segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Com a crise europeia, os chineses não se contêm de tanta felicidade

Após o estabelecimento da crise europeia e da solução encontrada para injetar dinheiro nos bancos, parece que todo mundo resolveu dizer que já sabia dos problemas que originaram esta convulsão. Isso é engraçado e fruto da natureza humana. Faz até algum sentido, mas não deixa de ser curioso que, até bem poucos anos, as vozes dissonantes ao projeto europeu e ao euro fossem pouco ouvidas. Uma das interpretações para o momento de quase falência atual conecta economia e política, claro.

Era difícil que o euro tivesse sucesso de longo prazo sem deixar os nacionalismos europeus de lado. A ideia inicial da União Europeia era formar um Estado supranacional, respeitando as características locais, mas sempre tendo claro que a UE representaria a todos eles. Isso não foi possível por algumas razões: faltou combinar com as pessoas. Elas não apenas questionam esta representação continental, como desconfiam de práticas já existentes. Por exemplo, o parlamento europeu tem sua legitimidade discutida com alguma frequência. Tanto que foram necessárias seguidas pressões e eleições para aprovar o funcionamento da instituição como porta-voz da política externa europeia.

Fora isso, o racha interno prejudicou o estabelecimento real de determinações. Grã-Bretanha, Dinamarca e Suécia jamais toparam aderir à moeda única (assim como outros sete estados).Transformar este projeto num bloco unificado de verdade exige sofisticação e mudanças de paradigmas e pensamento.

Se bem sucedida, a experiência certamente englobaria os demais membros e continuaria a servir de atrativo para os países que ainda estão de fora. No entanto, este momento não permite grande otimismo e a UE corre risco até de acabar. O que está para acontecer dá a dimensão da situação que está por vir: para salvar os bancos à beira da falência por conta da crise, serão necessários nada menos do que um trilhão de euros. E, diante da escassez, onde é possível encontrar tal quantia? A resposta vem dentro de um biscoitinho da sorte (ou do azar, dependendo da perspectiva). A China é o único país do mundo capaz de tirar a Europa deste buraco.

E, além do óbvio, esta ajuda vai custar um preço muito alto. A China vai cobrar que os europeus reconheçam a economia de mercado do país, o que alavancará ainda mais o poder chinês, facilitando a entrada de produtos no continente europeu.

Ou seja, para se salvar, a UE vai abrir mão da competitividade econômica e será inundada legalmente pelo poder da China – um golpe que pode demorar muito tempo para ser assimilado e cujos estragos poderão ser permanentes. Isso sem falar, claro, no capital de prestígio que os países do bloco deverão perder. Se juntarmos uma crise à outra e lembrarmos que Beijing também é a principal detentora de títulos do tesouro americano, entenderemos o resultado desta equação: graças a seu poder econômico, a China parece ter conseguido inverter a balança mundial. E assim nasce uma nova ordem planetária.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O ciclo da Primavera Árabe começa a se fechar na Tunísia

A Tunísia fechou a primeira parte do ciclo. Depois de ser o primeiro país a derrubar seu ditador, conseguiu realizar eleições limpas (aprovadas, inclusive, por observadores internacionais) que contaram com ampla participação popular, como não poderia deixar de ser. Mais de 90% dos quatro milhões de eleitores aptos a votar participaram do pleito. Foram 80 partidos disputando as 217 cadeiras do parlamento. E, sem grandes surpresas, o Ennahda (ou Al Nahda) recebeu o maior percentual de votos. O partido islâmico promete agir moderadamente e manter as conquista políticas, sociais e os direitos femininos.

É até certo ponto natural que um país mantido fechado durante décadas por uma ditadura encontre no movimento islâmico a solução mais óbvia para seus problemas. Isso porque, apesar do sistema de partido único ter existido desde 1956 – ano da independência da Tunísia – , a militância islâmica contrária ao regime continuou a atuar. Isso não somente fortaleceu seus militantes como também lhe deu organização e estrutura. Numa democracia nascente, como é o caso, é previsível que os demais grupos estivessem dispersos ou não existissem até este ano.

A boa notícia para a Tunísia é que a vitória do Ennahda não foi esmagadora. A maioria absoluta não foi atingida e o partido será obrigado a articular alianças. Formará um governo de coalizão com dois partidos laicos: Congresso para a República (CPR, em francês) e Ettakatol (Fórum Democrático para o Trabalho e as Liberdades). O que está em jogo a partir de agora é mesmo a reconstrução do país, por isso o momento é tão importante. O que é curioso é que, ao contrário de outras situações, as pessoas por lá parecem ter isso claro. Há discussões de todos os tipos, e os parlamentares que assumirão seus cargos têm a difícil missão de definir como será a Tunísia do futuro. Um futuro pós-ditadura.

A ideia é redigir uma nova constituição. O debate foi cerceado por tantos anos que a efervescência do momento produz sem parar. Há 12 rascunhos em pauta. Como chegar a um consenso diante de tantas opções? Se isso soa caótico, a mim parece um ponto positivo. Numa sociedade tão vigiada por décadas, as muitas ideias e as forças que se anulam são positivas. É importante que não haja nenhum partido ou grupo que se sobreponha aos demais. E, por isso, a divisão deste momento não é ruim, pelo contrário: é uma marca da democracia. Regimes democráticos existem para conciliar interesses distintos, é assim mesmo.

