sexta-feira, 29 de julho de 2011

Atirador norueguês impediu, involuntariamente, avanço de medidas ainda mais restritivas na Europa

Uma das notícias mais importantes sobre este ataque foi dada por Janne Kristiansen, diretor do Serviço de Segurança Policial da Noruega: o atirador agiu sozinho. Trata-se de um criminoso não filiado a qualquer rede extremista europeia. Esta hipótese era previsível, mas os grupos radicais que se politizaram ao longo dos anos para alcançar seus objetivos não tinham como garantir este isolamento. A revelação de que Breivik agiu por conta própria, elaborou planos e tornou-os reais – tragicamente reais – é um alívio para os muitos partidos de extrema-direita.

É bom que se diga que nada disso salva o discurso extremista. Breivik marcou um tremendo gol-contra ao realizar os ataques. A imprensa e as instituições políticas europeias passaram a condenar não apenas o atentado, mas também estão dispostos a culpar o agravamento da pressão sobre imigrantes e minorias. Os dedos apontam com firmeza os próprios partidos de ultradireita como os culpados pela criação de um ambiente hostil responsável pelo surgimento de sujeitos como o atirador norueguês.

No entanto, a informação de que ele não estava formalmente vinculado a nenhum grupo ou partido ameniza. É como um bote no meio do oceano. Não melhora a situação, mas evita ou ao menos retarda a sentença de morte. E, claro, os partidos que agora estão por baixo – muito por baixo – farão uso desta informação e a propagarão aos quatro ventos.

Há muita gente – e eu me incluo nisso – que vem lembrando a popularização das ideias extremistas no mais alto-escalão político europeu. Acho que vale dizer que os acontecimentos recentes da Europa já sinalizavam não apenas o agravamento da situação em termos teóricos, mas também práticos. No meio de tanta discussão em torno do duplo atentado na Noruega alguns fatos foram esquecidos.

Por exemplo, a Dinamarca decidiu voltar a estabelecer controle de entrada de pessoas em seus postos de fronteira em maio de 2011. O país é signatário do acordo Schengen, em que os Estados permitem a livre circulação entre seus membros. Desistir do conceito básico de Schengen é uma medida drástica e fruto da enorme pressão do Partido do Povo Dinamarquês, de extrema-direita. E as polêmicas não param por aí. Em agosto de 2010, o governo francês deportou cerca de mil ciganos para Romênia e Bulgária – decisão que levantou ainda mais questões quanto ao projeto de multiculturalismo europeu. Isso apenas para restringir o cenário a grandes movimentos estatais.

Talvez, o atirador norueguês consiga, ironicamente, constranger medidas como essas. Pelo menos por algum tempo. Breivik pôs uma barreira involuntária no curso extremista que, estranhamente, não vinha recebendo muita consideração. O duplo atentado que cometeu parece ter acordado uma parte da Europa para a articulação política da ultradireita.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Noruega: atentados podem prejudicar toda a extrema-direita europeia

A maré da virada política europeia pode ser significativa a partir de agora. O primeiro-ministro norueguês, Jens Stoltenberg, já deixou claro que, em resposta ao duplo atentado, vai adotar medidas para reforçar ainda mais a tolerância e a democracia no país. Aliás, o olho de todo o mundo deve se concentrar na Noruega. As eleições locais do próximo mês de setembro serão profundamente influenciadas pelos acontecimentos deste mês de julho. Não é possível afirmar se, no caso de derrota significativa do Partido do Progresso (que representa a extrema-direita norueguesa), a onda contra o extremismo se espalhará pelas demais urnas europeias. Mas não há dúvidas de que as legendas trabalhistas do continente adotarão o caso da violência na Noruega como exemplo das graves consequências da ascensão política do extremismo.

Se esta será uma estratégia vencedora é uma outra história. Mas acho razoável dizer que os maiores prejudicados politicamente foram justamente os partidos que levantam bandeiras anti-imigração. Como escrevi nesta terça-feira, todo o trabalho de maquiagem que fizeram ao longo desses anos está comprometido. E existe mesmo a possibilidade de grande retrocesso. Tudo depende de como as pessoas irão se manifestar nas eleições que estão por vir. Se houver consenso quanto ao perigo do extremismo interno europeu, os partidos de direita sofrerão derrotas sucessivas.

A saída para esses partidos é baixar ainda mais o tom. A questão é que seus militantes não se sentirão representados se isso acontecer. Por mais que fique evidente que se trata de um recuo estratégico, é preciso alguma sofisticação para compreender este passo. E nem todos os eleitores serão capazes de aceitar isso. Pelo contrário. Podem interpretar o gesto como capitulação. E como a maior parte das pessoas não está disposta a pegar em armas e largar tudo em nome de ideologias, podem simplesmente correr para outros partidos, iniciado um processo de esvaziamento das legendas de extrema-direita. Seria o fim do plano político traçado – o plano que mencionei no texto desta terça.

Há duas alternativas para manter o extremismo político respirando. A primeira dependeria de alguma organização fundamentalista islâmica resolver cometer um atentado terrorista de grandes proporções na Europa. Isso não anularia os estragos causados por Anders Behring Breivik, mas empataria o jogo. Ou seja, Brevik não deixaria de ser um extremista, da mesma maneira que o radicalismo islâmico provaria, mais uma vez, representar uma grande ameaça aos valores europeus. Se este eventual ataque fosse cometido por uma célula – ou articulação de células – de fundamentalistas com cidadania europeia (estabelecidos em grandes comunidades muçulmanas do continente, casos de Espanha ou Grã-Bretanha, por exemplo), ainda “melhor”.

A segunda alternativa é bastante viável. Os partidos de extrema-direita devem correr para reforçar o discurso em torno da crise econômica e suas consequências aos cidadãos comuns. Os slogans devem girar em torno da falta de empregos e perspectivas aos jovens – o que, de fato, é uma realidade. E deve culpar, por tabela – e com mais sutileza –, os imigrantes. Aos partidos de extrema-direita, o melhor cenário agora seria o agravamento da crise. Algo, aliás, não só possível como provável.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Atentados na Noruega: a cegueira política do atirador

Certamente, o terrorista de extrema-direita Anders Behring Breivik não é nenhum gênio da estratégia política. Ele pode ter sido organizado, discreto e eficiente o bastante no que se propunha: promover um banho de sangue no acampamento dos jovens membros do partido que condenava ideologicamente. Mas o efeito que causou no cenário norueguês e europeu ainda é desconhecido. Existe a grande possibilidade de que suas ações tenham efeito contrário. Pelo menos em curto prazo.

