quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Bolsa Família, alvo principal da militância virtual

No último texto, escrevi sobre a manifestação do Brasil Virtual durante a campanha eleitoral. Para encerrar por ora o assunto, queria abordar rapidamente um dos aspectos mais criticados pelos militantes virtuais: o Bolsa Família. 

Em primeiro lugar, queria dizer que considero importante examinar com rigor o cadastro dos beneficiados. Esta é uma atribuição das prefeituras. Há muita reclamação sobre beneficiários cadastrados indevidamente, pessoas que já têm renda e não precisariam receber o complemento do programa. Essas situações devem ser investigadas. Um programa social como o Bolsa Família precisa, claro, contemplar quem de fato necessita desta renda para viver.

Dito isso, quero abordar um dos lugares-comuns mais repetidos durante as manifestações virtuais: a ideia de que o Bolsa Família não deveria existir porque “cada um deve correr atrás” de seu sustento e sobrevivência. Acho importante fazer um exame sobre este ponto específico. 

Para isso, vou contar uma parte de minha própria história de vida. Sou filho da classe média baixa e urbana do Centro-Sul brasileiro. Do Rio de Janeiro, mais especificamente. Meus pais são profissionais liberais. Meu pai, técnico em eletrônica; minha mãe, professora primária. Graças a seus esforços – e, para ser justo, graças à abnegação de minha mãe – tive uma boa educação formal. Estudei numa boa escola, fiz cursos de idiomas, cursei ensino superior e pós-graduação. E aí digo com a maior tranquilidade: isso não é correr atrás. O que fiz simplesmente foi estudar e ler muito. Isso é aproveitar as oportunidades que a vida e os esforços dos meus pais – e da minha mãe, principalmente – me proporcionaram. 

A minha história tem muito a ver com as oportunidades que o Brasil historicamente nega a muitos de seus cidadãos. Se eu não tivesse nascido numa família de classe média urbana, certamente não teria tido acesso às oportunidades educacionais que tive. Repito o que escrevi acima; isso não é “correr atrás”, pelo menos não no sentido acusatório usado pelos detratores do Bolsa Família durante a campanha eleitoral. 

Se eu tivesse nascido no sertão de Alagoas, Pernambuco ou no Vale do Jequitinhonha (uma das regiões mais pobres do Brasil), certamente não teria conseguido dar os passos educacionais tão naturais à classe média urbana do Centro-Sul do país. 

Expus parte da minha história de vida porque sei que este exemplo se assemelha a tantos outros – inclusive de quem se orgulha de ter “corrido atrás”. Ignorar voluntariamente que o Brasil não é um país justo e que oferece as mesmas oportunidades a seus cidadãos (independente do lugar onde nasceram) distorce o debate de ideias. E, em muitos casos, parece que foi justamente isso o que aconteceu quando se discutiu o Bolsa Família, um dos alvos prioritários da militância virtual. 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O Brasil do WhatsApp e do Facebook é um lugar estranho

Discordo da presidente reeleita Dilma Rousseff: o Brasil é um país dividido. E nem me refiro somente ao resultado apertado que deixou claro que existe de fato uma divisão da sociedade. O Brasil atravessou meses de uma disputa ideológica que marcou, pela primeira vez, um grande embate virtual. Em 2010, ainda com o Facebook em ascensão, a guerra na internet não provocou a ruptura nacional de agora. 

Desta vez, o Brasil de WhatsApp e Facebook mostrou a que veio. E este Brasil Virtual é um lugar estranho, muito estranho. O Brasil de Whastapp e Facebook é um terreno fértil e afeito às teorias de conspiração. É um lugar onde todo preconceito é válido e está legitimado. É um espaço onde qualquer um – sob o prisma do anonimato – se julga no direito de ferir. Onde os brasileiros aprenderam que podem repetir o que quiserem sem medo de consequências. 

No Brasil Virtual vale tudo o tempo todo. Neste país cheio de preconceitos e rancor, todos os nordestinos são migrantes em potencial. Todos os migrantes enchem o Centro-Sul de pavor. Todos são beneficiários do Bolsa Família. E o Bolsa Família é, para este Brasil Virtual, necessariamente um programa de governo para sustentar a boa vida de “vagabundos”. Este Brasil Virtual cheio de preconceitos e rancor acordou sonolento e deprimido.

