quinta-feira, 30 de junho de 2011

Grécia expõe fragilidade da União Europeia

No dia seguinte à publicação do texto onde dizia não acreditar que a Grécia pudesse provocar um banho de sangue contra seus próprios cidadãos, as informações sobre os confrontos entre forças policiais e manifestantes são um tanto assustadoras; já se fala em mais de 300 feridos. Para que feridos se transformem em mortos, basta apenas que a repressão continue por mais tempo, sejamos realistas. Apesar disso, tenho certeza de que a situação por lá é bem diferente da repressão estatal promovida por Bashar al-Assad, na Síria. Um ponto importante que distancia os dois cenários é a liberdade de imprensa. Os olhos do mundo inteiro estão na Grécia. Jornais, televisões e agências de notícias trabalham livremente.

Como escrevi nesta quarta-feira, a crise extrapolou a mera discussão econômica. Já se trata de um evento político importante e que, certamente, não se restringe à história grega. Se os bancos franceses e alemães estavam muito preocupados com a aprovação do pacote de austeridade no parlamento em Atenas, a situação agora pode sofrer um revés importante. Afinal de contas, está cada vez mais óbvio o quanto a União Europeia é um organismo frágil sob o ponto de vista mais básico; as lideranças dos Estados-membros não tem em mente qualquer projeto sério de entidade supranacional. As atuações de Sarkozy e Merkel neste momento têm reafirmado o que muita gente já supunha: durante uma crise interna europeia, cada um que cuide de si e lute pelos próprios interesses.

E, nunca custa lembrar, a grande ironia disso tudo é que os governos de França e Alemanha estão mais preocupados com a “saúde” financeira do bloco e de seus próprios bancos do que com a vida dos cidadãos gregos. Tudo bem, há um tanto de purismo neste comentário, mas, afinal de contas, a Grécia e os gregos não deveriam ser mais importantes para a União Europeia do que os bancos? Sinceramente, não sei qual a impressão que os cidadãos gregos têm hoje da própria UE, da França e da Alemanha, mas imagino que eles não devem estar lá muito satisfeitos. Na prática, há também uma grande quebra do contrato social – parte importante do conceito de cidadania europeia – quando a qualidade de vida das pessoas deixa de ser prioritária.

E por falar em prática, toda esta discussão em torno da aprovação do pacote de austeridade já tem uma consequência óbvia: a UE está rachada. A fratura é até bem simples de ser compreendida e está exposta em toda a parte: virou lugar-comum se referir à Grécia, Espanha, Itália, Irlanda e a Portugal como Estados europeus “periféricos”. Se isso vai causar a exclusão desses países em algum momento é especulação. Mas, acho que pode ser o início do fim do bloco que, durante alguns anos, foi sinônimo de prosperidade e sucesso político e econômico.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Grécia: crise econômica pode se transformar num profundo impasse político

Apesar da greve, dos confrontos de rua e das muitas tentativas de impedir a aprovação do pacote de austeridade na Grécia, as medidas restritivas foram acatadas pelo parlamento nesta quarta-feira. É bom que se diga, no entanto, que o resultado da votação mostra que não há unanimidade nem mesmo entre os parlamentares. Foram 155 votos a favor, 138 contra e sete abstenções. Não se sabe se isso reflete algum tipo de crítica à solução apresentada pelos “solidários” parceiros da União Europeia ou dá conta de um temor individual de carregar esta mancha na biografia política. Pode ser os dois, inclusive.

A questão agora sobe de nível. Quer dizer, não basta aprovar o pacote, mas conseguir implementá-lo. E aí a situação fica bem complicada porque, na prática, o poder está com a população. Para ser bem prático, a Grécia não dá os passos considerados necessários pelos bancos credores alemães e franceses se o país simplesmente parar. Se o impasse permanecer, não há produtividade, economia e, finalmente, recolhimento de impostos. O futuro está em boa parte com a população economicamente ativa – a mesma que está nas ruas e cuja camada jovem está amplamente desfavorecida pela realidade atual. São mais de 35% de jovens gregos sem emprego e, pior, desprovidos de qualquer perspectiva de melhora.

É impossível desvincular esta crise econômica de uma gigantesca crise política. E, para deixar muito claro, a economia pode parar. A Grécia é um estado democrático e muito possivelmente não irá procurar resolver o assunto apenas com o poder coercitivo. Se a massa de trabalhadores simplesmente se recusar a voltar a produzir, a polícia e as forças armadas não deverão recorrer a um banho de sangue como forma de pôr o trem de volta nos trilhos.

O que pode acontecer a partir disso é uma tremenda e terrível incógnita. O colapso econômico que já existe pode ser acrescido também da falência política. E este cenário nem é tão improvável assim. Para mudar de vez a realidade que está posta basta somente que uma – apenas uma – das instituições a serviço da ordem e do governo decida refletir sobre o papel que deve exercer. E se a instituição for o exército, por exemplo? Vale lembrar sempre que graças à adesão das forças armadas aos manifestantes no Cairo o presidente Hosni Mubarak foi deposto.

Além de a Grécia já ter sido governada pelos militares, os soldados são gente comum. A hora em que um movimento interno questionar a fidelidade aos bancos em detrimento dos interesses dos cidadãos, a dinâmica será completamente diferente.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Crise na Grécia: população comum é a maior vítima do pacote de austeridade

A Grécia está prestes a entrar em guerra civil. Não se trata de uma guerra entre distintas facções ideológicas, mas de um conflito aberto e polarizado entre camadas distintas. De um lado, estão os políticos que pretendem aprovar nos próximos dois dias o pacote de 25 bilhões de euros em cortes públicos, aumentos de impostos e privatizações. Do outro, a população, que não teve nada a ver com a maquiagem econômica do governo anterior e decidiu descruzar os braços justamente parando de trabalhar. E isso faz bastante sentido.

Parar de trabalhar não é apenas uma oposição previsível a esta loucura protagonizada pelos políticos gregos. A greve geral de dois dias colocada em prática pelos dois maiores sindicatos do país carrega uma mensagem intrínseca sofisticada: por que manter a economia produtiva se justamente os responsáveis por isso são os grandes prejudicados pela perversa equação econômica enfiada goela abaixo pelos Estados mais “economicamente saudáveis” da União Europeia? E, para ser franco, pouco importa se o objetivo da greve seja esse também. O que vale é esta interpretação possível.

O que está acontecendo neste momento na Grécia é uma tentativa de punir coletivamente toda a população. Não é à toa que 80% dos gregos se opõem ao plano de austeridade. Quem seria louco de apoiar um projeto que, sob qualquer perspectiva, prevê absurdos tais como o aumento de impostos aos que recebem salário-mínimo ou a privatização de quase 20% da empresa responsável pela produção de energia ou a privatização de 50 bilhões de euros em bens do Estado?

Tentar convencer os gregos – justamente o povo que inventou o conceito de cidade, democracia e tantos outros valores que regem o Ocidente – é como argumentar sobre uma espécie de suicídio nacional e acreditar que toda uma população seja capaz de aceitar este discurso. É loucura ou ingenuidade – talvez uma mistura dos dois – imaginar que cidadãos de um país estejam dispostos a esquecer de uma vez por todas o próprio princípio da noção de Estado nacional. A confusão é tão grande que o governo socialista grego é o responsável por tentar levar as pessoas a considerarem a ideia de que os políticos e administração pública devem empenhar todos os seus esforços na aprovação deste pacote de austeridade.