No final das contas, a Tunísia acaba por ser mais uma plataforma de expansão do modelo turco, que no fundo é tunisiano. A Turquia se afirma como potência regional e força no mundo islâmico como “exportadora” do sistema que alia democracia e islamismo. A Tunísia agora assumidamente se espelha neste exemplo através do Ennahda. Pouco se fala nisso, mas um dos líderes do partido na Tunísia – Rachid Ghannouchi – foi um dos primeiros que buscou conciliar as duas correntes, no início dos anos 1980. Seus textos influenciaram as lideranças turcas. Agora, o ciclo retorna a seu lugar de origem. Resta saber se este modelo será adotado também por Egito e Líbia, por exemplo. E até que ponto será possível manter o equilíbrio entre religião e política nesses países que se reconstroem.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Empresas privadas querem acabar com o WikiLeaks

Lembram-se do WikiLeaks, a importante organização que subverteu o conceito de notícia ao espalhar material bruto governamental secreto a veículos de comunicação em todo o mundo? Pois é. Ela agora corre sério risco de deixar de existir, uma vez que sua única fonte lucrativa secou. Segundo Julian Assange, seu polêmico fundador, as empresas que repassavam as doações ao site passaram a restringir e mesmo impedir as remessas. Assange comprou – ou foi obrigado a provocar – uma briga com alguns dos principais agentes econômicos privados mundiais: Paypal, Visa e Mastercard.

Interessante nisso tudo não é apenas o fato, mas as mudanças intrínsecas a este evento. Em primeiro lugar, o WikiLeaks é simultaneamente fornecedor de material aos veículos jornalísticos mas também é protagonista frequente das notícias. Seja pelos processos que atingem seu fundador, seja pela natureza do material que divulga. Outro aspecto que chama a atenção – ou ao menos deveria – é que, pelo menos aparentemente, a briga da vez se resume ao bem impalpável que é a informação. Para completar, apesar dos Estados nacionais estarem profundamente interessados em acabar com o WikiLeaks, neste caso específico as empresas privadas representam os interesses dos países (da cúpula política desses países, para ser mais claro). Na maior parte das vezes na história recente, acontece o oposto – o Estado trabalha para o bem-estar das corporações.

Boa parte da lógica foi invertida porque o site de Assange também mudou regras tradicionais. Publica informações secretas de governos, repassa a jornais sem qualquer custo e vive de doações (e, aparentemente, apenas delas). Se vazar material secreto sempre foi o sonhos dos veículos de comunicação, o WikiLeaks é um serviço novo porque não lucra diretamente com isso. Democratiza sem exigir contrapartidas, publica tudo no site e não requer assinaturas mensais ou qualquer compromisso de fidelidade dos leitores. O único furo deste sistema, sob o ponto de vista da organização, passa justamente por sua manutenção. O site precisa de dinheiro para continuar a existir. E, por isso, segue a ordem tradicional de transações financeiras. Ainda não há alternativa neste caso. E foi justamente esta fraqueza que pode custar sua existência.

O WikiLeaks vaza conteúdo secreto dos governos desde 2007. Pode ser incômodo, indiscreto e desagradável à cúpula de poder dos países e principalmente das potências. Mas este é um serviço justo quando se muda o foco. Por que as populações não podem ter acesso a este material? Afinal de contas, os governos representam as pessoas e nada mais coerente que seus cidadãos conheçam suas entranhas e também as incoerências dos discursos que adotam. Li muitos textos argumentando que Assange é um anarquista que quer acabar com esta ordem mundial. E isso importa neste caso? Sinceramente, não creio. As ideologias do fundador do WikiLeaks e seus sonhos até certo ponto ingênuos não alteram em nada o que está em jogo nesta situação. O fato é muito simples: as corporações querem impedir a divulgação de informações relevantes às pessoas. Além de isso não fazer sentido e ser injusto sob qualquer ponto de vista, acaba dando às empresas privadas um poder que elas não têm e não deveriam ter: o benefício de decidir em nome dos cidadãos o que deve ou não ser divulgado.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

As vitórias internacionais de Barack Obama

Perceberam como aos 45 minutos do segundo tempo o presidente americano, Barack Obama, está conseguindo virar o jogo a seu favor? Isso vale, pelo menos, para a política externa. Em apenas uma semana, a Casa Branca conseguiu duas importantes vitórias políticas: a queda de Kadafi, na Líbia, e o fim da guerra do Iraque. É importante dizer, no entanto, que este último resultado é, em grande parte, fruto da vontade pessoal de Obama. Era sua carta na manga a ser usada quando a situação se estabilizasse e, principalmente, quando julgasse ser o melhor momento.

Foto: Obama em Las Vegas, nesta segunda-feira

E, claro, política é pragmatismo. Portanto, o melhor momento é durante a curva de ascensão rumo às eleições presidenciais. Dar fim à guerra do Iraque era mesmo uma promessa de campanha e coube à astúcia do presidente dos EUA reverter uma situação que o desagradava. Houve pouco comentário a respeito, mas o fato é que a retirada de todas as tropas não era o cenário ideal a Washington. A ideia era alcançar um acordo com o primeiro-ministro iraquiano, Nouri al-Maliki, e manter bases americanas no país, além de milhares de soldados. Não houve consenso entre as partes. Por isso, ao invés de anunciar isso simplesmente, Obama preferiu dar o passo definitivo e encerrar a guerra.

É uma estratégia interessante de sua parte não apenas pela situação relativamente mais pacífica no Iraque, mas também porque o anúncio acabou sendo catapultado pela execução de Kadafi, na Líbia. Em uma semana, Obama encerrou dois conflitos no Oriente Médio. Dá para negar o poder de resultados como esses? Ainda mais numa região que o imaginário internacional interpreta e comunica como a mais problemática do mundo.