Este Brasil do WhatsApp e Facebook deveria nos envergonhar. Mas ele está aí para quem quiser ver. Este Brasil Virtual, cheio de certezas e ofensas, mostrou que veio para ficar. Resta saber, a partir de agora, como o Brasil real se fundirá com o Brasil Virtual. Resta saber que Brasil irá emergir desta fusão.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Egito e Sudão se unem para intervir na Líbia

O Egito tem um objetivo claro ao tentar frear o avanço de grupos terroristas na
Líbia: a reaproximação com o Ocidente. Após todo o confuso processo pós-Primavera Árabe, o Estado Egípcio perdeu fontes de receitas importantes, como o turismo, por exemplo. Para o pragmatismo dos militares que atualmente comandam o país é chegada a hora de retomar o rumo da relação com americanos e europeus. 

Na visão de Abdel Fattah El-Sisi, general e presidente egípcio, nada melhor do que a crise na Líbia para mostrar aos ocidentais que seu país é um parceiro confiável. A Líbia é o retrato do fracasso das decisões tomadas pelo Ocidente ainda no susto da Primavera Árabe. Consertar a situação local seria um grande resultado a apresentar. El Sisi considera ser capaz de lidar com os diferentes grupos terroristas líbios porque ele não tem os compromissos e vulnerabilidades dos países ocidentais. 

Para ser mais claro, o Egito não tem lá grandes amarras, como a zona de exclusão aérea da então coalizão ocidental. Seus militares farão o que for preciso para retomar partes do território líbio sem a necessidade de dar muitas explicações. A operação deve levar pelo menos seis meses, de acordo com autoridades egípcias. E, notem bem, a cobertura internacional sobre o assunto é praticamente nula. Sem chamar a mesma atenção de uma coalização internacional como a liderada por EUA, El Sisi está virtualmente livre para fazer o que quiser na Líbia. Tanto que seu parceiro na empreitada é ninguém menos que Omar al-Bashir, presidente do Sudão acusado de crimes contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional. Em Darfur, já há mais de 480 mil mortos, além de 2,8 milhões de pessoas deslocadas. 

A cooperação entre Sudão e Egito não inspira lá muita confiança. Mas, como sempre escrevo por aqui, quando se trata de direitos humanos, a comunidade internacional é bastante seletiva quanto a que grupos merecem solidariedade. As centenas de milhares de sudaneses mortos nunca receberam apoio internacional. E Omar al-Bashir continua presidente. E faz até acordos de cooperação regional. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O retrato político da Líbia hoje

Para ilustrar o texto da última sexta-feira, vale mostrar a divisão interna na Líbia que, pelo menos por ora, acabou com o país. 

Do ponto de vista prático, o parlamento não existe. Os parlamentares líbios eleitos em junho tentam trabalhar baseados num hotel a mil quilômetros de distância da capital, Trípoli. Já em Trípoli, esses parlamentares não são reconhecidos. Por lá, os parlamentares anteriores se recusam a deixar seus cargos e continuam a trabalhar. Em Benghazi, cidade onde o embaixador americano foi morto, mas também epicentro do movimento que derrubou Kadafi, em 2011, o fundamentalismo islâmico do grupo terrorista Ansar al-Sharia é a autoridade local – e, claro, a al-Qaeda e sua rede de conexões participam da “gestão”.

Este é o cenário na Líbia, um ex-Estado nacional tradicional. Acrescentado ainda mais elementos, o Egito lidera uma ofensiva para retomar Benghazi do controle terrorista. A ideia é conseguir o que a ofensiva ocidental não teve tempo e interesse para concretizar em 2011. Após a derrubada de Kadafi, o Ocidente se dispersou, ainda na tentativa de entender os acontecimentos da Primavera Árabe. Agora, curiosamente, os egípcios decidiram ao menos tentar retomar o controle de parte da Líbia. É curioso na medida em que o atual regime no Cairo está longe de qualquer traço democrático e certamente não representa a ideia inicial da Primavera Árabe. Desenvolvo este assunto num texto mais adiante.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Fracasso na Líbia é o fantasma ocidental mais recente no Oriente Médio

Na semana passada escrevi sobre o cansaço do governo norte-americano em relação ao Oriente Médio. Enquanto as atenções estão voltadas para o bem sucedido avanço do Estado Islâmico (IS), acho importante lançar luz sobre a Líbia, o grande exemplo recente do fracasso da intervenção ocidental na região. 

Desde a morte de Kadafi, em outubro de 2011, a ideia da reconstrução líbia como um Estado democrático – e modelo para os demais países que viveram os movimentos conhecidos como “Primavera Árabe” – se mostrou, no mínimo, pouco provável. Especialmente os EUA experimentaram no país uma situação de oposição muito representativa da degradação do cenário de estabilidade local. Em 11 de setembro de 2012, portanto menos de um ano após a queda e morte de Kadafi, o grupo terrorista Ansar al-Sharia invadiu o consulado americano em Benghazi, no nordeste do país, matando o embaixador americano e mais três oficiais. 