Ah, o pacote de austeridade é considerado fundamental pelos altos-funcionários da UE e pelos governos de França e Alemanha para manter em funcionamento o sistema financeiro internacional, os bancos franceses e alemães e a própria moeda europeia. Ou seja, os gregos comuns deveriam se colocar ao lado de seu próprio governo e aceitar todas as restrições práticas a partir de agora em nome da salubridade de bancos privados estrangeiros e deste ente sem rosto chamado de “sistema financeiro”. É sério que alguém espera convencer a população da Grécia com “poderosos” argumentos como esses?

Também é preciso dizer que, mesmo se aprovado, há divergências sobre se todos esses cortes representariam a melhor solução para a situação grega. Um grupo importante de economistas defende que seria preciso estimular a produção e o consumo, não o oposto. Aliás, a perversidade deste momento também está no fato de todo este grande projeto restritivo ser apresentado como a única alternativa – sendo que, está claro, não há nenhuma garantia quanto a isso.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Nova frota marítima a caminho de Gaza testa criatividade israelense

Assim como no ano passado, uma nova frota de navios abarrotada de ativistas internacionais pretende furar o bloqueio marítimo israelense a Gaza. Em 2010, a iniciativa foi muito bem sucedida. Se ela não atingiu seu objetivo declarado, conseguiu alcançar metas políticas muito mais significativas: a abordagem de Israel promoveu uma onda de condenação internacional ao Estado Judeu, deixando evidente a incapacidade do governo de Benjamin Netanyahu de enxergar um palmo além do óbvio. Fora isso, o isolamento de Jerusalém também foi seguido pelo esfriamento completo das relações com a Turquia, país cada vez mais importante no Oriente Médio.

Foto: embarque da frota em 2010

Apesar de tudo isso, apesar de todos os seríssimos prejuízos a Israel, Netanyahu parece estar disposto a repetir a fracassada estratégia de 2010. Tudo bem, errar uma vez é compreensível. Errar pela segunda vez e da mesma maneira é de uma burrice astronômica.

A velocidade das mudanças é incrível. Um ano e um mês após a monumental derrota de Israel, a região está completamente diferente. Hosni Mubarak não é mais o presidente egípcio, e o bloqueio a Gaza já deixou de existir. A nova administração do Cairo decidiu abrir a passagem de Rafah – que liga Gaza ao Egito – e, na prática, não há maiores impedimentos ao trânsito de bens e pessoas entre o território palestino e o egípcio. Israel argumenta que aceitaria receber o suposto carregamento humanitário a bordo dos navios que rumam para Gaza em algum porto israelense e diz contar com a aprovação das autoridades egípcias para que a carga também possa ser recebida na cidade de El-Arish, no norte do deserto do Sinai – e de lá seria repassada por terra para Gaza.

Tudo isso faria sentido se o bloqueio entre Gaza e Egito ainda estivesse vigente. Por mais que o temor israelense de que o carregamento a bordo dos navios possa incluir armas, este deveria ser o momento de calcular o menor dos prejuízos. É até bastante simples de entender: se houvesse mais do que ajuda humanitária no interior das embarcações e elas fossem descarregadas no Egito, o armamento chegaria a Gaza de qualquer maneira, na medida em que o bloqueio entre os territórios não existe mais. Agora, se Israel novamente abordar os navios e um novo confronto acontecer, o prejuízo aos israelenses será ainda maior.

A iniciativa de furar o bloqueio marítimo não se propõe meramente ao enfrentamento com os soldados de Israel em alto-mar. A ideia é, mais uma vez, criar um evento midiático e geopolítico que acabe por expor e isolar ainda mais o país. Isso aconteceu no ano passado e pode se repetir agora. O atual governo israelense não apenas parece incapaz de compreender e lidar com óbvio, como também oferece de presente alguns “brindes” a seus inimigos. Por exemplo, emitiu comunicado oficial em que alerta aos jornalistas estrangeiros a bordo do navio que eles poderão ser impedidos de entrar em Israel pelos próximos dez anos. Ou seja, justamente no momento em que a região está em processo de profunda mudança, Israel acaba por voluntariamente abrir mão de um de seus maiores diferenciais em relação a todos os países vizinhos: a liberdade de imprensa. A troco de nada, vale dizer (acabo de ler no New York Times que, demonstrando inteligência, o Escritório Geral de Imprensa israelense retirou o aviso e informa que os jornalistas poderão cobrir o evento sem qualquer restrição).

Inclusive, esta nova frota tem tudo para estar um tanto esvaziada. O número de participantes estimado inicialmente era de 1,5 mil. Agora, já se fala em no máximo 500. A Turquia, país que incentivou e financiou a empreitada do ano passado, sugeriu que a viagem fosse cancelada ou adiada, “por conta de fatos regionais mais relevantes” (o foco de Ancara está nos acontecimentos na Síria e no crescente contingente de refugiados provocado pela perseguição de Bashar al-Assad a seus próprios cidadãos).

Existe uma maneira interessante e criativa de Israel exercer seu direito de defesa. Basta permitir que os navios desembarquem em Gaza. Simples assim. Seria uma demonstração de compreensão sobre este novo mundo, em que atos midiáticos e de relações públicas podem muitas vezes ser mais importantes que argumentos políticos. Mas como Benjamin Netanyahu e seu ministro das Relações Exteriores, Avigdor Lieberman, parecem incapazes de perceber isso, a próxima quinta-feira promete mais um gol-contra deste governo.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Por que a Guerra do Afeganistão não favorece Barack Obama

O presidente Barack Obama fará um pronunciamento aos americanos na noite de hoje em que, apostam todos os comentaristas políticos, deverá divulgar algumas informações sobre o início da retirada das tropas do Afeganistão. Para quem não se lembra, durante a campanha presidencial, em 2008, ficou relativamente claro que o então fenômeno de mudança Obama considerava a guerra do Iraque um problema de George W. Bush, mas o Afeganistão era um caso a ser levado a sério, um conflito justificável porque o território era controlado pelo Talibã e também era o principal refúgio dos membros da al-Qaeda, responsável pelos atentados de 2001.

Com Osama Bin Laden morto e sua organização cada vez mais enfraquecida, o problema americano está em boa parte resolvido. Há alguns muitos dados interessantes e importantes que devem ser conhecidos e são peças fundamentais da decisão de Washington de começar a desmantelar a estrutura militar no país. A quase exatos 500 dias das eleições americanas, pesquisa do conceituado Pew Research Center mostra que 58% dos cidadãos americanos acreditam que os EUA provavelmente deverão alcançar seus objetivos no Afeganistão. Dos entrevistados, 56% são favoráveis ao retorno dos soldados o mais rapidamente possível. Mesmo entre os 34% dos que julgam que os EUA não terão sucesso e não conseguirão atingir as metas estabelecidas nesta guerra, 75% apoiam a remoção das tropas.