Antes de mais nada, Breivik não me parece parte de qualquer grande organização articulada de extrema-direita. Eleitor do Partido do Progresso, deixou de ser membro da legenda a partir do momento em que considerou suas práticas amenas demais. Ou seja, como o partido não teve a iniciativa de abertamente incentivar a luta armada, já não lhe servia. Daí, o terreno de atuação do atirador passou a ser o mesmo compartilhado por outros tantos malucos solitários e rancorosos: a internet e toda a gama de bravatas preconceituosas que ela oferece. Particularmente, acho que já é possível traçar um perfil a partir das informações conhecidas – seus uniformes militares, sua sede de dar significado a uma vida comum e desinteressante, seus jogos de guerra, o confuso manifesto publicado e a afirmação de que faz parte da nova geração de Cavaleiros Templários (!). Pois é.

Resta saber agora como o mundo real vai lidar com a situação que ele criou. O debate sobre imigração já é um fato – delicado, diga-se de passagem. Politicamente, o assunto foi alçado há algum tempo à lista de temas prioritários em toda a Europa. Como escrevi ontem – e como muita gente tem lembrado nesses dias –, importantes líderes europeus passaram a questionar a sociedade multicultural e seus benefícios em tempos de crise. Esta foi uma enorme conquista dos partidos de extrema-direita, na medida em que, graças aos bons desempenhos em algumas das principais eleições recentes realizadas no continente, conseguiram transpor uma de suas principais agendas ao mainstream da política europeia. Para partidos antes marginalizados numa Europa ainda constrangida por ter de lidar com este tema (devido à memória dos estragos causados pelo extremismo durante a Segunda Guerra Mundial), reacender o debate sobre a presença de imigrantes já se trata de uma vitória política significativa.

Ora, até os grandes líderes europeus tiveram de “comprar” parte do discurso da extrema-direita. Isto se deve ao abrandamento aparente desses partidos. Quando deixaram de lado manifestações públicas de racismo, antissemitismo e xenofobia e passaram a questionar politicamente as restrições econômicas, por exemplo, ganharam não apenas eleitorado, mas também legitimidade política. O projeto da extrema-direita é se camuflar para conquistar espaço. E os líderes tradicionais não puderam mais ignorar que parte importante dos eleitores de seus países estavam dispostos a debater, além das questões econômicas, as leis de imigração.

Logo agora, logo neste momento tão “produtivo” para os partidos de extrema-direita, Breivik decidiu agir. O clima de comoção e a condenação generalizada aos ataques podem influenciar em eleições por toda a Europa. A exacerbação do discurso e a prática violenta não servem aos propósitos dos partidos de extrema-direita. Não neste momento.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Noruega: a falta de originalidade do discurso extremista

Os ataques terroristas na Noruega têm inspiração numa velha e conhecida fonte: o mito do retorno à origem. O atirador Anders Behring Breivik é assumidamente defensor desta bandeira ideológica bastante comum. Em tempos de crise econômica – como este atual – ela retorna com mais força. Curioso, no entanto, é que a boa vida dos cidadãos noruegueses não corre qualquer risco. O Estado de bem-estar social não está, de nenhuma maneira, em baixa.

A economia explica apenas em parte o radicalismo do discurso e da prática de Breivik. O que também está por trás de sua complexa operação de assassinato em massa é um escopo cultural presente em muitas sociedades – e certamente não apenas na norueguesa, que fique bem claro. Há um amor resplandecente pelo passado, pela reconstituição da pureza nacional. O vilão de sempre passou a atender pelo termo de multiculturalismo. Para os grupos de direita, a suposta tolerância dos países europeus ao fluxo migratório carrega, intrinsecamente, o potencial de destruir a pureza dos povos originais. Acho que todo mundo sabe onde este discurso termina, certo?

Pois é. A questão é que a tese defendida por Breivik também é repleta de ingenuidade. Ela ignora as mudanças mundiais, não suporta qualquer troca cultural e é, acima de tudo, maniqueísta ao extremo. De um lado, estariam os cidadãos nacionais noruegueses, puros e impotentes. De outro, estrangeiros – muçulmanos, de preferência – que têm todo o poder de dominar a Noruega e macular – a partir de um plano coletivo, articulado e muito bem-sucedido – a sociedade original. Ou seja, ao mesmo tempo em que deprecia a influência externa, dá a ela toda a plenitude de poder. Esta é apenas uma das tantas contradições teóricas do extremismo nacionalista europeu.

É importante deixar claro que o ocorrido na Noruega não é um fato isolado politicamente. Trata-se da exacerbação de um discurso que anda na moda. O propósito inicial da União Europeia (UE) de ser um Estado supranacional está em baixa; líderes importantes como Nicolas Sarkozy, David Cameron e Angela Merkel têm dado dicas de que vão optar por medidas ainda mais restritivas à imigração; vários países europeus discutem atualmente o banimento de símbolos religiosos e culturais em nome desta mesma “proteção aos valores nacionais”; e, por fim, a inegável ascensão ao primeiro plano político de partidos que defendem com mais intensidade essas mesmas plataformas (ou cuja razão de existência gira em torno basicamente dessas questões).

O extremismo europeu e toda a narrativa que ele apresenta não é, de nenhuma maneira, muito diferente do fundamentalismo islâmico. Ambos condenam o estrangeiro, o diferente. Ambos acreditam que o não pertencente no que se supõe o mito original representa a grande ameaça à continuidade de suas respectivas histórias. E, curiosamente, é no extremismo que esses discursos se encontram. É na negação da mistura, da presença e da troca que eles “dialogam”.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Fome na Somália: comunidade internacional começa a se movimentar

Dando continuidade ao assunto de ontem, é importante deixar claro que a ONU tenta chamar a atenção para a fome na Somália há algum tempo. É verdade que não usou todos os meios possíveis, é verdade que não se engajou profundamente como deveria. Mas há sete meses a organização procura nos bastidores convencer países-membros a fazer doações. Dentre todos, os EUA repassaram a maior soma: 431 milhões de dólares. Como em boa parte de catástrofes humanitárias, o descaso do governo local pode ser responsabilizado pela tragédia. Ainda mais na Somália, onde há 20 anos não existe uma autoridade central que responda pela integralidade do território e – menos – pela criação de instituições.

