprios objetivos regionais. O programa nuclear, por exemplo, é o braço mais avançado e conhecido de suas aspirações.