Ou seja, ordenar a retirada gradual dos militares americanos agrada a todo mundo. Seja qual for a ideologia ou a opinião sobre os rumos da política externa, uma maioria importante da população é favorável ao retorno dos soldados. Este é um dado importante e que pauta decisões por dois motivos: primeiro, porque estar ao lado da opinião pública favorece o objetivo pessoal de Barack Obama de buscar a reeleição; segundo, porque reafirma a imagem do presidente de ser o porta-voz da mudança. E em boa parte ocupar este perfil no imaginário é ser diferente dos candidatos e presidentes anteriores. Nada melhor do que estreitar a distância entre o pensamento institucional de Washington e da população.

Ordenar a diminuição considerável das forças em combate no Afeganistão também reafirma o compromisso – não cumprido, diga-se de passagem – de redução dos gastos militares. Num momento de crise, os EUA não apenas aumentaram muito as despesas na luta contra o Talibã, como também se viram envolvidos em mais uma guerra, a da Líbia – conflito que se imaginava curto, rápido e eficaz, mas que já está em curso há três meses.

No entanto, é bom que se saiba que Obama pode ser – e vai ser – muito contestado durante a próxima campanha presidencial. Os dados reais da guerra são muito pouco favoráveis a ele. Quando a disputa eleitoral começar nas urnas, o número de militares americanos no Afeganistão deve chegar a 70 mil. Ou seja, mais do que o dobro dos 34 mil soldados que estavam no país quando o atual presidente tomou posse. Hoje, há 102 mil militares dos EUA em combate em território afegão. Em 2008, ainda durante a presidência de George W. Bush, o gasto anual com a empreitada foi de 43 bilhões de dólares. Em 2011, vai chegar a 118 bilhões. Para completar, desde 2001, 1.632 americanos morreram no Afeganistão. Deste total, 696 (43%) perderam suas vidas durante o mandato de Barack Obama.

Vai ser complicado se defender desta saraivada de dados negativos.

terça-feira, 21 de junho de 2011

A Grécia a caminho da falência

Enquanto as passeatas na Espanha mobilizam milhares de pessoas, a insolvência do Estado grego não inspira melhores dias. O primeiro-ministro George Papandreou passa por votação no Parlamento, onde os demais países europeus esperam que seja aprovado o pacote que possivelmente não salvará a vida financeira da Grécia, mas deve frear interminávelo ciclo de débitos. As medidas de austeridade são as mesmas adotadas pelos espanhóis e por muitos líderes do continente. A ideia de sempre é cortar gastos. Na prática, isso significa que as pessoas comuns – que nada tiveram a ver com os gastos excessivos promovidos pelos políticos e com a maquiagem fiscal que enrolou investidores – vão pagar não apenas com seus bolsos, mas também com as próprias vidas.

E, claro, isso não tem nada de justo. Por isso, mesmo aprovados, os planos restritivos serão enfrentados por manifestantes enfurecidos, pobres, desempregados e desprovidos de qualquer expectativa de melhora. As decisões são tomadas de cima para baixo. Neste caso e em tantos outros do gênero, os cidadãos serão os responsáveis por salvar a pele de grandes instituições. Os membros da União Europeia depositam sobre o governo grego a culpa e a esperança pela continuidade, inclusive, da moeda comum, o Euro.

Existe também a possibilidade de a Grécia se tornar o primeiro país a abandonar a zona do euro. Esta é uma possibilidade remota, mas que mostra como a situação é desesperadora. A briga no interior do bloco é grande. Há um racha entre os Estados considerados centrais – Alemanha, França e Reino Unido – e os “periféricos” – Grécia, Espanha, Portugal, Itália e Irlanda. Ninguém sabe onde isso vai dar, mas há quase um consenso de que os cidadãos desses países mais saudáveis economicamente carregam os periféricos nas costas. Há um equívoco neste pensamento, uma vez que está repleto de um preconceito já muito familiar aos europeus e que também acaba reafirmando a própria versão institucional de divisão de responsabilidades.

Mesmo publicações importantes, como a Economist, acabaram entrando no jogo e têm usado expressões perigosamente preconceituosas como “possibilidade de contágio a partir da periferia”. Estranho isso, não? Como alternativa à falência grega, uma boa medida sugerida seria unificar ainda mais a política econômica da UE, de forma a evitar possíveis erros que provocam grandes crises como essa. Esta me parece ser não apenas uma solução dentre algumas outras, mas, na verdade, a única possibilidade de evitar mais caos. A questão é que ela esbarra num tabu muito caro aos países do bloco: o individualismo estatal. Afinal, não me parece provável que todos os países estariam dispostos a entregar seus destinos econômicos ao Banco Central Europeu, por exemplo. Curiosamente, este momento de crise ofereceria a possibilidade de os países refletirem sobre o próprio futuro do bloco. Quais os limites da unificação? Porque se a ideia inicial era criar um Estado supranacional em algum momento, agora existe uma oportunidade real de dar passos concretos rumo a este projeto.

Quem não tem muita alternativa é a Grécia. Seja lá quais forem os caminhos escolhidos, os gregos já estão certos de que o país estará falido daqui a pouco, em 2015. Seus débitos serão de propriedade da própria EU, do Banco Central Europeu e do FMI. Este é um futuro nada glorioso.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

A origem das manifestações na Espanha

As manifestações sociais europeias estão conquistando cada vez mais adeptos. O movimento espontâneo, democrático e sem liderança aparente é francamente inspirado na Primavera Árabe. E este já é um fato bastante curioso por si só. Aliás, aponta para este novo mundo que aos poucos substitui a dinâmica do século passado. A implosão da ordem que determinava a replicação das diretrizes mundiais a partir do norte do planeta já é uma realidade. Ela pode deixar de existir no futuro, mas não agora.

Os protestos no mundo árabe já constituem marcas de mudança e retroalimentação. Cidadãos comuns desvinculados de filiações partidárias – em sua maioria – foram às ruas inspirados pelo conceito ocidental de democracia, dentre outros valores e reivindicações. Lutaram para depor regimes autocráticos que os impediam de exercer livre expressão, mas também representavam um Estado falido desprovido de competência para oferecer emprego, saúde, moradia e educação. Todos esses itens foram realidade consolidada principalmente na Europa do século 20, continente que se tornou sinônimo de qualidade de vida até bem pouco tempo, quando governos de centro-direita e de direita reduziram salários, adotaram pacotes de austeridade e buscaram a redução das funções do Estado.

Neste domingo, 200 mil espanhóis foram às ruas das principais cidades do país em busca deste passado tão recente e tão perdido. É uma continuidade do movimento que começou em 15 de maio, em Madri, e que, por sua vez, tem origem no sucesso das marchas populares realizadas em Egito e Tunísia, em março. Neste mundo cheio de velocidade e mudança, fica claro que há um tanto de cultura cibernética em tudo, inclusive na ideologia não-ideológica. E quando me refiro à internet não quero simplesmente fazer menção à articulação por Twitter e Facebook, mas à própria natureza dos protestos. Não há traços marcantes de autoria, bem como não há uma linha reta de acontecimentos. Os movimentos estão naturalmente articulados e se inspiram mutuamente.