O caso somali adquire cores bastante dramáticas porque não se trata somente de falta de dinheiro para salvar milhões de vidas em risco. O controle exercido pelo grupo terrorista al-Shabab sobre a maior parte do país dificulta qualquer tentativa de resgate. Ajuda financeira pura e simples não está em cogitação. Primeiro porque repassar verbas ao limitadíssimo governo oficial não resolve o problema de nenhuma maneira; segundo porque dar dinheiro ao grupo terrorista – vale lembrar que se trata do mesmo grupo responsável pelos ataques piratas aos navios internacionais – não faz qualquer sentido e a ajuda certamente não seria aplicada em medidas para aplacar a fome nacional.

A ideia do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, é tomar a dianteira do processo de reversão da crise. Vai ser difícil. Por mais elogiosa que seja, a iniciativa depende em boa parte da contribuição do al-Shabab. E isso não vai acontecer. Se existia alguma esperança de sensibilizar seus radicais, ela foi por terra nesta sexta-feira, quando o porta-voz do grupo deixou muito claro o que pensa da situação. Em pronunciamento numa rádio do país, Ali Mohamud Raage não poupou adjetivos para justificar o banimento das organizações humanitárias do território.

“A ONU está politizando a questão. Os ocidentais são espiões e cruzados cristãos. As agências (humanitárias) trabalham com suas próprias agendas políticas”, disse.

Certamente que as agências têm objetivos políticos. Mas é muito claro que seus objetivos são mais nobres que os do grupo terrorista. Pelo menos existe alguma preocupação com as vidas que correm risco neste momento. O al-Shabab faz toda a sorte de acusações, mas não apresenta qualquer alternativa para reduzir os estragos causados pela fome.

Na verdade, os radicais adotam postura pouco inteligente ao negar a entrada de ajuda internacional. Simplesmente, dão força aos movimentos contestadores, além de provocarem por tabela o fortalecimento de forças de pressão eficazes. Quanto pior a situação estiver na Somália, quanto mais imagens chocantes divulgadas pela imprensa, maior será o envolvimento da comunidade internacional. E aí não me refiro somente aos países, mas também às populações que irão pressionar seus governos para que façam algo.

E o simples questionamento do status-quo na Somália já representa um enorme prejuízo ao al-Shabab.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Fome na Somália: uma tragédia que pode se converter em oportunidade de renascimento

A Somália é hoje, oficialmente, um país semifaminto. Este é o diagnóstico da ONU para duas áreas do território. As Nações Unidas podem exercer neste caso uma de suas principais tarefas. Criada em 1945 para manter a paz no planeta, acabou por se transformar num ator com sua própria agenda política. Crises humanitárias como a atual de alguma maneira acabam por lembrar à organização o motivo primordial que justifica sua própria existência. Afinal de contas, como é possível haver paz e fome simultaneamente?

Envolvidos em tantos jogos políticos, os muitos braços de atuação da ONU se perdem em emaranhados de interesses de seus Estados-membros. E isso é até um tanto natural. Os países têm como característica fundamental a luta por benefícios para suas populações. Como fórum que reúne esta comunidade bastante diversa, a organização passou a palco de embate entre propósitos, ideologias e estratégias distintas. O grande problema é que ela mesma pende para este ou aquele lado. Mas é impossível exigir a imparcialidade completa, na medida em que as Nações Unidas atuam diretamente em assuntos políticos de alta-voltagem.

Nada disso, no entanto, impede que a própria ONU eleja prioridades. E quando um dos membros da comunidade internacional chega a seu pior estágio – como é o caso da Somália –, a instituição tem o dever de intervir e de voltar todos os seus esforços para amenizar a situação. Vale dizer também que a denúncia partiu da própria ONU, que determinou que o país está a caminho do precipício humanitário a partir dos índices de comparação. Para as Nações Unidas, a fome está oficialmente instaurada quando os seguintes indicadores se tornam realidade: taxa de desnutrição acima de 30%; morte diária de dois adultos ou mais num universo de 10 mil pessoas; falta de acesso à comida para grandes contingentes populacionais.

A Somália reúne todas essas características. O preço de alimentos de alta necessidade aumentou mais de 270% em um ano. Se ninguém agir, a fome pode se espalhar para os quase 4 milhões de habitantes num prazo de apenas dois meses. Para completar, há um indicador catastrófico que explica em boa parte a situação. A Somália é um Estado falido no sentido mais básico do termo. O país simplesmente não existe como ente nacional e está dividido entre um governo fraco que controla uma pequena parcela do território e o al-Shabab, grupo terrorista apoiado pelo al-Qaeda – e certamente o al-Shabab não está nem um pouco preocupado com a qualidade de vida dos somalis.

As dificuldades agora são muitas. Tão difícil quanto convencer o grupo terrorista de que o momento é grave e será preciso baixar as armas para salvar a população é mobilizar a comunidade internacional, os doadores. Segundo a organização humanitária Oxfam, a ajuda mundial ainda está 800 milhões de dólares abaixo do mínimo necessário. A própria ONU vai tentar conseguir 300 milhões de dólares nos próximos dois meses. Quem sabe este não seja o momento em que a ONU e a Somália encontrarão um rumo depois de tantos equívocos institucionais?

terça-feira, 19 de julho de 2011

Barco francês que pretendia furar bloqueio a Gaza é interceptado por Israel sem dificuldade

Parece que a novela envolvendo a segunda frota internacional a caminho de Gaza terminou como ninguém imaginava. Ou seja, nada aconteceu. Soldados israelenses abordaram o iate francês Dignité-Al Karama sem maiores problemas. A embarcação, passageiros e tripulantes foram escoltados calmamente até o porto de Ashdod, no sul de Israel. A situação é totalmente diferente da que ocorreu no ano passado, quando a abordagem ao navio Mavi Marmara se transformou num golpe político genial que provocou, inclusive, o completo esfriamento das relações entre os governos turco e israelense.

Se é possível enumerar as lições apreendidas por Jerusalém, é preciso também deixar claro que as comparações entre as distintas empreitadas pró-palestinas merecem muito cuidado. O momento político atual é completamente diferente, e os atores envolvidos diretamente na bem-sucedida “experiência” do ano passado não se mostraram tão entusiasmados para repetir a dose.

O grande financiador da tentativa de furar o bloqueio marítimo israelense era a organização turca IHH – diga-se de passagem, influente e com livre trânsito à cúpula do governo de Ancara. Em 2011, o grupo se retirou do projeto. O desânimo pode ser atribuído – quem sabe – ao momento difícil da política doméstica Turca – o primeiro-ministro Erdogan se vê às voltas com o recrudescimento do nacionalismo curdo e também com a instabilidade da vizinha Síria, responsável por despejar milhares de refugiados no lado turco da fronteira.