Na Líbia, ficou evidente um novo modelo de guerra regional, onde grupos terroristas de diversas fidelidades se aliam para derrubar o ditador local transformando, na sequência, o país num território livre. Muitas oportunidades surgem do Estado falido a partir de seus escombros: armamento, dinheiro e negócios (o mercado negro é sempre muito lucrativo e envolve venda ilegal de petróleo e contrabando de obras de arte e descobertas arqueológicas). Tudo isso explica, em boa medida, a indecisão de americanos e europeus para se posicionar em relação à guerra civil síria. Temem, com razão, que o ocorrido na Líbia se repita após a queda de Bashar al-Assad.  

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O IS próximo a Bagdá deixa Obama vulnerável

No texto de sexta-feira, comentei sobre o problema envolvendo o atual estado de reação dos EUA aos eventos no Oriente Médio. Assim como o surto do vírus ebola na África ressalta o abandono e pobreza do continente, a ascensão do Estado Islâmico (IS) expôs o desgaste do governo americano com a região, especialmente no Iraque. 

A retirada das tropas americanas do país no final de 2011 não foi unanimidade em Washington. Mas o presidente Obama considerava necessário deixar o país pela falta de garantias legais às tropas. John Nagl, ex-militar dos EUA que serviu nas duas guerras do Iraque, lembra o episódio no site Politico:

“O Secretário de Defesa, Leon Panetta, a secretária de Estado, Hillary Clinton, o diretor da CIA, David Petraeus, e os chefes do Estado Maior recomendaram a manutenção de uma presença consultiva (de militares) no Iraque. A Casa Branca decidiu o contrário, argumentando que o governo iraquiano não daria a imunidade legal necessária (aos soldados)”. 

A tendência agora é que Obama sinta de novo a pressão, principalmente após a entrevista de Martin Dempsey (foto), chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. O principal assessor militar da presidência americana disse que foi preciso enviar helicópteros Apache para resgatar militares iraquianos em combate com terroristas do IS que estavam há cerca de 25 quilômetros de distância do aeroporto de Bagdá. A declaração, claro, causou alarde, na medida em que a possibilidade de tomar o aeroporto da capital iraquiana evidencia ainda mais a fragilidade da situação real. O IS deixou de ser uma ameaça distante no meio do deserto para se tornar um inimigo capaz de pôr tudo a perder no território onde os EUA mais lutaram para reconstruir o cenário político local.

Obama já está no foco. Se Bagdá cair, receberá muito mais críticas. E, lembrando, em 4 de novembro haverá eleições legislativas nos EUA para definir o Congresso americano nos próximos dois anos. 

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

EUA e Obama já não aguentam mais o Oriente Médio

O editorial desta sexta-feira do New York Post procura vincular a situação crítica da cidade de Kobane, na fronteira entre Síria e Turquia, a um desastre da estratégia regional americana. Apesar de não concordar com esta premissa, consigo compreendê-la. 

Em primeiro lugar, explico: não acredito que a ideia do fortalecimento do IS seja uma derrota explícita da política externa de Obama. Isso porque esta ideia parte do princípio de que os EUA têm uma estratégia para o Oriente Médio. E aí devo dizer que os americanos já estiveram mais preocupados com as questões da região. Hoje a situação é um pouco diferente; é claro que não se pode imaginar os passos de qualquer governo em Washington traçando os caminhos das relações internacionais do país deixando o Oriente Médio de fora. Mas, 13 anos após 11 de Setembro e duas guerras que parecem não se concluir, os americanos estão cansados do Oriente Médio. E quando me refiro aos americanos me refiro inclusive a seu presidente. 

Barack Obama não teve lá grandes vitórias internacionais. Mesmo tendo recebido o prêmio Nobel da Paz em 2009, o presidente Obama teve muitas dores de cabeça tratando do posicionamento americano no mundo. E isso é muito curioso na medida em que a comunidade global depositou muitas esperanças em Obama desde a sua ascensão meteórica para vencer as eleições presidenciais de 2008. Mas a verdade é que os frutos de suas decisões internacionais não lhe renderam grandes vitórias. Vale lembrar o caso líbio, quando os EUA também coordenaram uma ofensiva de países que acabou resultando na queda e morte de Muammar Kadafi, em 2011. A Líbia acabou falindo como Estado nacional minimamente organizado, causando um fenômeno estranho: a sensação de que vencer foi perder. 