No final das contas, a origem de grandes manifestações como essas é bem conhecida da história humana. O desespero, a pressão que se torna insuportável. Aos cidadãos de Egito, Tunísia, Iêmen, Síria, Marrocos a corrupção de seus políticos, o desemprego, a falta de perspectiva. A espanhóis e gregos, o desemprego de 40% dos jovens e a sensação de traição. Se nos países árabes o governo e as instituições sempre representaram uma grande farsa, os europeus não parecem dispostos a quebrar seus paradigmas em nome de metas econômicas que, dentre outros objetivos, devem manter economias “saudáveis”. É complicado empurrar aumento de impostos e redução de salários em nome de algo tão vago e disforme.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Crise síria: governo não reduz violência porque não sabe fazer isso

Como tem acontecido ao longo deste processo de luta por mudanças nos países árabes, as sextas-feiras costumam ser dias agitados. Isso tem a ver não apenas com o dia semanal sagrado islâmico, mas também com o fato de as mesquitas serem refúgios políticos, lugares onde as pessoas podem se encontrar, discutir e se organizar. Na Síria, a situação continua a representar um impasse a perder de vista. Primeiro porque a comunidade internacional não consegue criar mecanismos de pressão capazes de impedir que o regime Assad dê prosseguimento às perseguições aos manifestantes; além disso, o presidente sírio não se mostra lá muito disposto a oferecer reformas minimamente convincentes; por último, os manifestantes não parecem estar cansados a ponto de recuarem em suas reivindicações.

Este cenário representa uma complicação. Não há nada que aponte para um acordo entre essas posições em curto prazo. No caso dos atores que já estão em lados opostos – governo e manifestantes – os últimos acontecimentos não convergem para qualquer forma de entendimento ou distensão. E o foco sobre a Síria e toda esta confusão criada a partir da exacerbação da violência é culpa do próprio Bashar Assad. Os protestos iniciais não foram realizados em nome de mudanças estruturais e menos ainda da deposição do presidente, mas contra a brutalidade policial.

A questão é que regimes autocráticos não toleram vozes dissonantes. Isso se aplica à política formal – não há oposição verdadeira, partidos organizados etc – e também a qualquer forma de discordância. Como no caso o alvo era um dos pilares do Estado – e o poder coercitivo costuma exercer papel central em situações deste tipo –, o governo reagiu como sabe. Ou melhor, como não sabe. Perdeu a mão e o controle da situação. O número de mortos já ultrapassou a casa dos 1,3 mil. E pelo motivo óbvio de que, por definição, Estados policialescos simplesmente não tem bom-senso. A natureza autoritária intrínseca a esses regime provoca uma espécie de autoconfiança sem limites, levando seus líderes a acreditarem que podem fazer o que bem entenderem internamente.

E talvez isso fosse verdade até bem pouco tempo. É claro que não se pode creditar o sucesso das manifestações atuais no mundo árabe exclusivamente às novas tecnologias de comunicação. Já escrevi bastante sobre isso e acredito mesmo que o sucesso no Egito, por exemplo, seja explicado pela simbiose entre a capacidade de mobilização e a percepção do exército de que havia chegado a hora de abandonar o presidente Hosni Mubarak. De qualquer forma, a possibilidade de burlar sistemas de controle e vigilância estatais não pode ser desconsiderada e exerce papel fundamental nos movimentos atuais. Principalmente porque países com alguma pretensão internacional que vislumbrem associar seu discurso oficial a valores humanitários não querem ser percebidos como aliados de um governo que ataca indiscriminadamente seus próprios cidadãos.

Este raciocínio tem levado a Turquia – principal aliado de Assad até agora – a se distanciar do regime sírio. Esta é uma medida inteligente por parte dos turcos. Principalmente porque quem não fizer isso corre risco real de afundar junto com o presidente da Síria. Para se ter ideia, nas manifestações internacionais contra a violência de Damasco já é possível perceber uma mudança de comportamento sutil e importante: bandeiras de China, Rússia e Irã tem sido queimadas pelos militantes a favor dos rebeldes.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Novo Bin Laden, nova al-Qaeda

Após a morte de Osama Bin Laden, há 45 dias, algumas questões passaram a assombrar o imaginário internacional. A primeira delas seria sobre um eventual sucessor. Na esteira dela, o futuro da organização terrorista, cujo maior golpe – sofrido pelas mãos de seus inimigos mais óbvios – acontecia justamente no momento de outro golpe, possivelmente mais poderoso do que o assassinato de seu líder e fundador: a própria existência de manifestações populares e majoritariamente pacíficas nos países árabes que reivindicavam democracia e outros tantos valores nada compatíveis com a ideologia da al-Qaeda.

O egípico Ayman al-Zawahri é o novo Bin Laden, com o perdão da simplificação. Alguns aspectos de sua biografia poderiam ludibriar os mais incautos. Por exemplo, nascido e criado em família rica, formou-se em medicina. Se o caminho parecia apontar para a forma mais evidente de valorização da vida humana, vale dizer que antes mesmo da faculdade, aos 14 anos de idade, ele já havia se filiado à Jihad Islâmica. Na al-Qaeda, é reconhecido por ser um estrategista e também pela introdução de métodos inovadores: os atentados suicidas e células terroristas independentes.

É preciso dizer que, apesar de alguma mobilização em torno do anúncio desta quinta-feira, a organização está enfraquecida. A morte de Bin Laden foi um golpe emblemático não apenas pelo carisma do terrorista, mas por sua capacidade de unir os diferentes segmentos da al-Qaeda. Além disso, a estrutura de lealdade de seus membros não pode ser analisada com um olhar ocidental, como observa Jason Burke, no Guardian:

“Você não pode jurar fidelidade à organização. O juramento, ou ‘bayat’, é a apenas um indivíduo. Isso quer dizer que a lealdade pessoal dos seguidores de Bin Laden não se transfere automaticamente a Zawahri. Para aspirantes ao jihadismo (…) ser um seguidor de Zawahri é uma proposta muito menos atraente do que ser um seguidor de Bin Laden”, escreve.

E esta nem é a maior dificuldade. A al-Qaeda precisa se reinventar para continuar a existir. Os objetivos alcançados pacificamente pelos movimentos conhecidos como Primavera Árabe são muitos mais palpáveis – e atingidos em muito menos tempo. Por isso, em seu primeiro comunicado oficial, Zawahri citou a jihad contra Israel como uma meta de seu grupo. Esta não era uma preocupação primordial dos membros da al-Qaeda, mas precisou ser incluída porque a questão envolvendo uma solução permanente e aceitável aos palestinos é um assunto que comove a opinião pública dos países árabes e islâmicos. O problema é que, mesmo neste quesito, o grupo terrorista dá uma bola fora e inatingível: seu objetivo não é a criação de um Estado palestino, mas a destruição de Israel.

Este tipo de argumento talvez encontre eco em algumas camadas das distintas sociedades islâmicas. Mas por mais que os jovens egípcios, tunisianos e iemenitas não tenham lá qualquer apreço pelo Estado judeu, eles têm demonstrado um profundo senso de pragmatismo. E, no caso do conflito palestino-israelense, quem é pragmático sabe que o Estado de Israel não vai deixar de existir.

Se a al-Qaeda foi pioneira ao aplicar o sistema de franquias aos terrorismo, ela agora parte para a introdução prática de mais um conceito de marketing. Está em busca de um nicho de mercado, onde estão concentrados os mais radicais. O problema para o grupo é que este discurso encontra cada vez menos adeptos.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Turquia: Erdogan vence e reafirma influência regional

Uma das eleições mais importantes do mundo terminou como se esperava. O partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), de Recep Tayyip Erdogan, recebeu 50% dos votos na Turquia. Não havia qualquer dúvida sobre a ampla aprovação popular do AKP, pelo contrário. A questão era saber se o partido conseguiria ganhar cadeiras suficientes no parlamento para realizar reformas quase de maneira unilateral, sem a necessidade de negociar com opositores. Erdogan precisará diminuir seu ímpeto para alterar a Constituição – como expliquei por aqui na semana passada – e terá de encontrar canais de diálogo com as demais legendas.