Havia a expectativa de mais um confronto entre Israel e os passageiros. Havia também o projeto constituir uma frota muito maior que a de 2010. A ideia original era navegar rumo a Gaza com 20 barcos. O plano terminou hoje com somente 16 militantes a bordo de um pequeno iate de bandeira francesa. É claro que a frustração por parte dos manifestantes se deve também às distintas ações israelenses. Pela primeira vez, Benjamin Netanyahu considerou que este evento tinha mais perfil político, diplomático e midiático, e se configurava bem menos como uma ameaça à segurança do país. Isso o ajudou muito. Articulou com o governo grego e convenceu-o a aplicar toda a sorte de exigências burocráticas às embarcações que pretendiam zarpar a partir de seus portos. Isso foi muito eficaz. Tanto que 300 ativistas abandonaram a empreitada ainda na Grécia.

O exército israelense filmou toda a abordagem e emitiu boletins periódicos com todos os passos da operação. O navio recebeu um aviso de que não poderia seguir rumo a Gaza e os soldados embarcaram calmamente a bordo do Dignité-Al Karama. Os passageiros receberam comida e foram examinados por médicos de Israel. Se o Estado judeu não conseguiu ter ganhos políticos ou mesmo angariar simpatia internacional ao país, evitou a repetição dos prejuízos de 2010. Uma explicação para a calmaria temporária talvez seja também o fato de que o grande confronto deste ano deve acontecer em setembro, quando todos os esforços políticos palestinos estarão concentrados na busca por legitimidade às aspirações de constituição de um Estado na Assembleia-Geral da ONU.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Movimento popular no Egito corre risco

O movimento político mais surpreendente do ano corre risco de perder sua força de maneira catastrófica. A massa de cidadãos comuns que derrubou Hosni Mubarak, no Egito, pede socorro porque, meses após o sucesso que culminou na deposição do presidente, quase nenhuma mudança significativa foi posta em prática. E aí a revolta periga simplesmente ter sido útil como mero instrumento de transição do poder de um ditador a outro. Há também a possibilidade de Mubarak ter dado lugar a movimentos institucionalizados que estão muito distantes de serem os legítimos representantes da população que se aglomerou na simbólica Praça Tahrir, no Cairo.

Logo depois da queda do ditador egípcio, muitos analistas estrangeiros apontaram para a Irmandade Muçulmana como único grupo organizado capaz de articular a tomada do poder. No entanto, existia a esperança quanto ao sucesso do movimento original, centrado no secularismo e na independência em relação a discursos estabelecidos. Mas, como sempre costumo repetir por aqui, uma boa parte do sucesso que deixou o mundo todo estarrecido (no bom sentido, claro) se deve, basicamente, à adesão do exército aos revoltosos.

Aliás, temos assistido desde então a uma série de ondas populares pró-democracia no Oriente Médio que tem as mesmas demandas dos egípcios. E qual a diferença entre elas? Justamente que em países como Síria e Arábia Saudita, por exemplo, as forças armadas se mantiveram fiéis aos governos centrais. Não é possível prever se as reivindicações das populações desses países serão atendidas. Mas é algo absolutamente notório como os embates entre as pessoas comuns e a estrutura de poder estabelecida têm sido caracterizados pela violência.

Agora, milhares de pessoas retornaram à Praça Tahrir porque estão com medo. Não da polícia e da opressão, mas medo de que seus desejos de justiça, emprego, democracia, eleições livres e imprensa independente sejam sequestrados justamente pelos militares – os mesmos que nada fizeram para impedir a queda de Mubarak. Especula-se, inclusive, sobre uma eventual associação entre as forças armadas e a Irmandade Muçulmana. E num cenário onde houve muito pouco tempo para que partidos seculares emergissem, o sucesso da articulação de interesses entre as duas forças mais organizadas do Egito pós-Mubarak é totalmente possível.

E este é um movimento que se caracteriza pela discrição. Não imaginem que a junta militar que governa o Egito irá aplicar um golpe e cancelar a realização das eleições previstas para setembro. De forma alguma. As articulações serão mais sofisticadas. Por exemplo, um sinal interessante foi a vitória da Irmandade Muçulmana, que conseguiu que o pleito político seja realizado antes da adoção de uma nova constituição (que poderia, digamos, exigir a separação total entre religião e política).

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Ataques terroristas na Índia: confundir para dividir

Os ataques terroristas a Mumbai, na Índia, talvez sejam exemplos muito raros de atentados perpetrados por grupos desconhecidos. Ou melhor, organizações que se escondem e deixam de reivindicar autoria. Na maior parte das vezes, os agentes de banhos de sangue coletivos a civis fazem questão de serem identificados. Para eles, quanto maior o número de mortos, mais evidente o sucesso da operação. É uma lógica perversa cuja violência é difícil de ser compreendida – o terrorismo, por si só, já é uma estratégia de luta condenável que não merece qualquer tipo de justificativa.

No caso específico deste ataque recente, há toda a sorte de especulação. E não duvido nada que esta falta de pistas seja proposital, que o objetivo seja justamente provocar confusão. Os primeiros suspeitos são, claro, os paquistaneses. Rivais históricos da Índia, acobertam diversas organizações terroristas que agem sem grandes problemas a partir do território. O Lashkar-e-Taiba (LeT), responsável pelo caos perpetrado em Mumbai, em novembro de 2008, é a opção mais óbvia. Mas não é a única. Principalmente porque a enorme complexidade regional tem na decadência do próprio Estado paquistanês uma de suas principais raízes.

A suspeita também recai sobre os Mujahedin Indianos, facção associada ao LeT originada a partir do Movimento de Estudantes Islâmicos da Índia. Este é o único cenário que existe até agora. Mesmo assim, não passa de especulação. A partir deste ponto, há uma profunda divergência sobre que tipo de relação mantém esses dois grupos terroristas. A primeira possibilidade gira em torno de uma espécie de “corrida por legitimidade”, uma competição entre eles que poderia ser interpretada como sinal de descontentamento por parte dos jihadistas indianos. Esta insatisfação estaria direcionada ao próprio LeT e sua suposta falta de iniciativa de apoiar ataques terroristas internacionais. Esta é a teoria mais complexa.

