Depois de acompanhar ao longo desses últimos três anos os movimentos populares que se espalharam pelo mundo, é com muito prazer que escrevo sobre esses tumultados dias no Brasil. Ao contrário de alguns colunistas que pegaram o bonde errado da História, é bom deixar claro de cara que não se trata de um movimento a ser desprezado ou condenado. Esta é uma novidade política e social que chega para mudar o rumo do país. Este é um daqueles momentos que dividem o tempo histórico entre antes e depois. E, no caso brasileiro, isso é muito bem vindo.
Digo isso porque houve algumas tentativas de minimizar, reduzir e até mesmo desrespeitar tudo o que vem acontecendo. Todas elas falharam. O movimento popular no Brasil é bem mais amplo do que a revolta contra o aumento das passagens de ônibus; é um movimento nacional de indignação contra uma série de práticas, é uma contestação generalizada da própria natureza do Estado brasileiro. Curiosamente - e, mais uma vez, felizmente -, o grande ópio nacional pode ser interpretado sim como um dos principais detonadores da fúria popular: o futebol. As obras espalhadas pelo território brasileiro - e principalmente a construção dos estádios para abrigar a próxima copa do mundo - se transformaram num imenso foco de insatisfação. O superfaturamento foi muito claro e os absurdos gastos empregados para erguer as tais arenas acabaram interpretados pela sociedade como a gota d'água nos muitos escárnios que o Estado brasileiro insiste em esfregar na cara de seus cidadãos.
É claro que o aumento das tarifas de ônibus se juntou a tudo isso. Aumentar tarifas e inaugurar seguidos elefantes brancos superfaturados são elementos que formam uma receita explosiva. Mas ninguém imaginou que as manifestações pudessem ser tão articuladas - e ao mesmo tempo tão espontâneas - a ponto de mobilizar multidões em boa parte das capitais nacionais. Como se trata do maior movimento popular dos últimos 20 anos, as passeatas se transformaram em expressão de diversas bandeiras. E este é motivo de mérito, não de contradição, como alguns tentaram dizer. A quantidade de reivindicações não tira a legitimidade da revolta, muito pelo contrário. Ou alguém questiona que neste país não faltam razões para ir às ruas protestar?
Este pode ser o início da consolidação democrática do Brasil. Sim, porque construir uma democracia - ainda mais num país complexo e gigantesco como o Brasil - não é um processo que se encerrou com a abertura política ou com a manutenção do sistema de rotatividade do poder político. A construção democrática pressupõe garantias práticas aos cidadãos para que se expressem coletivamente.
Voltando à copa do mundo, é importante lembrar que jamais os brasileiros foram consultados sobre a construção de estádios superfaturados. Como justificar a construção de um estádio ao custo de mais de 1 bilhão de reais em Brasília, onde sequer há um time de massa capaz de justificar tal investimento? Como responder à mentira de que sediar eventos da magnitude de uma copa do mundo - e continuar a injetar dinheiro público para tal - se justificaria em função do tal "legado" à população? Onde está o legado? Onde está o transporte de qualidade, por exemplo, supostamente a grande herança que seria deixada pela copa?
Pois é, tudo isso fez o caldo entornar. E, mais ainda, o aparente silêncio de grandes grupos de comunicação, que acabaram tentando varrer tudo isso para debaixo do tapete e usar o velho artifício da pátria de chuteiras. Hoje, com a sociedade integrada pelas redes sociais - e tendo inúmeros exemplos mundo afora dos movimentos de ocupação popular das ruas -, esta estratégia falhou. Não apenas falhou, mas também revoltou. A resposta a tudo isso está nas ruas do Brasil, um país que começa a demonstrar que está chegando para valer à democracia 2.0.
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