A morte de Kadafi deu fim aos problemas da Otan e dos EUA, é bom que se diga. Desde o início da intervenção, há sete meses, era muito questionável a estratégia adotada. O que fica muito claro para mim é que as potências ocidentais entraram neste conflito interno líbio mais para não perder o bonde da Primavera Árabe do que por qualquer argumento humanitário. Se a preocupação com o assassinato em massa das pessoas comuns e indefesas em luta por liberdade fosse a única questão envolvida, esta mesma intervenção que derrubou Kadafi partiria agora para a Síria. Mas isso não vai acontecer. No final das contas, a morte de Kadafi deu sentido à operação, uma vez que nunca ficou claro o objetivo da empreitada militar ocidental. Até agora, jamais seus comandantes chegaram a um consenso sobre as metas finais. Matar Kadafi, exilá-lo, forçá-lo a realizar eleições eram opções que nunca foram assumidas publicamente.

Agora, após a execução de Kadafi, fica fácil cantar vitória. Com o ditador líbio fora do jogo, Obama e a Otan podem respirar aliviados. O problema não está plenamente resolvido porque mantenho a minha posição de sempre; por mais que apostar no Conselho Nacional de Transição seja a única alternativa, no fundo não dá para garantir que este emaranhado de fidelidades e ideologias irá mesmo transformar a líbia numa democracia real. Por ora, no entanto, Obama está cheio de conquistas a apresentar: um modelo de guerra na Líbia que não custou a vida de nenhum cidadão americano, a captura de Osama bin Laden e o fim da guerra do Iraque. Na prática, são resultados muito melhores do que os alcançados pela administração anterior.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Primavera Árabe: o risco do termo se sobrepor à realidade

Não acredito em qualquer espécie de pasteurização sistemática da Primavera Árabe. Explico: não creio que a política possa ser interpretada como uma sucessão de acontecimentos previsíveis. Nem a política, nem a história humana permitem a leitura dos fatos como se fossem peças de uma máquina cujo funcionamento ou não das engrenagens leva a resultados esperados. A morte de Kadafi é uma tentação ao estabelecimento de paralelos a outros países onde a população está nas ruas contra o próprio governo. Eu mesmo farei algum tipo de análise a respeito, mas não me arrisco a cravar certezas.

E não faço isso porque entendo que os países apresentam realidades muito distintas. Na Síria, por exemplo, por maior que seja a pressão sofrida pelo presidente-ditador Bashar al-Assad, o governo ainda detém o controle de boa parte do aparato coercitivo. Pratica uma grande ofensiva contra as pessoas comuns, sofre críticas internacionais contundentes, mas, por ora, não é ameaçado de verdade. Na Líbia o governo caiu porque a Otan e as potências ocidentais articularam ataques aéreos e também decidiram bancar os “rebeldes”. Se dependesse da força interna pura e simplesmente, Kadafi ainda estaria no poder.

No Egito e na Tunísia os respectivos ditadores foram depostos basicamente porque o exército os abandonou, mudou de lado.

Reportagem do New York Times lista as singularidades da Tunísia – características que levaram o país a ser o primeiro a detonar e também encaminhar o processo que ficou conhecido como Primavera Árabe.

“Dentre os fatores a seu favor, a reduzida e homogênea população de cerca de 12 milhões de pessoas; alto nível de educação, uma grande classe-média, exército não politizado, um movimento islâmico moderado e a longa história de identidade nacional unificada”.

São credenciais importantes e que, além de não poderem ser descartadas, são difíceis de serem encontradas nos outros países da região. Assim como Tunísia e Síria são exemplos opostos, a Líbia também representa, até agora pelo menos, um caso único de intervenção internacional. Por isso, o termo Primavera Árabe serve como rótulo do processo de transformação, mas não de unificação dos destinos de todos os atores. A “Primavera Árabe” já é uma realidade, mas esta espécie de chancela internacional não garante sucesso aos seus participantes individualmente.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Morre Kadafi. Nasce o caos

A morte de Kadafi talvez seja um dos eventos mais importantes do ano (num ano cheio de eventos importantes, diga-se de passagem). No entanto, representa o mais breve clímax da Primavera Árabe. Se por um lado o ditador líbio foi a figura política que sofreu as consequências mais graves do processo de luta por mudanças profundas na região (vale lembrar que, até agora, nenhum outro líder árabe pagou com a própria vida pelos anos de poder absoluto), a Líbia pode ser o primeiro Estado nacional pós-insurgências populares a ser engolido.

A Líbia pode se transformar no caos completo e entrar no clube dos Estados falidos africanos – caso da Somália, por exemplo. E esta não é uma hipótese distante. Mahmoud Jibril, presidente do quadro executivo do chamado Conselho Nacional de Transição (CNT) – nome bacana dado aos “rebeldes” – é um dos que defendem esta posição. Tanto que decidiu abandonar o barco. Jibril era a grande esperança das potências ocidentais de dar ao CNT um formato palatável. Economista graduado nos EUA, ele percebeu que transformar a Líbia numa democracia será complicado. Até porque, se criar algo próximo a um país já é uma missão ingrata, unir este arremedo de ideologias, tribos e fidelidades distintas num regime democrático é ainda mais complicado.