Tudo isso levou os EUA – e o presidente Obama como personificação do cansaço nacional – a reagirem mais do que agir. E por isso Obama admitiu, na última semana de setembro, ter subestimado a capacidade do IS. Porque Washington, os EUA e Obama já sabem que, no Oriente Médio, os esforços são muito grandes e os resultados, mínimos. O IS é hoje a representação deste impasse; é a representação da ideia de que se envolver no Oriente Médio não vale a pena. 

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Com Kobane em risco, Erdogan está no foco

Com a cidade de Kobane no centro dos combates entre IS e coalizão, a posição turca se agrava ainda mais. Para o presidente Recep Tayyip Erdogan, a opção é ganhar tempo porque sua situação é bastante complicada. A cidade na fronteira entre Síria e Turquia se transformou numa espécie de símbolo da divisão interna da Turquia e da vulnerabilidade momentânea de seu presidente e homem forte. 

Controlada pela filial do PKK na Síria (Partido dos Trabalhadores Curdos), Kobane agora é uma dor de cabeça. O líder turco se questiona sobre o impasse diante dos caminhos a seguir: lutar contra o IS, se contrapondo a setores radicais do próprio partido AKP (Justiça e Liberdade) que se reconhecem nas reivindicações terroristas do Estado Islâmico; abandonar Kobane à própria sorte, causando um problema de proporções incalculáveis com os 14 milhões de curdos da Turquia; aderir à coalizão internacional, virando as costas ao próprio discurso independente construído ao longo dos anos 2000.

Para piorar a situação de Erdogan, a popularidade do PKK está em ascensão. Como conseguiu acalmar os curdos da Turquia por meio de conversações de paz após 30 anos de combate, mexer neste vespeiro pode pôr tudo a perder. Mas não fazer nada também põe em risco sua opção. Por ora, em função do tamanho da complexidade, Erdogan prefere ganhar tempo. Mas esta decisão já reflete uma tomada de posição. Neste momento, enquanto não toma partido, ele vira as costas à Otan, aliança militar ocidental da qual a Turquia faz parte. Erdogan segue este caminho por saber que é possível retomar o diálogo com os ocidentais quando quiser. Enquanto isso, Kobane é o novo teatro de operações do Oriente Médio. 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A corrupção no centro das eleições brasileiras

Dando um tempo no cenário internacional, acho que vale fazer uma análise rápida sobre o quadro eleitoral brasileiro a partir dos resultados de domingo. Na corrida presidencial, Aécio está em vantagem porque vive uma situação bastante confortável e vai se aproveitar dela.

O PT está no governo desde 2003, tempo o bastante para alcançar conquistas, mas também se expor. Como se sabe, o PT mais do que se expôs nesses anos. E, sem contar com qualquer simpatia por parte dos grandes veículos, acabou enredado pelos casos de corrupção. Muitos deles foram superdimensionados e o partido foi singularizado, como se corrupção fosse prática política exclusiva do PT, o que certamente não é. A corrupção do PT acabou superexposta sem nenhuma piedade. Para Aécio, ficou fácil: bastou surfar na onda do que já estava dito; bastou aprofundar a discussão. Os debates mostraram como sua situação era confortável e o candidato do PSDB conseguiu se transformar numa espécie de questionador oficial da corrupção (como se o próprio PSDB mineiro não tivesse ele mesmo criado o mensalão).

Seja como for, os papéis atuais que PT e PSDB exercem no debate são consequência dos acontecimentos desses quase 12 anos de mandatos de Lula e Dilma. A fragilidade com que Dilma se apresenta – sempre na defensiva – é culpa exclusiva do próprio partido. Ao permitir que o PSDB se aproprie desta pauta, o PT se culpou. E aí deixou de lado um valor muito caro a seus eleitores históricos – à exceção da militância partidária sempre disposta a transformar política em paixão clubista.

No segundo turno, Aécio vai insistir no assunto, na medida em que Dilma sempre acusa o golpe. Estrategicamente, o PT deveria ter feito um exame interno profundo e comunicado este processo de forma clara à sociedade. Como não fez, alimentou a oposição. E as eleições atuais – até de maneira mais intensa que as eleições de quatro anos atrás – acabaram refletindo a inabilidade do partido em se reinventar de dentro para fora. Mesmo que Dilma vença – e esta é uma possibilidade real – fica claro que o PT precisa apresentar mais, precisa se modificar como partido. Parece que a legenda ainda obtém resultados nacionais graças à força de Lula. Mas quanto Lula é capaz de dar ao partido antes de o PT conseguir retomar a pauta da discussão da corrupção para si? 