A possibilidade que mais me convence é justamente a mais simples. A ideia de que LeT e Muajedin Indianos agiram em conjunto e de maneira coordenada. É tentador aos dois grupos ver a região cada vez mais instável. Provocar a troca de acusações entre Paquistão e Índia é, na prática, jogar dois importantes e estratégicos aliados americanos um contra o outro. E não é nada complicado de se alcançar este objetivo, já que os dois países convivem com períodos de hostilidade mútua há 60 anos. E nada melhor do que distanciá-los agora em que havia um movimento de aproximação cuidadosa entre seus governos. Além disso, a desconfiança americana sobre o Paquistão aumentou depois da operação de captura de Osama bin Laden, em março passado (e das consequentes revelações sobre o esconderijo do homem mais procurado pelos EUA, abrigado numa casa localizada a metros da academia militar paquistanesa).

Os ataques acontecem justamente na semana em que Washington informa a intenção de reduzir a ajuda econômica a Islamabad. Se o objetivo era provocar confusão e distanciamento, parece que a ideia dos atentados foi bem-sucedida. A ponto inclusive de facilitar a difusão de ideias favoráveis ao confronto.

“Se o estabelecimento da supremacia civil sobre os serviços de inteligência militar paquistaneses se provar impossível, a Índia deve adotar a política de levar a luta ao território (do país) vizinho a partir do qual os ataques terroristas se originam (...). Como a Índia não possui tal inteligência e capacidade militar hoje, deve investir todos os meios necessários para adquiri-las”. Essas não são palavras de algum fanático, mas do indiano Ramesh Thakur, professor de Relações Internacionais na Universidade Nacional da Austrália.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Crise síria: os pequenos grandes passos da política externa de Barack Obama

Os ataques às embaixadas de EUA e França sobre os quais comentei no post desta terça-feira lembram o clássico exemplo da pedra no lago. Arremessada, provoca vários círculos a partir do primeiro impacto. O caso evidenciou não apenas a tentativa do governo sírio de abafar os protestos internos em nome de um velho e desgastado slogan nacionalista, mas também permite reflexões acerca da própria diplomacia americana em atuação no país.

Foto: o embaixador Robert Ford em visita à cidade de Hama

O partido Republicano é o principal crítico da maneira como a administração Obama vem lidando com o impasse. Para parte dos representantes de oposição em Washington, a Casa Branca deveria dispensar ao regime de Bashar al-Assad a resposta mais óbvia. E isso significa ordenar um ataque militar nos moldes da reação aos abusos cometidos por Khadafi contra a população líbia. Escrevi ontem por que esta não é a opção americana a ser aplicada agora. Ou melhor, esta não é a alternativa preferencial. Obama prefere exercer o chamado “soft power” e o faz por meio de seu embaixador em Damasco, Robert Ford.

Ford é figura central neste episódio. Acompanhado do colega francês Eric Chevallier, esteve na cidade de Hama na última semana. Hama não é apenas um dos principais focos de manifestações populares contra o regime, mas também carrega em sua história enorme simbolismo na luta por direitos civis e a consequente opressão institucional. O pai de Bashar al-Assad, Hafez, ordenou o bombardeio da cidade em 1982, causando a morte de 30 mil pessoas.

Os embaixadores francês e americano foram recebidos com flores por uma multidão de revoltosos. E todo mundo sabe que os EUA não estão dentre os países mais admirados no Oriente Médio. A demonstração de apoio popular a um representante oficial de Washington é fato raro e que conta muito para o governo Obama. Conseguir este tipo de vitória diplomática é importante; principalmente às vésperas do início da corrida eleitoral americana.

O fato é que Assad ficou profundamente incomodado – apenas para usar o termo mais polido – e, além de se vingar da própria população, articulou os ataques às embaixadas. O que considera uma intervenção estrangeira inadmissível também passou a servir de fonte de inspiração; uma ideia que, talvez, possa virar o jogo a seu favor.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Bashar al-Assad usa EUA para resgatar legitimidade na Síria

A agressão às embaixadas de França e EUA em Damasco causou revolta aos governos dos países cujas representações diplomáticas foram alvo da fúria de militantes pró-Bashar al-Assad. E não é para menos. A campanha promovida pelo presidente sírio descumpre uma das mais básicas convenções internacionais. Atacadas durante 31 horas entre sexta-feira e sábado, os edifícios foram pichados, sujos e quebrados. Os manifestantes jogaram ovos, tomates, pedras e vidro. Toda esta violência tem razões estratégicas até bastante fáceis de serem identificadas. Na origem, a incapacidade do presidente-ditador de lidar com o impasse iniciado em meados de março e que já matou 1,4 mil pessoas.

Foto: manifestantes em protesto diante da embaixada americana

Assad tenta contornar a situação com as armas de que dispõe. Seu monopólio sobre todos os mecanismos do Estado permitem que ele transforme as críticas internacionais em caso de disputa entre a Síria e as potências ocidentais. Assim, usa também a imprensa oficial para usar a seu favor qualquer manifestação estrangeira. No caso específico dos ataques coordenados a partir da incitação governamental às embaixadas, a razão explicitada para justificá-los é a tentativa de EUA e França de intervirem nos assuntos domésticos do país. Refere-se, particularmente, às visitas realizadas na semana passada pelos representantes diplomáticos à cidade de Hama, foco de manifestações e confrontos entre tropas fiéis ao presidente sírio e manifestantes populares.

A situação agora tende a mudar um pouco. Os EUA tentaram o máximo que puderam se manter relativamente distantes dos acontecimentos na Síria. A violência em curso por lá é vista com preocupação em Washington por algumas razões: há a percepção de que uma invasão como a articulada à Líbia não é a melhor alternativa porque poderia – e certamente seria este o caso – acender o isqueiro numa região já naturalmente explosiva; além disso, a posição americana até agora se restringia simplesmente a pedir que Assad realizasse reformas democráticas, mas não exigia que o ditador deixasse o cargo. A Casa Branca teme que a saída do atual presidente represente a ascensão de grupos ainda mais radicais, como a Irmandade Muçulmana local. Esta é a mesma posição da administração israelense. Assad pode ser um grande problema, mas ao menos é um problema conhecido.