Dos 550 assentos do parlamento turco, o AKP levou 326. Não é pouco; Inclusive é um número bem próximo dos 330 necessários para que o partido propusesse um amplo referendo sobre reformas. Para tranquilidade da oposição, há margem de segurança à maioria absoluta (367 cadeiras) que permitiria realizar todos esses projetos de alteração política sem necessidade de consultas com os demais partidos.

Erdogan é hoje o líder mais popular nos países árabes e islâmicos. Este é um fato incontestável que celebra a inteligência e a rara capacidade de adaptação de um político repleto de perspicácia. Mesmo no discurso deste domingo, quando muitos acreditavam que ele demonstraria alguma contrariedade, conseguiu usar a retórica a seu favor.

“Acreditem em mim, Sarajevo venceu hoje tanto quanto Istambul, Beirute, Izmir, Damasco, Ancara, Ramallah, Jenin, Cisjordânia, Jerusalém e Diyarbakir (cidade no sudoeste da Turquia”, disse.

O primeiro-ministro turco sabe do poder de atração que exerce sobre o mundo árabe e islâmico e faz questão de surfar neste potencial. Seu projeto de liderança regional fica cada vez mais claro e ele quer mais é deixar tudo muito evidente. Quando se transforma em porta-voz de árabes e islâmicos e não apenas dos turcos, encontra eco nos demais países porque passa a ser a alternativa viável. E justamente no momento em que boa parte dos Estados do Oriente Médio é palco de manifestações populares que buscam um modelo democrático capaz de conciliar as demandas por liberdade e a religiosidade que envolve muitos de seus cidadãos.

Nem EUA, nem Irã ou Síria. A Turquia é um modelo político viável que equilibra democracia e islamismo. Esta é a mensagem internacional do primeiro-ministro turco. É graças a ela que tem conseguido se transformar em polarizador regional. Por isso que a aliança com Assad, na Síria, corre riscos. Erdogan abriu as fronteiras aos refugiados sírios porque seu projeto político pessoal é mais importante que a amizade ou admiração pelo presidente do país vizinho.

Curiosamente, no entanto, os críticos domésticos de Erdogan são sutilmente atropelados. Há sete mil páginas na internet banidas devido a críticas pessoais ao político ou ao regime; há uma lei em discussão que pretende aprovar o banimento de uma lista de palavras na internet; 57 jornalistas estão presos; Hoje, no ranking de liberdade de imprensa, a Turquia ocupa a 138ª colocação (em 2008, ocupava o 102º lugar), atrás de Estados notadamente antidemocráticos, como Zimbábue e Argélia.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Mesmo protegido por aliados poderosos, governo sírio precisa pôr o pé no freio

Comentei ontem sobre o impasse na Síria e, dentre outros assuntos, mencionei a participação da Turquia. A London School of Economics (LSE) publicou artigo em que aborda o papel cada vez mais importante de Ancara nas relações regionais com o mundo árabe. Um dos mais importantes centros de pensamento ocidental confirma academicamente a trágica realidade. Os conflitos atuais e a perseguição aos opositores ordenada pelo regime de Bashar al-Assad já causaram a fuga de 1,6 mil sírios para a Turquia – os dois países compartilham 850 quilômetros de fronteira.

Foto: campo de refugiados sírios na Turquia

Abordei também a tentativa de Rússia e China de barrar qualquer resolução mais contundente no Conselho de Segurança da ONU. Apresentada por Grã-Bretanha, França, Alemanha e Portugal, o texto é mera maquiagem, uma vez que não faz grande pressão sobre Assad. De qualquer maneira, China e Rússia são contrárias ao rascunho pelos motivos que apresentei ontem, mas também por outras razões ainda mais egoístas: seus respectivos governos consideram que a sistemática perseguição promovida por Damasco contra a própria população é uma questão interna síria. Os dois países, na verdade, legislam em causa própria.

Russos e chineses cometem seus abusos particulares contra jornalistas e opositores políticos. Para seus governos, qualquer cenário onde a comunidade internacional intervenha em nome de direitos humanitários ou argumentos do gênero é precedente para passos que, futuramente, poderiam causar prejuízos a seus regimes. Esta é uma visão pragmática, perversa e injusta das relações internacionais. E também é uma interpretação míope da própria função da ONU e de seus muitos organismos.

Os membros da comunidade internacional não devem repetir, pelo menos por ora, as ações que estão em curso na Líbia. Principalmente porque não há unanimidade quanto a isso e também devido ao poder regional sírio e de seus aliados. Concordo com esta visão. A Síria não é a Líbia, quer dizer, Damasco tem seus próprios pilares de sustentação geopolítica – Irã, Turquia, China, Rússia e os atores não estatais Hamas e Hezbollah. Isso é verdade. Mas não acredito que este é o tipo de aliança capaz de segurar uma eventual tentativa de Assad de provocar uma carnificina interna.

Limitado os poderes e abusos do presidente sírio está a tecnologia. Se perder a mão e a violência for ainda mais desmedida, não haverá apenas rumores sobre uso da força, mas também imagens. E elas são poderosas e praticamente impossíveis de serem contidas em grande volume. A opinião pública ocidental não permanecerá calada diante de seguidos vídeos produzidos por câmeras de telefones celulares e exigirá algum tipo de resposta mais firme dos governos. Mesmo Rússia e China não defenderão Assad por tempo indeterminado. E aí a situação pode mudar completamente. Além disso, a Turquia irá pressionar ainda mais o presidente sírio se o fluxo de refugiados continuar.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Crise doméstica na Síria envolve o mundo todo

A Síria oferece a possibilidade de um novo tipo de olhar sobre a Primavera Árabe. Ao contrário do ocorrido em Egito e Tunísia, o exemplo sírio não se encaixa perfeitamente no modelo previsto e admirado pelo Ocidente. Os manifestantes no país querem sim a mudança do regime, liberdade de expressão e imprensa, eleições livres, oportunidades para construir uma vida melhor etc. Tudo isso está dentro do pacote de reivindicações. A diferença, no entanto, é o comportamento dos envolvidos.

Na Síria, o Estado policialesco exerce controle ainda maior sobre a população. Se egípcios e tunisianos ainda encontravam brechas no sistema, o governo de Bashar al-Assad pôs em prática toda a sorte de repressão sem maiores constrangimentos. Nos dois países árabes que conseguiram derrubar os líderes autoritários, curiosamente, a proximidade de Ben Ali e Hosni Mubarak com o Ocidente impedia excessos. A Síria não precisava se envergonhar. Suas alianças com Irã, Hamas e Hezbollah permitiam a manutenção do regime sem condenações internacionais. Tudo em nome, claro, de uma suposta “resistência”. E aí Assad sempre fez muito bom uso de teorias conspiratórias bastante populares na região.