Há alguns responsáveis por este caos. Aliás, todo mundo é responsável, mas as alternativas ao caos eram impensáveis. A partir do início da Primavera Árabe nos países vizinhos, os líbios foram às ruas exigir transformações internas. Como era de se esperar, Kadafi optou pela violência para impedir as manifestações. Num cenário mais amplo, as potências ocidentais decidiram agir porque estavam em péssima situação. Identificadas às forças repressoras –contestadas e derrubadas – de Egito e Tunísia, perceberam no caso da Líbia a oportunidade de mudar para o lado certo (agora representado pelas pessoas comuns que exigiram o fim dos regimes ditatoriais). Assim, em março, correram para aprovar a intervenção da Otan.

Como de costume, a pressa atrapalhou o planejamento. Kadafi já não representava um problema real aos EUA e ao Ocidente havia muito tempo. Por isso, estava esquecido do ponto de vista estratégico. Graças a este esquecimento voluntário, ninguém conhecia a fundo ou mantinha contato frequente com os opositores de Kadafi. Quando as potências ocidentais decidiram derrubá-lo, precisaram de uma força opositora interna para representar a alternativa ao regime. Foi neste momento que “surgiram” os “rebeldes”. Escrevi em 23 de agosto sobre o assunto e a realidade de então continua a valer. O Conselho Nacional de Transição, formado em sua base pelos “rebeldes”, nada mais é do que um grupo unido somente em torno do objetivo de acabar com o ditador. Há ex-membros do governo, democratas, jihadistas, berberes e representantes das muitas tribos que formam a Líbia.

Agora que Kadafi é História, cada um desses grupos passará a lutar individualmente por poder. E assim está formado o caos, fruto da sucessão de acontecimentos não apenas da Líbia, mas também resultado da nova arquitetura regional (ela mesma ainda em formação).

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Consequências possíveis da troca de prisioneiros entre Hamas e Israel

Ainda há algumas análises a serem feitas sobre a libertação de Gilad Shalit e a troca de prisioneiros empreendida após negociação indireta entre Israel e o Hamas. As grandes questões estratégicas que têm sido levantadas dizem respeito às mensagens práticas enviadas pela concretização do acordo. Há duas correntes predominantes: a primeira considera que o número de sequestros a soldados e cidadãos israelenses tende a se tornar comum; a outra acredita que o presidente palestino, Mahmoud Abbas, é o grande perdedor do processo, uma vez que os ganhos através de negociação teriam dado lugar a um incentivo indireto ao caminho da violência.

Em primeiro lugar, desde que a troca foi anunciada, na semana passada, o próprio governo de Israel admitiu que ela só possível graças ao que passou a chamar de “janela de oportunidade”. Eu abordei o assunto no texto da última sexta-feira. Há elementos distintos que compõem este termo, mas um dos mais importantes é justamente o momento de grande popularidade do presidente Abbas. Havia o temor de o acordo ser interpretado como chancela aos métodos de violência e luta armada empregados pelo Hamas em detrimento ao discurso moderado do presidente palestino. Mas, curiosamente, graças ao período de alta desde o pronunciamento na ONU em busca do reconhecimento ao Estado palestino independente, Abbas não está em situação de risco iminente. E, de maneira bastante clara, por mais interessante que seja esta libertação de mil e tantas pessoas, ela não soluciona o impasse do conflito.

Caberá a Abbas deixar isso explícito. E quem assistiu ao seu pronunciamento na Cisjordânia durante a recepção dos presos já pôde notar os métodos que ele vai empregar. Visivelmente constrangido, agradeceu aos esforços do Egito no acordo. O presidente palestino vai tentar esvaziar como puder esta vitória política do Hamas. É claro que a hipótese de um recrudescimento do Hamas existe, mas, como também escrevi na semana passada, este acordo marcou a vitória do pragmatismo – e este é um fato a ser comemorado numa região repleta de ideologia.

Sobre o risco dos sequestros, é claro que ele também existe. Mas acho que ele pode ser postergado, uma vez que a intenção do Hamas é retomar o protagonismo interno e também se firmar como ator internacional legítimo. Patrocinar uma onda de sequestros seria um retrocesso, sob este ponto de vista. A eventual derrocada do governo Assad, na Síria, deixa a aliança regional em que o Hamas está inserido em suspenso por ora. Pode ser que o grupo tente movimentos militares por conta própria, mas este me parece mais um momento de recuo diante dos acontecimentos na Síria e no Irã.

Sob a perspectiva israelense, expliquei o acontecido no texto de ontem. Jerusalém precisou correr os riscos. Há uma reportagem muito interessante do jornal canadense Globe and Mail (leia aqui) que lista o passo-a-passo do processo de construção deste acordo. Um dos trechos da matéria menciona uma declaração de bastidor do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. “Eu me oponho a este acordo, a negociar com terroristas e a libertar terroristas da prisão. Mas não há nenhuma outra maneira de trazer Gilad Shalit para casa e já é hora (de isso acontecer)”. Esta, aliás, tem sido a posição declarada de Netanyahu e acho que não são necessárias maiores análises sobre ela.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

A vida humana na balança do Oriente Médio - parte 2

Gilad Shalit está de volta a Israel. A troca de prisioneiros aconteceu como previsto e também libertou parte dos palestinos que estavam em prisões israelenses. Esta não é a primeira vez que o Estado israelense enfrenta os dilemas internos de libertar criminosos envolvidos no assassinato de centenas de civis. Desta vez, os beneficiados pelo acordo indireto com o Hamas foram responsáveis pelas mortes de 599 israelenses. No total, desde a primeira troca de prisioneiros, em 1957, Israel libertou 13.509 prisioneiros em troca de 16 soldados.