De qualquer maneira, o ataque às representações diplomáticas é um novo capítulo e força franceses e americanos a subirem o tom. “O presidente Assad não é indispensável e não temos absolutamente nada a ganhar com sua permanência no poder. Nosso objetivo é ver atendido o desejo do povo sírio por transformação democrática”, disse. Esta foi a primeira vez que o governo americano se viu obrigado a fazer um comunicado oficial que pode ser interpretado como um pedido de reformas no país realizadas por qualquer um. É como um aval de Washington a um futuro sem Assad. E é exatamente isso que o líder sírio mais queria. Polarizar o embate entre ele e o Ocidente – principalmente entre ele e os EUA – talvez seja sua única estratégia em busca do que lhe resta de legitimidade interna.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Membros do Quarteto tentam retomar negociações entre Israel e os palestinos. Mas não vai dar certo desta vez

Nesta segunda-feira, o conjunto de atores internacionais conhecido como Quarteto se reúne novamente em Washington. Formado por EUA, União Europeia, Rússia e ONU, o grupo tem como objetivo conduzir as negociações de paz entre israelenses e palestinos. Considerando que o diálogo está completamente parado e não produz avanços há tempos, a meta principal do encontro na capital americana sofreu um ajuste. Passa a se concentrar somente na redação de um comunicado capaz de persuadir as partes a voltar à mesa de negociações. Por mais louvável que seja, adianto desde já que nem isso vai acontecer.

Os palestinos prometem levar a reivindicação do estabelecimento de seu Estado à Assembleia-Geral da ONU marcada para setembro. A guerra diplomática em curso neste momento é simples e franca: Israel tenta como pode convencer outros países a não serem favoráveis ao projeto, uma vez que o considera improdutivo aos esforços de paz e também a seus próprios interesses políticos e vitais (as fronteiras pleiteadas pelo Estado palestino são as anteriores à Guerra dos Seis Dias, em 1967, e este governo de Israel costuma se referir a elas como “linhas indefensáveis”). Os palestinos estão em franca vantagem. Além de contar com amplo apoio popular internacional, dão como certo que esta popularidade irá se refletir em votos nas Nações Unidas. E isso vai acontecer mesmo, não tenham qualquer dúvida.

Os dois atores estão, portanto, travando uma guerra de bastidores em que, na prática, o objetivo de um anula o do outro. O presidente palestino, Mahmoud Abbas, diz que estaria até disposto a cancelar a iniciativa se o governo israelense interrompesse a construção na Cisjordânia (território que vai formar a maior parte do Estado palestino). Velho jogador político, Abbas sabe que esta é uma promessa que está bem distante de seduzir o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu – que tem nos colonos que vivem justamente na Cisjordânia uma boa parte de seus eleitores, mas também nos partidos que os representam o peso que mantém nos eixos a coalizão política que o sustenta no cargo. Congelar as atividades no território palestino é o mesmo que desmontar suas alianças políticas e, por consequência, quase um pedido de renúncia.

E como Netanyahu prefere apostar alto a abrir mão de seu projeto de poder pessoal, ele pensa não ter mesmo com o que se preocupar em curto prazo. Pesquisas de opinião pública mostram que ele seria reeleito, caso novas eleições fossem convocadas; a economia do país está bem; e Bibi pode ser um fenômeno mesmo. Se a situação continuar do jeito como está, deve ser o primeiro líder de governo a conseguir terminar o mandato desde Menachem Begin (1977-1981). Além disso, Jerusalém não aceita negociar com um gabinete palestino de união nacional que inclua justamente o Hamas.

Por tudo isso, o impasse é a maior realidade. O Quarteto até vai escrever um texto bonito, mas ineficaz. A diferença agora não é que israelenses e palestinos se recusam a escutar. O fato é que cada um dos lados sabe o que o outro quer, mas não admite ceder. Qualquer negociação pode ser bem-sucedida quando as duas partes admitem perder algo. O problema agora é que mesmo conceder o mínimo já significa perder demais.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Independência do Sudão do Sul deve ser encarada com realismo

Neste sábado, o mundo assiste à celebração do nascimento de um novo país, o Sudão do Sul. A cerimônia realizada na capital Juba conta com a presença de importantes líderes mundiais, como o ex-secretário americano Colin Powell, o secretário de exterior britânico, William Hague, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, a enviada norte-americana Susan Rice, 30 chefes de Estado do continente africano e, incrível, o presidente do Sudão, Omar Hassan al-Bashir, acusado formalmente pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) de ser responsável direto pelo genocídio em Darfur, no oeste do país.

Foto: sudaneses do sul reverenciam a bandeira do país

Isso pode soar estranho – e esta é uma reação não apenas compreensível, mas também esperada. Bashir não só estará presente à cerimônia como também está previsto que ele faça um discurso. A situação não causa somente desconforto às personalidades, mas também aponta as contradições que cercam o evento. O novo país é fruto da guerra e da democracia ao mesmo tempo. Nasce após referendo popular de resultados amplamente favoráveis à emancipação da parte sul do Sudão (até agora o maior Estado africano) e também do conflito mais longo e sangrento ocorrido na África. A guerra civil sudanesa ocorreu entre 1983 e 2005 e foi responsável pela morte de mais de 2 milhões de pessoas.

A situação é bastante favorável a Omar Hassan al-Bashir, que mostra toda sua habilidade política e usará o palanque de forma a aparecer mundialmente como um líder pacífico. Por mais que o Sudão tenha se resignado – acatou a independência do Sudão do Sul –, Bashir está longe de estar satisfeito. Se por um lado demonstra ter aceitado o resultado das urnas, não esgotou seu vasto arsenal de provocações e obstáculos ao novo país. O ano de 2011 já é o mais sangrento desde o fim da guerra civil, em 2005. Quase 2,4 mil pessoas morreram em conflitos étnicos cujos agentes são amplamente apoiados pelo presidente sudanês. Desde 5 de junho, as tensões na região de Kordofan do Sul (estado do Sudão localizado próximo à fronteira do Sudão do Sul) têm aumentado e os conflitos entre o exército regular sudanês (controlado por Bashir) e tropas leais ao novo país já provocaram a fuga de mais de 73 mil pessoas.

Apesar da independência deste sábado, é preciso deixar claro que os conflitos não terminaram – e não há mesmo razão para crer que eles irão terminar em breve. Principalmente porque os Estados recém-separados ainda mantêm divergências em assuntos fundamentais: o traçado exato das fronteiras (e daí os conflitos em Kordofan do Sul) e controle da produção de petróleo. Não são temas marginais ou simples de serem solucionados. E não imaginem que Bashir irá abrir mão de benefícios em nome de algum altruísmo político.