A situação agora está para mudar justamente devido à pressão internacional. Se a Líbia foi invadida em nome do senso de justiça da comunidade internacional, é impossível assistir passivamente ao genocídio cometido por Assad contra os próprios cidadãos. O Ocidente criou expectativas sobre a Primavera Árabe, e a população comum do Oriente Médio respondeu. Com os sírios não é diferente. A diferença mesmo está no rumo dos acontecimentos. Em Egito e Tunísia, as manifestações foram bem sucedidas em boa parte graças à adesão do poder coercitivo. As passeatas basicamente pacíficas não sofreram repressão violenta dos respectivos exércitos. Em pouco tempo, inclusive, as forças armadas perceberam a dimensão do que acontecia e se aliaram aos manifestantes. Na Síria isso ainda não está acontecendo. Ou, pelo menos, não é um fenômeno em larga escala.

Desde o início do levante, em 18 de março, já são mais de 1,1 mil mortos. Há casos que se tornam simbólicos, como a tortura e morte pelas forças oficiais de um menino de apenas 13 anos de idade. E, como no Iêmen, parte da população optou por partir para um confronto aberto, causando, inclusive, a morte de 120 soldados do governo na última segunda-feira. A expectativa é de mais violência. A família Assad não costuma responder com sutileza quando se sente coagida desta maneira. Foi assim no entorno da cidade de Hama, em 1982. Na ocasião, o pai de Bashar, Hafez, usou até a força aérea para acabar com uma rebelião liderada pela Irmandade Muçulmana, resultando no assassinato de mais de dez mil cidadãos.

Com este histórico macabro à espreita, a população faz o que pode. E isso significa fugir para a Turquia, país vizinho que mantém boas relações com Damasco e que aboliu a necessidade de retirada de visto para permitir a entrada de visitantes sírios. Relatos dão conta de que mais de 400 pessoas tenham cruzado a fronteira e conseguido passar para o lado turco. E este número deve subir ainda mais. A questão é que o cenário de uma guerra interna na Síria envolve interesses do mundo todo.

O caso da Turquia é bastante óbvio. Apesar de os turcos não serem árabes, são muçulmanos. E a grande maioria da população é sunita, exatamente como a maior parte dos sírios. Às vésperas de eleições parlamentares – sobre as quais comentei por aqui na sexta passada –, o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan não vai assistir à morte de sunitas logo ali ao lado de braços cruzados. Pelo contrário. É claro que Erdogan não vê com bons olhos a possibilidade de uma enxurrada de imigrantes, mas barrá-los na fronteira é algo impensável neste momento. O líder turco já tratou de receber os sírios em fuga e clamou a Assad que interrompa o assassinato em massa.

O Ocidente reage moderadamente. Europeus e americanos exigem que Assad faça reformas – repare que os comunicados ainda não pedem sua saída – e, agora, França e Grã-Bretanha estão decididas a levar o assunto ao Conselho de Segurança da ONU. O texto vai condenar a repressão e pedir livre acesso de ajuda humanitária ao país. O assunto vai envolver outros membros e provocar uma discussão interessante. Rússia e China já manifestaram oposição a resoluções contra a Síria anteriormente. A China porque criou uma linha de política externa pragmática e com tons fortemente antiamericanos. A Rússia porque mantém sua esquizofrenia dos últimos tempos e ainda se considera uma superpotência. Como sírios e russos eram aliados durante a Guerra Fria, Moscou pretende insistir em sua viagem solitária de volta ao passado. Vai entender.

Ah, o Brasil pode votar contra também, uma vez que o governo brasileiro diz temer a possibilidade de que a resolução abra caminhos para a intervenção estrangeira no país. Acho pouco provável uma ação internacional na Síria em curto-prazo. A Síria é um ator regional muito importante e que, se invadida, pode abrir a tampa da caixa de Pandora do Oriente Médio devido a suas alianças com Irã, Hamas e Hezbollah.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Humala no Peru: mais para Lula do que para Chávez

Acho que vale a pena fazer uma parada estratégica aqui pela América Latina. O grande tumulto em torno da vitória de Ollanta Humala no Peru é a reafirmação de um roteiro já bastante conhecido dos brasileiros. Quando nesta segunda-feira as ações negociadas no país andino tiveram a maior queda da história (12,5%), lá estava novamente o mercado mostrando sua vontade política. E o mercado é uma entidade quase religiosa, sem rosto e sem nome, e com muito poder. Curiosamente, no entanto, toda esta força tem seu ponto fraco. E, ainda mais estranho, é que ele sente medo – algo terrível e ironicamente humano.

É assim contraditoriamente mesmo que as operações e reações do mercado são meramente noticiadas sem maiores explicações. E quando mencionei que esta atitude era familiar ao Brasil é porque se parece bastante com o frenesi causado pela primeira vitória eleitoral de Lula, em 2002. Havia temores de que o então presidente eleito fosse pôr em prática novo modelo econômico que colocasse em risco, justamente, o livre-mercado. Como se sabe, nada disso aconteceu. E o mundo dá voltas mesmo. Agora, quem diria, Humala tenta acalmar a situação mencionando Lula sempre que pode. O peruano argumenta que, assim como o brasileiro, não pretende transformar o país a ponto de expulsar o investimento estrangeiro. Da mesma forma que Lula, pretende distribuir riqueza.

No caso do Peru, isso é até mais fácil, dependendo do ponto de vista. A economia é hoje a que mais cresce no continente – incríveis 7% nos últimos 13 meses. O problema é que esta mesma fonte de riqueza pode se transformar na origem de problemas sociais graves. O país conseguiu este “milagre” econômico graças à exploração desmedida dos minerais e, principalmente, do atropelamento dos direitos dos povos que vivem no entorno das fontes. Isso inclui também a água. Aliás, não é desconhecida da região Andina a privatização da água. Isso já aconteceu na Bolívia pré-Morales. O novo presidente deve abordar esta questão. E ninguém sabe ao certo o que pode acontecer a partir daí.

A Eleição de Humala assusta os mercados por tudo isso. O ciclo financeiro virtuoso permanecia em curso em boa parte devido à promessa por parte de empresas privadas estrangeiras de investir mais de 40 bilhões de dólares no país. Isso iria acontecer desde que, é claro, o governo peruano continuasse a deixar de lado a discussão da regulamentação sobre a exploração de ouro, prata e cobre. Este é o tipo de dinâmica que lembra um pouco a da América Latina do século 16. É por aí mesmo. Humala é o penetra nesta festa do mercado e por isso ele sente “medo”.

É claro que também há muito confete a adornar este temor todo. Em parte culpa do próprio Humala. O fato de ele ser ex-comandante do exército é importante. O fato de, em 2000, ter tentado aplicar um golpe contra o regime do ex-presidente Alberto Fujimori é outro dado ainda mais importante. A proximidade com Hugo Chávez é simplesmente uma reafirmação do estereótipo do líder latino-americano contemporâneo. De toda a forma, o presidente eleito parece mais interessado em ser o novo Lula do que ser mais um Chávez.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Israel perde mais uma batalha

Mais uma vez, a fronteira entre Israel e Síria foi palco de confrontos entre as forças militares israelenses e manifestantes sírios que tentaram cruzar a fronteira para o interior do Estado judeu. Menos de um mês depois de evento bastante similar, foi a vez de, segundo explicações dos envolvidos no protesto, lembrar o início da Guerra dos Seis Dias. Esta nova tática de manifestação é tão simples quanto eficaz. Ela reconstrói aos olhos da comunidade internacional a poderosíssima narrativa que polariza fracos e fortes, opressores e oprimidos.