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

No atentado a uma escola síria, o reflexo da incoerência internacional

Na Síria, mais uma tragédia. Desta vez levada adiante em Homs, pela al-Qaeda. O grupo terrorista explodiu dois carros-bomba perto de uma escola na área da cidade já retomada pelo governo de Bashar al-Assad. O segundo carro-bomba, inclusive, foi explodido enquanto os pais corriam para salvar seus filhos na escola. 

Dos 54 mortos, ao menos 47 são crianças. Quando inocentes morrem, é sempre lamentável. Quando crianças morrem – sejam elas sírias, palestinas, israelenses ou de qualquer nacionalidade – é ainda mais triste. O ocorrido mostra algumas questões: a primeira delas, a complexidade da guerra civil síria, onde a ditadura do presidente Assad enfrenta a oposição de grupos como a al-Qaeda, assunto sobre o qual venho tratando com insistência por aqui desde 2011. Não é simples tomar partido e, muito em função disso, a posição ocidental não está consolidada: armar a oposição a Assad é financiar uma associação nebulosa de fidelidades – entre elas a al-Qaeda. 

Outro ponto importante é a reação internacional. Como escrevi há pouco tempo, o Brasil perdeu uma grande oportunidade de demonstrar maturidade internacional ao condenar a coalizão que combate o IS. Combater grupos como o IS não é uma opção, mas obrigação de quem defende o direito internacional, as fronteiras internacionais e a autodeterminação dos povos. Quando o Brasil afirma ser favorável ao diálogo (com o IS!) está dando um tiro n’água, jogando palavras vazias ao vento. Perdendo, por consequência, uma grande oportunidade no fórum mais importante da política internacional. O IS é produto ainda mais radical da própria al-Qaeda.  

Estranho mesmo é perceber que, após este atendado em Homs, houve pouco protesto mundo afora. Não houve artigos irados, grandes condenações internacionais, protestos nas ruas das principais cidades, nada. O silêncio teve mais força. Ao contrário de tudo o que ocorreu entre junho e agosto deste ano. E ainda há aqueles que creem em coerência na condução dos assuntos internacionais...

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Agora presidente da Turquia, Erdogan retorna ao palco

Ainda sobre a ambiguidade turca, vale fazer um contraponto sobre os discursos e declarações do presidente Recep Tayyip Erdogan. Se por um lado ele concorda em combater o IS quando se encontra com autoridades do governo americano em Nova Iorque, por outro manifesta sua retórica independente – e isso significa a construção de abordagem para lá de duvidosa ao grupo terrorista. 

Ancara está prestes a aprovar a adesão de suas forças armadas – o segundo maior contingente da Otan – à coalizão internacional que luta contra o IS. Todos estão aguardando a decisão do parlamento turco. No entanto, vale ler uma parte das palavras de Erdogan em pronunciamento ao público em Istambul: 

“Enquanto a organização terrorista IS está causando desordem no Oriente Médio, no meu país há permanente terrorismo do PKK nos últimos 32 anos e o mundo nunca se importou. Por que? Porque esta organização terrorista (o PKK) não carregava o nome ‘Islã’”. 

Entenderam o que Erdogan quis dizer? Ele abriu uma brecha de interpretação que pode dar a entender que o motivo pelo qual o mundo passou a se importar com o IS tem mais a ver com o fato de se tratar de um grupo autodenominado representante do islamismo. A questão, no entanto, é bem mais simples: a ideia de combater o IS tem pouca ou nenhuma relação com o fato de ser um grupo islâmico (fundamentalista islâmico, para ser bem claro), mas com a barbaridade que marca suas ações e com a promessa que tem feito (e cumprido) de usar a violência diante de qualquer oposição. E oposição neste caso é um espectro enorme que varia desde o simples pertencimento a fidelidades islâmicas distintas à própria existência de fronteiras internacionais. A fronteira turca, inclusive. 

Mas Erdogan não abre mão deste posicionamento ambíguo de nenhuma maneira. Isso porque ele continua a querer se reafirmar como uma espécie de “pai” internacional dos muçulmanos. E, em sua linha de raciocínio bastante trabalhada nos últimos dez anos, mesmo a oposição ao IS poderia ser interpretada como uma adesão aos “valores ocidentais”. Ao mesmo tempo, o presidente turco não quer abrir mão do alinhamento lógico com parceiros estratégicos europeus e, claro, com o governo americano. Mas ele precisa disfarçar isso ao máximo, mesmo ao custo de um eventual isolamento político.