No entanto, o que pode soar como fraqueza e ingenuidade me parece ser justamente o oposto. Diante de todo o isolamento político e dos muitos erros estratégicos recentes cometidos pelo governo israelense, esta libertação mostra a força de uma sociedade que valoriza a vida. A vida de Shalit é única e não poderia ser desperdiçada, mesmo com todas as possíveis graves consequências da libertação de presos envolvidos no planejamento e execução de atentados a civis. Depois de muito tempo, esta sociedade – em frangalhos por divisões internas e escolhas políticas duvidosas – deu a demonstração de que não esqueceu alguns dos valores que tornaram o país admirado em todo o mundo. Curiosamente, coube ao Hamas provocar este renascimento.

Em 2004, publiquei um texto que reproduzo abaixo. Na época, o mundo assistia como agora a uma troca de prisioneiros muito semelhante a esta que está em curso. As especificidades, o contexto e os dados são distintos, mas a visão quanto à importância da vida humana permanece a mesma.

“Recentemente Israel e Líbano concretizaram uma troca de prisioneiros histórica. Por trás das manchetes que circulam em todo o mundo, há uma espécie de balança de valores que poderia definir as duas sociedades. A matemática é simples: Israel libertou 436 prisioneiros em troca de apenas um cidadão vivo, três soldados mortos e informações sobre o piloto desaparecido Ron Arad.

Acabo de retornar de Israel. Não sei se há em outro lugar do mundo uma organização como a MIAs, que busca informações sobre oficiais desaparecidos em ação. Desde a fundação do Estado, em 1948, mais de quatrocentos soldados estão sob o status Missing in Action. O caso mais emblemático é justamente o do piloto Ron Arad, capturado em 16 de outubro de 1986 após ejetar-se de seu avião e cair em solo libanês.

O governo de Israel busca, desde então, informações sobre o piloto e pistas para encontrá-lo. E essa foi uma das razões para a efetivação da controversa troca de prisioneiros. De fato, é difícil compreender a libertação de prisioneiros como Anwar Yassin, que, em setembro de 1987, assassinou os soldados Alex Singer, Ronen Weisman, e Oren Kamil. Alex Singer era irmão do jornalista do Jerusalem Post, Saul Singer, que, em coluna publicada no jornal, opina: ‘A razão pela qual temos que trocar tanto por tão pouco é que valorizamos a vida humana e a liberdade de maneira diferente’.

Realmente, é difícil de engolir a recepção que boa parte dos prisioneiros recebeu em Beirute (muitosdos que foram libertados seguiram para os territórios palestinos). Na capital do Líbano uma comitiva que reunia o presidente Emile Lahoud e o líder do grupo terrorista Hezbollah, o xeque Hassan Nasrallah, aguardava os presos recém-libertados. Havia também a presença de muitos jornalistas ocidentais que cobriam o evento e faziam questão de chamar os ex-presos de militantes.

Quando se lida com números, realmente fica mais fácil chamar de militantes as 436 pessoas envolvidas na troca de presos. Mas é difícil aceitar uma definição tão simplista - e até certo ponto romântica - ao examinarem-se as ações que os levaram à prisão em Israel. Um bom exemplo é o caso do libanês Samir Kuntar, que, em 1979, foi o responsável pelas mortes de Danny Hanan, suas duas filhas (de quatro e dois anos de idade) e um policial.

A polêmica criada em Israel foi tamanha que a troca esteve ameaçada de não acontecer até o último momento. Duas associações de vítimas do terrorismo entraram com ações na Suprema Corte. O argumento utilizado pelas duas organizações era de que a troca correspondia a um perigo para o Estado e seus civis. Segundo o representante da organização Vítimas do Terrorismo Árabe, Baruch Ben-Yosef, "centenas de terroristas, incluindo aqueles com sangue nas mãos, não podem ser libertados". Porém, a petição foi negada e a troca se concretizou.

Nos jornais brasileiros, pessoas como Anwar Yassin e Samir Kuntar continuam a ser chamados apenas de militantes. Imagens do reencontro dos terroristas no Líbano com suas famílias podem comover aqueles que não sabem dos crimes que cometeram. É por isso que se faz necessário um exame cuidadoso da ficha de cada um dos 436 presos antes de qualquer avaliação.

Por sua vez, a troca não é um fato a ser comemorado. É apenas mais um capítulo que ensina como cada sociedade enxerga a vida humana de maneira distinta. Enquanto assassinos como Anwar Yassin e Samir Kuntar são recebidos no Líbano com honras de Estado, a sociedade israelense parece estar disposta a pagar um alto preço para ter seus filhos de volta. Mesmo que seja apenas para lhes dar um enterro digno.”

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O suposto plano de atentado iraniano nos EUA

Acabei deixando de fora dos textos de semana passada a suposta descoberta pelas autoridades dos EUA de um plano para assassinar Adel al-Jubeir (foto), embaixador da Arábia Saudita em Washington. Como o assunto ainda está em aberto, vale abordá-lo. Principalmente porque se trata de uma questão estratégica que envolve o quadro maior da grande batalha geopolítica no Oriente Médio entre estados sunitas e xiitas. Já abordei este tema muitas vezes por aqui e este episódio recente é interessante por ser o primeiro caso mais evidente de que, apesar das mudanças que ainda estão acontecendo na região, a lógica de alianças e interesses permanece a mesma, por ora.