Escrevi sobre isso em maio. Na época, disse que esta nova estratégia iria se repetir. Se antes havia alguma dúvida, agora está muito claro que este tipo de operação deve dar o tom nas fronteiras de Israel a partir de agora. Ela serve não apenas aos palestinos, mas também aos países árabes que se mantêm em confronto com Israel. Síria e Líbano sabem da dificuldade de encarar militarmente os israelenses. Por isso, decidiram mudar o foco das provocações. No lugar de bombas e tanques, manifestantes desarmados que, simples assim, burlam a soberania do país com seus próprios corpos.

Segundo grupos de oposição ao presidente sírio, Bashar Assad, cada um dos envolvidos na operação deste domingo teria recebido mil dólares do governo. Damasco teria prometido dez mil dólares a cada família de militante eventualmente morto durante a tentativa de cruzar a fronteira. Levando-se em consideração que o salário médio na Síria é de 200 dólares por mês, as cifras têm grande poder de sedução. A Assad o evento é duplamente útil. Enquanto seu regime tirou a vida de mais de mil cidadãos nos últimos três meses, aumentar a tensão com Israel tem o óbvio objetivo de acalmar a situação doméstica. Além disso, sensibiliza a opinião pública árabe – que assiste igualmente aflita ao genocídio popular cometido não apenas na Síria, mas também no Iêmen.

Operações desta natureza conseguem estar na crista da onda do mundo contemporâneo. São bem sucedidas porque acertam na política a partir da criação de eventos mais midiáticos e menos militares – pelo menos do ponto de vista dos manifestantes. Artigo publicado pela imprensa oficial síria mostra bem a visão bastante pragmática de seus idealizadores: “nem nós, nem a região temos um futuro natural à sombra da existência de Israel. E não há lugar para Israel em nosso futuro natural ou da região”. Neste caso, fica muito claro que, quando as fronteiras de Israel são invadidas, não é a localização das linhas divisórias que estão sendo questionadas, mas a própria existência de fronteiras israelenses. Eventos deste tipo não são criados para discutir onde o Estado palestino será criado ou qual será sua dimensão ao lado de Israel. Longe disso.

Manifestações como a de domingo têm também grande sucesso porque contam com o despreparo de Israel. Nem as lideranças políticas, nem as militares conseguem encontrar uma forma menos desastrosa de resposta. Cada sírio morto em combate será sempre contabilizado como um gol-contra das autoridades israelenses. Não adianta argumentar que se trata de uma provocação de Assad, nem reivindicar o direito à soberania. Tudo isso pode ser verdade, mas não convence. Simplesmente porque se trata de uma argumentação linear, racional. E ela jamais será capaz de superar as emoções causadas por imagens de manifestantes mortos. A narrativa polarizada e estomacal que coloca em lados opostos a iniciativa popular (por mais que não seja espontânea, ela é percebida assim. E é isso o que importa) e os soldados israelenses já é intrinsecamente vitoriosa. E por isso ela será repetida muitas e muitas vezes. Como tudo o que diz respeito ao conflito árabe-israelense (e ao conflito israelense-palestino, em particular), ela atingirá seu auge em setembro deste ano.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Eleições na Turquia: Erdogan a caminho do poder. De novo

Em meio aos trágicos acontecimentos no Oriente Médio, um assunto importante ainda permanece intocado, distante do noticiário brasileiro: as eleições parlamentares turcas que serão realizadas no próximo dia 12. A Turquia está longe de poder ser esquecida como ator regional. O Estado turco é hoje uma potência mundial. Este status é inquestionável diante do cenário mais amplo, mas é compreensível que o país seja muitas vezes esquecido. O governo de Ancara se enquadra na categoria de força emergente deste novo mundo.

Para quem não se lembra, a Turquia esteve envolvida num dos episódios regionais mais importantes do ano passado: a empreitada da frota pró-palestina que tentou furar o bloqueio israelense a Gaza. O caso não apenas consolidou o progressivo distanciamento entre Israel e Turquia como também turbinou a imagem do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan. Elevado à posição de um dos mais populares líderes de países islâmicos e árabes, Erdogan exerce grande fascínio doméstico. Seu Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) deve ser o grande vencedor do pleito dos próximos dias.

A legenda tem tudo para levar a maior parte das 550 cadeiras do parlamento. Se conseguir 330 vagas, Erdogan conseguirá reescrever a constituição do país sem maiores problemas. De fato, existe uma unanimidade quanto à necessidade de uma nova constituição, uma vez que a atual foi escrita após o golpe de Estado de 1980. É preciso dizer, no entanto, que Erdogan consegue ter sucesso com a mesma intensidade que provoca polêmica. Por exemplo, pessoalmente excluiu 200 candidatos do AKP considerados menos leais e substituiu-os por outros. Seus aliados são acusados de terem divulgado material em que membros da alta-cúpula do partido nacionalista MHP aparecem traindo suas mulheres. Um deles, inclusive, foi filmado enquanto mantinha relações com uma menina de 16 anos de idade.

Na Turquia, não é segredo para ninguém suas ambições de ocupar a presidência e dar poderes de verdade ao cargo. Assim como em outros países, a função por ora não tem lá grandes atribuições. Eventualmente, no entanto, a partir de modificações nas leis nacionais, a presidência pode ser uma espécie de brecha para Erdogan se manter por mais dois mandatos na cúpula política.

Além de tudo isso, o país é hoje um fenômeno que causa algum embaraço à União Europeia. Por conta da crise de identidade do bloco, a adesão turca se transformou num problema. O ingresso de um Estado de ampla maioria islâmica alteraria um dos principais pilares do continente? Ninguém desenvolve muito bem o assunto porque, apesar de muita gente pensar assim – e aí há tantos líderes políticos que em conversas privadas abordam o tema –, há muitas outras questões que surgiriam se o assunto se transformasse numa pauta aberta. Mas os turcos são inteligentes o bastante para entender que, no final das contas, não parecem lá muito bem-vindos na UE. E Erdogan ganhou prestígio ao elevar a moral do país e colocar os europeus e suas dúvidas existenciais em segundo plano.

O primeiro-ministro conseguiu reverter a equação que aos turcos parecia perversa. Se a UE não quer saber da Turquia, não há problema. Ancara sabe que a situação econômica dos dias atuais está longe de ser favorável aos europeus. Enquanto os vizinhos do Ocidente penam para sair da crise, a Turquia é hoje a segunda economia mundial que mais cresce – a uma taxa média de 9% -, perdendo somente para a China. Erdogan inverteu a lógica e passou a investir pesado no Oriente. O afastamento de Israel é também uma medida econômica, que procura expandir mercados a partir de fatos políticos. Não por acaso, o país é hoje o principal investidor em Albânia, Kosovo, Bósnia, Curdistão, Líbia, Cazaquistão, Azerbaijão, Turcomenistão, Bulgária, Afeganistão, Iraque, Qatar e Argélia. E isso sem falar na aproximação estratégica com Índia, China e países do continente africano.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Iêmen: a guerra de todos contra todos

A situação no Iêmen chegou a um ponto catastrófico. Na terça-feira, escrevi sobre o impasse que tomou conta do país. Agora, o caos está definitivamente instalado e as perspectivas são as piores possíveis. A dinâmica da Primavera Árabe apreendida pelo Ocidente dava conta de manifestantes em busca da derrubada de ditadores. No caso específico dos conflitos iemenitas, a lógica é bem mais complexa. Fatalmente complexa.

