“Suponha que o regime sobreviva. Que tipo de Síria ele iria governar?”. Esta é uma das reflexões mais serenas que li sobre o guerra que já está em curso no país. Foi escrita por Robert Fisk, jornalista e reconhecido estudioso do Oriente Médio – com quem nem sempre concordo, diga-se de passagem. No entanto, ele consegue abstrair de toda a sorte de elucubração para lançar uma dúvida óbvia. Por quanto tempo é possível manter a própria população em estado de permanente insatisfação e belicosidade num mundo onde as fronteiras são cada vez mais perenes? E quando falo em fronteiras me refiro às que dividem países, mas também aos obstáculos que tentam impedir manifestações, interação e comunicação com o resto do mundo.
No século 21, a forma de controle rígido que muitos praticaram até o passado recente está muito difícil de ser mantida. Considero esta uma das principais contribuições da tecnologia – e, felizmente, algo que se fortaleceu neste começo de milênio. Escrevi na terça-feira sobre os motivos práticos que tornaram a Rússia a superdefensora dos interesses de Bashar al-Assad. Acho importante contextualizar esta diretriz de Moscou de forma a não transformá-la numa espécie de exemplo singular de agente internacional de decisões geopolíticas que estão no lado errado da história.
A Rússia está longe disso. Principalmente porque todos os países agem de acordo com seus interesses. A geopolítica não é o espaço do exercício da bondade humana, muito pelo contrário. Por exemplo, eu tenho escrito muito sobre o programa nuclear iraniano desde que criei este espaço, em 2008. Acho mesmo que as ambições atômicas iranianas são fator de instabilidade regional numa região que obviamente já é bastante problemática. A comunidade internacional se preocupa com o assunto e de tempos em tempos procura encontrar soluções capazes de conciliar os distintos discursos em jogo: o argumento iraniano de que tem o direito de buscar energia nuclear; a posição ocidental – amparada pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) – quanto a evidências de que o país tem intenções de produzir arsenal militar nuclear; e o discurso de todos os envolvidos de que a guerra é uma possibilidade, mas não reflete a vontade inicial de ninguém.
Em maio de 2010, Brasil e Turquia conseguiram resolver o problema, estão lembrados? O Irã chegou, inclusive, a assinar um acordo mediado por esses dois países em que se comprometia a enviar ao exterior urânio com baixo enriquecimento em troca de combustível para seu reator de pesquisas. A partir daí, no entanto, as potências nostálgicas do mundo do século 20 jogaram água na conquista diplomática de Brasil e Turquia. Porque geopolítica é o espaço de luta por interesses, não necessariamente de solução dos problemas mundiais. Se o acordo com os iranianos fosse levado adiante, brasileiros e turcos seriam alçados ao primeiro escalão da política internacional, tendo ainda mais força para pleitear a revisão das configurações de poder ainda vigentes e, inclusive, alavancando o discurso de inclusão de novos membros no Conselho de Segurança da ONU. Sarkozy e Obama colocaram na balança e optaram pelo mal que lhes parecia menor: a manutenção do impasse sobre o programa nuclear iraniano.
Mesmo a relação tão criticada entre Lula e Mahmoud Ahmadinejad pode ser lida como uma tentativa do ex-presidente brasileiro de alçar o Brasil ao palco principal do jogo de poder internacional. Aliás, acho que esta hipótese explica muito esta opção de Lula.
Tudo isso para dizer que a Rússia está errada ao sustentar o regime de Bashar al-Assad. Mas os demais países não podem se considerar os guardiões do bom-senso mundial. Muito pelo contrário.
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