Estado majoritariamente xiita, o Irã mantém proximidade com as forças opostas aos interesses americanos (Síria, Hamas e Hezbollah). Neste bloco também estava presente a Turquia. O grande problema para os iranianos é que o governo de Ancara passou a representar um terceiro e importante pilar regional. Graças à grande população, à localização privilegiada, à economia de mercado e à única condição de pertencente à Otan, os turcos se emanciparam. Curiosamente, no entanto, esta singularidade permite que a Turquia se transforme em polo de atração e liderança estratégica. Abertamente jogando pela hegemonia regional, o Irã perdeu demais com este protagonismo turco.

Se este parágrafo não explica totalmente o suposto projeto de atentado em solo americano creditado aos iranianos, talvez sirva para entender o momento interno da República Islâmica. É preciso dizer claramente, entretanto, que a participação do Irã no plano ainda se trata tão somente de uma alegação americana. Mas já há muita gente que argumenta que a realização de um ambicioso atentado no coração dos EUA seria contrário aos próprios interesses da República Islâmica, uma vez que, se concretizado, quase que certamente precipitaria um ataque militar americano.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que a política interna iraniana segue dois caminhos distintos. O primeiro protagonizado pelo presidente Mahmoud Ahmadinejad; o segundo, pelo hierarquicamente superior a ele, o líder-supremo aiatolá Ali Khamenei. Neste momento exato, as duas principais figuras do país travam silenciosa batalha por poder, deixando aparente a discordância entre ambos. A força Quds, braço da Guarda Revolucionária que estaria por trás do planejamento do ataque em Washington, atua quase como um exército pessoal de Khamenei, tornando quase impossível a execução de qualquer ato desta magnitude sem seu conhecimento ou consentimento.

Ainda é muito cedo para creditar culpas e inocências, mas não se pode excluir a possibilidade de um racha importante no Irã. Esta divisão em alto-escalão pode tomar rumos perigosos, se vier a se manifestar também na belicosa política exterior do país. Existe também a possibilidade de braços armados vinculados ao governo de Teerã terem perdido o controle do discurso que defendem, dando poderes demais a grupos independentes e radicais que não ponderam estrategicamente eventuais operações clandestinas internacionais.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Possível libertação de Gilad Shalit representa a vitória do pragmatismo

Mais de cinco anos após o sequestro do soldado Gilad Shalit, Israel e o grupo radical Hamas incrivelmente alcançaram um acordo. Por mais que seja muito claro que este é um momento de recuo estratégico por parte do Hamas, a nova configuração do Oriente Médio alimenta algum tipo de esperança de futuro. Não se trata de ter esperança num futuro bom ou mais ou menos, mas a simples existência de um amanhã onde cada um siga seu rumo. Acredito na forma como o escritor israelense Amós Oz enxerga o instante posterior à assinatura de um tratado de paz definitivo.

Israelenses e palestinos não serão povos irmãos, sejamos pragmáticos. Há muito rancor, muito lamento e ódio pelas vidas perdidas em cada um dos lados. Por isso, num primeiro momento, Israel e a Palestina serão países que estabelecerão relações como as de um casal recém-divorciado: há sentimentos ruins de ambos os lados, muitas vezes os ex-cônjuges não se suportam, mas, neste caso específico, precisarão aprender a dividir o mesmo apartamento. Cada um em seu cômodo, mas no apartamento apertado que é o Oriente Médio.

O acordo que culminou com a troca de prisioneiros talvez seja um dos primeiros sinais das mudanças regionais ainda em curso. Em primeiro lugar, o Hamas foi obrigado a recuar. Com o rival Fatah em alta internacional, o grupo radical sofreu um golpe duríssimo muito mais grave, inclusive, que qualquer derrota militar imposta por Israel. Na iminência de conquistarem seu Estado, os palestinos puderam reforçar o que todo mundo já sabia: muitas vezes, a arte da política consegue ser muito mais vitoriosa que as campanhas militares. Por mais contraditório que pareça, esta percepção é muito positiva também a Israel.

No mais, a nova configuração regional também se fez presente. Em tempos de Primavera Árabe, os israelenses não poderiam esperar demais. Se hoje contaram com a mediação deste governo transitório do Egito para costurar o acordo de libertação de Shalit, ninguém pode assegurar que nas próximas eleições a Irmandade Muçulmana não saia vitoriosa. E, neste caso, certamente o grupo não estaria disponível para negociar com Israel. Agora, o Conselho Militar que dirige o país precisava apresentar algum tipo de medida razoável ao mundo. Ao sentar para negociar com os israelenses, ganha pontos importantes no cenário internacional.

Até a Turquia, que nos últimos dois anos se transformou numa importante força de oposição ao governo de Jerusalém, apoiou o acordo. Segundo o ministro das Relações Exteriores Ahmet Davutoglu, seu país foi consultado pelo Hamas durante o processo de elaboração do plano. É claro que todo mundo quer se valer do aparente sucesso da iniciativa e Ancara não pode prescindir de influência em nenhum aspecto minimamente importante do Oriente Médio.

Um ponto importante diz respeito às declarações de bastidores e seus significados implícitos. Fontes palestinas que participaram dos diálogos disseram que o Hamas entendeu que era impossível a qualquer um dos lados obter 100% de suas demandas. Ora, esta talvez seja uma das melhores notícias disso tudo. Saber perder é a base de qualquer negociação. E, quando o grupo radical aceita esta premissa, mostra uma flexibilidade completamente oposta a seu discurso. E, para completar, quando aceita negociar com Israel também, na prática, reconhece que o Estado judeu existe como interlocutor. O mesmo raciocínio vale para os israelenses. Apesar de um Estado democrático não poder ser comparado ao Hamas, Israel também não reconhece o grupo como um interlocutor válido. Num cenário de mudança, Jerusalém soube lidar com os elementos que existem na realidade, não com os elementos que deveriam ou não existir.