Já se fala em dezenas de mortos desde o colapso da trégua entre forças de segurança e exércitos tribais. Um professor de ciências políticas da Universidade de Sana’a disse hoje ao Wall Street Journal que os cidadãos do país assistem a episódios de violência ainda mais graves que os registrados durante a guerra civil do final dos anos 1960. Na verdade, os ventos da Primavera Árabe acabaram por tomar outros rumos por lá. No lugar das reivindicações populares, o impasse deste momento gira em torno da disputa pelo poder travada entre distintos grupos.

De um lado, a já conhecida insistência do presidente Ali Abdullah Saleh de permanecer no cargo. Não apenas a população é contrária a ele, mas também setores com seus próprios interesses – e que não necessariamente buscam democracia, liberdade de imprensa, eleições justas etc. De um lado estão os combatentes da confederação tribal Hashid. De outro, o general desertor Ali Mohsen al-Ahmar, que comanda um exército bem armado de 40 mil soldados (dez mil homens a menos que o próprio exército nacional iemenita, do presidente Saleh).

Se já não bastasse esta confusão toda, Ahmar se aliou à confederação Hashid. Enquanto isso, há uma grande desarticulação de discurso e ninguém mais sabe onde foram parar as demandas originais. O partido islâmico Islah acabou ganhando mais força e recebeu o apoio de outros seis partidos de oposição. Há de tudo um pouco nesta coalizão: estudantes, militantes de esquerda, liberais, grupos religiosos moderados e radicais. No caso específico dos religiosos, os mais extremistas enxergam como liderança o xeque Abdul-Majeed al-Zindani, suposto fundador da al-Qaeda e reconhecidamente guia espiritual de ninguém menos que o próprio Osama Bin Laden.

Na capital Sana’a, os prédios públicos foram invadidos por homens armados da confederação Hashid, e o aeroporto está fechado. Os EUA que apoiavam Saleh decidiram repetir a estratégia adotada no Egito. Por mais contraditório que seja, o governo americano decidiu pular fora. A secretária de Estado, Hillary Clinton, declarou que a violência só irá terminar quando o presidente deixar o país. Acho que nem isso vai amenizar a situação do Iêmen. Certamente, mesmo com a saída de Saleh, a disputa pelo poder vai continuar. A diferença é que um dos aspirantes terá deixado o jogo, só isso.

Como Saleh não é bobo nem nada, pôs nas ruas tropas fundadas e treinadas pelos EUA para combater as forças do general Ahmar. Quanto mais envolvido o governo americano estiver, menos chances de o país ser abandonado à própria sorte. E certamente o presidente Saleh não faz isso devido a alguma preocupação com os cidadãos de seu país, mas porque quer ter alguma moeda de troca a oferecer ao Ocidente.

E a posição dos governos internacionais é conhecida. Todos temem que o Iêmen se transforme num Estado falido, termo usado ultimamente para se referir a países em colapso, sem instituições e tomados por guerras civis. A Somália, por exemplo, ou o Afeganistão antes da invasão americana de 2001. A preocupação com o Iêmen tem muitas razões: a proximidade com a Arábia Saudita, maior produtor de petróleo, e a localização estratégica do país – que tem acesso ao Golfo de Áden ao Mar da Arábia e ao Mar Vermelho, rotas importantes da exportação de petróleo.

A questão, no entanto, é saber que o Iêmen é um país falido há muito tempo. De seus 23 milhões de habitantes, 40% vivem com menos de dois dólares por dia. Se isso já não fosse suficiente, o país sofre com a crise de refugiados somalis e, agora, com a falta de comida e gás.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Ratko Mladic e a encruzilhada europeia

O julgamento de Ratko Mladic está marcado para começar nesta sexta-feira, às dez horas da manhã, em Haia, na Holanda. Quando os juízes do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia (TPII) iniciarem a leitura das 11 acusações (que incluem genocídio e crimes contra a humanidade) haverá muito mais em jogo do que a condenação de um criminoso de guerra: politicamente, os Estados dos Bálcãs querem descobrir que tipo de recompensa a União Europeia está disposta a dar a seus movimentos.

Quando escrevi sobre o assunto pela primeira vez, na semana passada, mencionei a ambição da Sérvia de se candidatar à União Europeia. A captura de Mladic e sua extradição para a Holanda são atos pensados pelo governo de Belgrado de forma a mostrar medidas práticas que satisfaçam parte das demandas do bloco. Se havia alguma dúvida quanto a isso, o próprio presidente sérvio, Boris Tadic, fez questão de esclarecer.

“Eu peço apenas que a UE cumpra com a sua parte. Nós cumprimos com a nossa e continuaremos a cumprir”, disse. Este é um recado endereçado não apenas a Bruxelas, mas também aos nacionalistas sérvios que têm contestado diariamente a colaboração de seu governo. Tadic deixou claro o que todo mundo já sabia numa tentativa de acalmar os ânimos. Se a Sérvia entrar no bloco europeu, os esforços atuais valerão a pena. Este é o raciocínio. Além disso, de alguma maneira o presidente sérvio dá caráter mais pragmático à captura de Mladic. Ela serviria para cumprir uma demanda externa, não necessariamente refletiria convicções pessoais ou de seu governo.

Os países dos Bálcãs estão profundamente atentos aos acontecimentos em Haia. Vale lembrar que há 35 detentos da região em julgamento, condenados ou aguardando os trâmites legais. Este número expressivo acaba por expor os abusos cometidos nesta parte da Europa durante os anos 1990. Se o continente conseguiu ter sucesso na construção de uma imagem de paz e prosperidade, os Bálcãs representam a pedra no sapato europeu. Revirar esta história é também mexer com o conceito de cidadania europeia. Afinal de contas, a própria União Europeia parecia ter um destino glorioso pela frente. Mas o mundo mudou, a crise econômica atual pegou importantes membros do bloco de jeito e a expansão para o oriente tem sido menos tranquila do que se imaginava.

Com a decadência de países fundadores da UE como Espanha, Portugal, Itália e Grécia, por exemplo, a inclusão de novos países passou a ser um problema conceitual. De fato, a UE foi criada para ser um “clube especial”, não um enorme banco pronto a socorrer Estados a caminho da bancarrota. Há movimentos que vem ganhando relevância em França, Alemanha e Grã-Bretanha que já questionam a filiação ao bloco. Com suas próprias crises domésticas, o discurso de grupos de direita e extrema-direita estão cada vez mais populares. Para este espectro político a adesão de países mais pobres – e que certamente necessitariam de pacotes de ajuda que possibilitassem um certo nivelamento com os demais – é encarada como ameaça.

Mas a UE estabeleceu metas a serem cumpridas aos candidatos. E a Croácia está correndo atrás. A Sérvia idem. Enquanto a esses dois a adesão ao bloco representaria um tremendo ganho político, os cidadãos da parte ocidental têm suas questões particulares. É este o impasse em jogo neste momento. Há uma espécie de efeito catalisador deste processo quando Ratko Mladic é entregue numa bandeja de prata ao Tribunal de Haia.