O fato é que o Sudão do Sul passa a controlar 75% da produção diária dos 490 mil barris de petróleo. Curiosamente, o caminho para a solução pode ser uma espécie de demonstração da nova balança de poder internacional. O Sudão do Sul não possui tecnologia própria ou capacidade logística de extração. A empreitada ficará a cargo das estatais petrolíferas de China, Malásia e Índia. Neste caso específico de diplomacia econômica, todo mundo conhece o posicionamento chinês voltado quase que exclusivamente para o pragmatismo. Resta saber como agirão Malásia e Índia em caso de escalada de violência. No fim das contas, a festa de sábado pode ser apenas o pontapé inicial de novos conflitos.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Irã leva mais uma na disputa regional com os EUA

A geopolítica está repleta de ironias. Esta semana é mais uma daquelas ocasiões que reafirmam isso. Curiosamente, o primeiro-ministro iraquiano, Nouri al-Maliki, e o vice-presidente do Irã, Mohammad Reza Rahimi (foto), assinaram seis acordos de cooperação. A iniciativa acontece pouco depois da aprovação de uma empreitada conjunta entre os dois países para a construção de um gasoduto no valor de 365 milhões de dólares.

Para relembrar, Irã e Iraque travaram uma das guerras mais sangrentas do final do século vinte. Mais de um milhão de pessoas foram mortas em oito anos de conflito (1980-1988). Parece que os inimigos superaram todas as diferenças na busca pelo desenvolvimento regional. Bonito isso, não é? Uma pena, no entanto, que a construção de “um mundo melhor” seja apenas um slogan de festival de rock (?). A realidade, infelizmente, permite bem menos fantasias.

O primeiro-ministro Maliki está comprometido com os iranianos. No ano de 2010, o Iraque viveu um tremendo impasse político que acabou solucionado somente quando os xiitas intervieram nas eleições e se colocaram ao lado de sua coalizão. Adivinhem quem foi fundamental para a articulação deste apoio decisivo? Acertou quem pensou no Irã. E não é para menos. Além de vizinho do Iraque, a República Islâmica liderada por Mahmoud Ahmadinejad é majoritariamente xiita em sua composição populacional. Como tratei inúmeras vezes por aqui, a grande aliança de Estados xiitas e seus beneficiários disputa a cada palmo e gesto político a liderança militar do Oriente Médio. O Irã é o líder deste grupo e, na prática, pretende exercê-la hegemonicamente.

Nada melhor para isso do que desafiar seus maiores inimigos. E o fazem com a certeza da vitória. Os EUA sairão do Iraque mais cedo ou mais tarde. Aliás, já há uma data estabelecida: o dia 1 de janeiro do ano que vem. A partir daí, ninguém sabe quais alianças serão estabelecidas pelo governo de Bagdá. A ideia dos americanos era manter dez mil soldados no país – até como forma de monitorar a movimentação dos iranianos neste território livre. No entanto, mesmo este planejamento depende de um pedido formal do primeiro-ministro Maliki. Porém, até agora, nada foi requisitado.

Isso não chega a surpreender. Principalmente por conta das opções políticas do líder iraquiano. Ele não será o primeiro nem o último a pensar em formas de manter seu cargo em detrimento de qualquer visão estratégica nacional. Ou, quem sabe, para ele o cenário ideal seja uma aliança com o Irã em que o Iraque tenha uma espécie de dívida eterna pela vitória xiita nas últimas eleições. Vale dizer, no entanto, que o governo de Teerã sai vitorioso mais uma vez. Afinal de contas, sem precisar se expor numa guerra aberta, parece que vai conseguir reforçar sua participação no futuro iraquiano mesmo depois de oito anos de esforços e presença contínua dos EUA no país. Na grande disputa de poder regional, ponto para o Irã; e derrota americana.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Ofensiva paquistanesa no Afeganistão pode causar problemas aos EUA

Era só o que faltava. Uma escalada na retórica entre Afeganistão e Paquistão logo agora que os EUA anunciam a progressiva retirada de suas tropas da região. É complicado entender isso porque no centro deste problema estão dois atores tão importantes quanto indecifráveis. Para situar, há protestos de cidadãos afegãos que acusam os militares paquistaneses de serem os autores de ataques realizados em sequência desde junho, quando mais de 700 mísseis foram disparados contra vilarejos que se estendem pela fronteira oriental. Não se tratam de acusações infundadas, mas os afegãos querem punir os responsáveis pela morte de 60 pessoas – isso sem mencionar que outras tantas centenas perderam suas casas.

Foto: desabrigados afegãos 

O caso do Afeganistão é complicado. O país foi reinventado a partir do nada desde a invasão americana de 2001. Os EUA criaram instituições e um aparato político responsável pela ascensão de Hamid Karzai ao poder. Por mais que todo mundo torça pelo contrário, é preciso ser honesto e dizer que o Afeganistão ainda está longe – muito longe – de ser um Estado nacional tal como imaginamos por aqui pelo Ocidente.

Do outro lado desta equação está o Paquistão, país relativamente consolidado, mas cujas instituições têm fidelidades distintas. O governo central de Islamabad parece estar do lado americano – no caso, assumiu um compromisso de combater a atividade Talibã e terrorista a partir de seu território. Tanto que recebeu mais de 20 bilhões de dólares em ajuda de Washington desde 2001. O problema é que a se o Paquistão diz publicamente estar do lado dos EUA, o mesmo não pode ser dito sobre membros importantes de seus muitos escalões militares. Há profundas e graves divisões práticas e ideológicas em órgãos importantes, sendo que a ambiguidade mais conhecida – e tema de muitos posts por aqui – é representada pelas ISI (Inter-Services Intelligence, a agência de espionagem nacional) e por suas muitas fileiras de admiradores do discurso do Talibã e da al-Qaeda.

Desde segunda-feira, os militares paquistaneses estão em campanha contra o Talibã numa empreitada que, oficialmente, pretende pacificar a região que é conhecida por servir de abrigo a radicais que atacam tropas americanas ao longo da fronteira entre Paquistão e Afeganistão. Não se trata somente disso, é claro, mas Islamabad ainda precisa mostrar serviço a quem lhe fornece substancial ajuda financeira principalmente depois da gafe que envolveu a captura de Osama bin Laden e a revelação de que o líder da al-Qaeda se escondia há metros de quartéis militares e centros de treinamento paquistaneses. Mas não é só isso.