Li uma frase brilhante na versão online do jornal israelense Yediot Ahronot: “no final das contas, Israel capitulou e o Hamas mostrou flexibilidade”. Acho que esta constatação traduz perfeitamente o resultado desta negociação. E este talvez seja o grande mérito deste processo; forçou os dois lados a lidar com aquilo que é o pior resultado a ambos. E, quando isso aconteceu simultaneamente, os dois lados ganharam. É curioso, não é? Talvez essas conclusões apontem caminhos viáveis no Oriente Médio. É interessante saber os motivos que levaram à conjunção de tantos fatores neste momento. No entanto, os resultados são mais importantes. Neste caso, prevaleceu o pragmatismo – o que, numa região profundamente ideologizada, é uma evolução.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Cristãos e a Primavera Árabe estão em risco no Egito

Os ataques aos cristãos coptas no Egito acendem a luz amarela para o projeto de revolução regional no Oriente Médio. Como tenho escrito, 2011 já é um ano marcante e de mudanças profundas. Por mais que a Primavera Árabe seja realidade inquestionável, este é um processo em curso e que pode ser revertido a qualquer momento. Quando uma minoria religiosa é atacada como aconteceu neste domingo, é preciso atenção. Não somente pelos assassinatos (os números apontam entre 19 e 40 mortos), mas também pelo discurso que cerca o ocorrido.

Os manifestantes faziam uma caminhada pacífica no Cairo em direção à sede da TV estatal. A intenção era protestar contra recentes ataques a igrejas do país. Ao serem informados sobre o que acontecia, funcionários do canal de TV levaram ao ar uma mensagem perigosa convocando a população a atacar quem tomava parte do protesto sob o argumento de que “a multidão procurava enfraquecer a unidade nacional”. A partir daí, os ânimos acirrados trataram de pôr em prática a violência e dar um fim trágico à manifestação.

É estranho perceber que os mesmos militares encarregados de derrubar o ex-presidente Hosni Mubarak decidiram fazer valer alguns de seus conceitos mais conhecidos. Nos tempos de Mubarak, os únicos protestos permitidos eram os que tinham Israel como alvo. Quando a Primavera Árabe tomou corpo na Praça Tahrir, há apenas oito meses, esses mesmos militares largaram o presidente e se juntaram à população comum – que lutava por liberdade, democracia, e, também, pelo direito de protestar livremente. O que aconteceu desde então?

Na época dos protestos, escrevi que a derrubada de Mubarak só foi possível graças à adesão das forças armadas. Se o poder coercitivo tivesse permanecido fiel ao ex-presidente, um banho de sangue teria acontecido e, muito possivelmente, a violência teria se expandido por todo o país. Estrategicamente, e não por questões ideológicas, não se enganem, os militares mudaram de lado. Principalmente, porque enxergaram uma oportunidade de alterar a balança de poder nacional. Ou, pelo menos, de se desvincularem de um líder já desgastado por 30 anos de mandato forçado. No Egito, as forças armadas exercem um papel na vida cotidiana que extrapola a posição de defesa das fronteiras e da manutenção da soberania. São um dos principais agentes econômicos, tendo inclusive o controle de empresas de segmentos diversos do mercado (desde a fabricação de equipamentos militares a liquidificadores para uso doméstico).

É difícil controlar os limites do poder militar. Principalmente numa sociedade onde a participação das forças armadas é historicamente fisiológica como no Egito. Na semana passada, o Conselho Supremo – órgão criado pelos militares para governar o país “temporariamente” após a queda de Mubarak – emitiu declaração dando conta de que pretendia adiar as eleições (inicialmente planejadas para abril do ano que bem) e realizá-las somente no início de 2013. Acho que o caso egípcio pode ser um termômetro da situação da Primavera Árabe. Se o Conselho Supremo permanecer no poder por tempo indeterminado, as esperanças de que o movimento popular represente uma quebra de paradigma podem ir por água abaixo.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Favoritos não levam o Nobel da Paz

Havia grande expectativa em relação ao anúncio do vencedor do Prêmio Nobel da Paz. Todo mundo que tem alguma proximidade com política internacional esperava muito da premiação, já que, como tenho escrito, 2011 é um desses anos que mudam o rumo da história. A comissão julgadora responsável pela eleição sabe que o Nobel da Paz é o mais político dos prêmios. Muito embora qualquer escolha seja sempre política, especialmente o Nobel da Paz é diferente dos demais.

Ao contrário dos prêmios mais técnicos – focados em grandes descobertas e avanços –, o Nobel da Paz dá uma espécie de chancela a determinadas causas. Ou, ainda, ratifica rumos e aponta caminhos. Por exemplo, quando Obama foi o vencedor, em 2009, a justificativa era de que seus esforços para a redução dos arsenais nucleares haviam sido reconhecidos. O prêmio foi concedido por isso também, mas a explicação não se restringe a esta linha meramente formal.

O Comitê Nobel fez uma análise do cenário internacional e mandou seu recado. Na época, havia grande preocupação com uma nova corrida nuclear, a ameaça real de um confronto direto entre EUA e Israel, de um lado, e o Irã, de outro. Fora as tentativas comandadas pelo próprio Obama de reaproximação com os russos e o resultado prático de frear a competitividade atômica entre os dois países. Mais além de tudo isso, a representatividade do presidente americano, um voto de garantia simbólico de que ele deveria ser mais ousado na liderança geopolítica internacional e que tivesse o pacifismo e o multilateralismo como bases de ação. O Nobel era um prêmio antecipado por Obama não ser Bush, para ser bastante claro.

No entanto, agora, o Comitê recuou. Diante do maior número de concorrentes inscritos, num dos anos mais importantes e representativos para o pacifismo, o prêmio foi dividido não entre os protagonistas da Primavera Árabe ou dos muitos movimentos sociais em curso, mas entre figuras menos relevantes, sob o ponto de vista do simbolismo político. As vencedoras (foto) foram Ellen Johnson Sirleaf, presidente da Libéria, a ativista Leyma Gbowee, também da Libéria, e Tawakkul Karman, do Iêmen, ativista pró-democracia (a primeira mulher árabe a receber o prêmio). Por mais que esta última seja representante das manifestações populares nos países árabes, o Comitê perdeu a chance de reconhecer a importância deste movimento na plenitude.

Havia duas opções óbvias que, se escolhidas, teriam dado ainda mais sentido a este momento raro em que a luta popular democrática conseguiu resultados práticos nos países árabes: o já morto Mohamed Bouaziz, o vendedor ambulante que ateou fogo ao próprio corpo em dezembro de 2010 na Tunísia quando seu material de trabalho foi confiscado dando início aos protestos; Ou Wael Ghonim, executivo egípcio do Google e um dos principais articuladores das manifestações no país. O Comitê Nobel perdeu uma grande chance de demonstrar seu apreço a um movimento ainda em curso e reconhecer sua importância na construção de um mundo mais democrático e na transformação de um região um tanto problemática.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Occupy Wall Street e o simbolismo de 2011

Os protestos populares em Nova Iorque reafirmam um ano repleto de mudanças e simbolismos. Durante a semana passada, quando o presidente palestino Mahmoud Abbas esteve na mesma cidade para pedir o reconhecimento da ONU a um Estado palestino, escrevi muito sobre simbolismos e significados. A conclusão a que tentei chegar – e os argumentos que usei ao longo deste ano – apresentam a minha visão pessoal sobre o assunto. E, pelo menos para mim, fica muito claro que existe uma interpretação um tanto distorcida sobre este assunto, na medida em que há uma espécie de consenso de que o simbólico vale muito menos.

A minha dúvida é bastante prática: o simbolismo vale menos quando comparado a que exatamente? Se comparado a leis estabelecidas, o que é simbólico pode até valer menos sim. Mas talvez esta inferioridade seja temporária. O ano de 2011 é bastante representativo. Quando manifestantes na Tunísia e no Egito tomaram as ruas e protestaram contra as inúmeras regras estabelecidas e vigentes há décadas, jamais imaginariam que poderiam provocar tantas mudanças. Até o momento em que ficou claro que seus países estavam parados pelos protestos, eles não tinham nada em troca. Era, portanto, uma batalha meramente simbólica, quando se leva em conta que o simbólico é também uma oposição ao que é concreto – pelo menos na definição dos que acreditam que o simbolismo está numa escala inferior.

E aí chegamos aos protestos em Nova Iorque. Há muitos simbolismos importantes nessas manifestações. O primeiro deles é que mostra a força do povo americano que, finalmente, acordou diante da crise. Se por um lado o governo Obama é alvo dos protestos, pela primeira vez desde o surgimento do Tea Party – o movimento ultraconservador de direita – a oposição popular aos desmandos do mercado tomou as ruas. E, com muita precisão, escolheu, simbolicamente, o centro dos problemas recentes da população comum dos EUA. Como não culpar a voracidade de Wall Street pela crise financeira? Como esquecer a enorme ajuda financeira governamental repassada aos bancos, enquanto as pessoas, através de seus impostos, assistem à Casa Branca destinar o resultado do trabalho real a bônus de executivos financeiros?

O que está acontecendo agora não é apenas justificável, mas também natural. A corda foi esticada a tal ponto que era previsível que isso fosse acontecer. Curiosamente, 2011 também é o ano da retroalimentação. Artigo da revista Time defende que as atuais manifestações nos EUA são a continuidade dos acontecimentos populares em Madri. Esta afirmativa é parcialmente correta porque não se pode atribuir este movimento a apenas um outro. Como este ano profundamente simbólico – e alguém ainda duvida do poder do simbolismo? – tem mostrado, os movimentos estão todos encadeados. O que está em curso em Nova Iorque neste momento está vinculado a Madri, mas também às manifestações por reformas democráticas nos países árabes, à luta da população israelense contra o alto custo de vida no país, aos protestos contra as medidas de austeridade na Grã-Bretanha e na Grécia. Isso sem falar na Revolução Laranja, levada adiante pela população ucraniana, entre 2004 e 2005.

O encadeamento histórico é curioso mesmo. Havia a impressão de que todas as ideologias estavam relegadas ao século vinte. Isso pode até ser verdade, mas este ano tem deixado claro que, por mais que as pessoas não estejam fechadas em torno de um slogan ou de um partido, elas estão dispostas a ir às ruas para lutar por direitos a que não têm acesso (como no caso das populações dos países árabes) ou contra injustiças cometidas no próprio sistema democrático em que estão inseridas (casos dos movimentos populares de Europa e Israel).