A ambiguidade do Paquistão está mais uma vez manifesta. O país sofreu constantes ataques por parte das forças da OTAN que em diversas ocasiões infringiram a soberania nacional na luta contra radicais do Talibã baseados no território. Quando os militares paquistaneses atacam o Afeganistão eles estão, de alguma maneira, dando o troco. E não apenas porque consideram isso justo, mas porque a própria população demanda respostas às ofensivas sofridas. Neste universo de muitas contradições e complexidades, apesar da grande ajuda financeira americana, o Paquistão é hoje um dos países onde o sentimento antiamericano encontra muitos adeptos. De acordo com pesquisas do Pew Research Center divulgada em junho deste ano, somente 12% da população acreditam que os EUA são aliados. O país hoje só perde para a Turquia no ranking que mede a impopularidade internacional americana.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Doença de Chávez expõe lamentável quadro político da Venezuela

Hugo Chávez está de volta à Venezuela. Depois de quase um mês de tratamento em Cuba e após o anúncio de que estava na ilha para se tratar de um câncer, o presidente decidiu retornar ao país que está sob seu comando há nada menos do que 12 anos. Em primeiro lugar, acho importante destacar que, apesar de trágico, o câncer não necessariamente impede que as pessoas deem prosseguimento a suas vidas. Isso vale também para líderes políticos. Nesta área, inclusive, há dois exemplos recentes, sendo um deles bastante próximo aos brasileiros; a presidente Dilma. Ela mesma chegou a ser questionada sobre suas condições de saúde antes do processo eleitoral. O outro episódio relevante e recente é o presidente paraguaio, Fernando Lugo.

De qualquer maneira, a doença e o tratamento de Chávez criaram uma situação política nova na Venezuela. Houve um tanto de especulação sobre se retornaria ao país e, se o tratamento no exterior fosse prolongado, quem poderia ou deveria ocupar seu cargo. Talvez para evitar o progresso das discussões, o presidente decidiu retornar. Não se sabe, entretanto, como será seu governo a partir de agora. Arrisco dizer que suas aparições públicas serão raras. Para se ter ideia, ele mesmo admitiu não ter condições de participar das comemorações pelo bicentenário de independência que se iniciam nesta terça-feira. Quem acompanha um pouquinho de política sabe que Chávez não perderia por nada uma ocasião como esta.

A aparente saúde debilitada de Chávez expõe também a frágil estrutura política do país. Quando digo isso não me refiro às instituições venezuelanas, de forma alguma. A questão é que, propositalmente ou não, tudo gira em torno do presidente. Isso pode ser creditado a seu enorme carisma, polêmica e retórica. Ou mesmo aos incríveis 12 anos de poder. Mas o fato é que mesmo a oposição pareceu órfã durante seu sumiço. Não há muitas propostas ou ideias. O grupo antichavista é dependente de Chávez. Para ser franco, não creio que este seja um projeto de um lado ou de outro, mas uma consequência de uma disputa que se polarizou em torno da emblemática figura presidencial.

Dividida ao meio, a Venezuela é hoje um país cheio de problemas. Ostenta a segunda mais alta taxa de homicídios do continente e um dos maiores índices de inflação do mundo. Ou seja, sem se aprofundar demais, há muito o que ser resolvido. E quando os problemas são sérios – como nesses casos –, os grupos políticos deveriam estar empenhados em apresentar propostas para resolvê-los. Mas estão todos divididos em torno da personalidade e dos métodos de Chávez. Sua ausência temporária deixou isso bem claro.

E se o presidente é um tanto questionado pela oposição interna, é preciso dizer que este mesmo grupo não tem lá muito do que se orgulhar. Além de não apresentar muitas ideias, este é um momento particularmente problemático. Alguns de seus líderes fizeram um enorme favor a seu maior inimigo ao procurar o embaixador americano em Caracas e requisitar auxílio financeiro de instituições governamentais dos EUA para, claro, combater Hugo Chávez. As informações foram divulgadas pelo WikiLeaks e, não tenham dúvidas, o presidente venezuelano vai se fartar com elas. Para completar o perfil patético da oposição venezuelana, vale dizer que os americanos disseram não ter nenhum interesse em se intrometer nos assuntos internos do país.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Polônia pode ser a boa surpresa europeia

Enquanto a Europa passa por um de seus piores momentos na história recente, um acontecimento passa despercebido. A Polônia assume a presidência rotativa e temporária da União Europeia. Até aí, nada. O revezamento é parte da estrutura política do bloco e a presidência húngara que se encerra nesta sexta-feira passou, digamos, em brancas nuvens. Quer dizer, houve uma série de acontecimentos relevantes e eles ainda estão em curso, mas a verdade é que a Hungria não fez grandes contribuições.

Não se sabe se os poloneses adotarão perfil muito diferente, mas há bons motivos para vislumbrar novidades. Coincidentemente, inclusive, é um tanto representativo a presidência da UE ficar a cargo da Polônia nesses tempos turbulentos. O país se apresenta como uma espécie de “nova” Europa. Se a crise grega polarizou o grupo perversamente chamado de PIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) e as grandes economias de Alemanha, França e Grã-Bretanha, a Polônia pode ser uma terceira via.

Atualmente, o país vai relativamente bem. É a sexta maior economia do continente – está entre as 20 maiores do mundo –, mantém índice de crescimento anual de 4% e prevê um déficit de 2.9% em relação ao PIB em 2012. Não são dados impressionantes, mas contrastam positivamente com a catástrofe generalizada. Num período em que, como escrevi durante esta semana, os laços que unem os Estados-membros da UE estão desgastados – para falar o mínimo –, o discurso polonês soa como resgate teórico dos objetivos do bloco. O primeiro-ministro Donald Tusk fez questão de dizer que a solidariedade europeia precisa ser mais do que um simples slogan. Pode ser um discurso de posse, claro, mas mostra uma disposição interessante.

É a primeira vez que a Polônia assume a presidência da UE. E é bom lembrar que os quesitos de poder mudaram. Diante do mar de insegurança e incerteza, os poloneses pelo menos aparentam estar no rumo certo. E isso já é muito. Como há cada vez mais complexidades e novos atores no cenário internacional, não seria surpresa se o governo de Varsóvia passasse a reivindicar ganhos políticos. Ocupar a presidência europeia neste exato momento pode ser arriscado, mas também pode abrir caminho para oportunidades. Como a Polônia tem sua própria agenda, é possível que passe a ter mais força para torná-la prática.

Dentre algumas das intenções polonesas conhecidas e expostas pelos líderes do país estão a finalização das negociações para o ingresso da Croácia na UE, além de avanços nos diálogos com Turquia e Islândia. São objetivos ambiciosos principalmente quando o bloco europeu passa por este período bastante conturbado. A Polônia quer expandir justamente no momento de maior recuo político e econômico. Se Varsóvia conseguir acalmar o nervosismo interno no continente e também dar passos concretos para novas adesões, já terá feito muito mais do que esperado.