A série de atentados cometidos nesta quinta-feira no Iraque é ruim para todo mundo. Pelo menos para aqueles que pretendem encontrar alguma forma de acomodação política no país que seja capaz de permitir a seus cidadãos algo parecido a uma vida normal. Depois de Saddam Hussein e das milhares de mortes e perdas materiais ocorridas durante o período de presença das forças americanas, as pessoas comuns estão cansadas, muito cansadas. Quando atentados coordenados voltam a matar centenas de civis, como aconteceu nesta quinta, a população teme por um retrocesso significativo. Quem já perdeu demais conhece os sinais de uma tragédia iminente. Se os ataques terroristas já representam por si só catástrofes humanitárias óbvias, fica também o alerta de que a estrutura nacional construída a duras penas está novamente ameaçada.
E isso somente quatro dias depois de as tropas dos EUA deixarem oficialmente o Iraque. Na raiz dos problemas atuais a velha conhecida divisão sectária entre sunitas e xiitas. Se este é o dilema geopolítico mais amplo de todo o Oriente Médio, é no instável território iraquiano que ele revela sua faceta mais conturbada. Nos anos de Saddam Hussein a minoria sunita (cerca de 20% da população) era beneficiada pelo ditador. Com a queda de Saddam, os sunitas foram os principais insurgentes a combater a coalizão anglo-americana por motivos óbvios. Eles temiam o que poderia acontecer se o país fosse comandado pela maioria xiita (60% dos iraquianos).
De forma muito sagaz, Washington buscou um modelo político que pudesse abrandar as rivalidades, dando representação a todos os principais setores nacionais. Os xiitas ficariam com o cargo de primeiro-ministro, os curdos, com a presidência, e os sunitas, com a vice-presidência. E assim foi feito. Aliás, este é um projeto que bem ou mal funciona no Líbano. No caso iraquiano, os sinais de que algo iria dar errado já eram percebidos durante o duro processo de formação do governo, que por meses deixou o país num vazio político. Por fim, o xiita Nuri al-Maliki assumiu a liderança, tendo o sunita Tareq al-Hashemi como vice-presidente.
O principal bloco político sunita, o Iraqiya, acusa Maliki de tentar tomar todo o poder para si. Por isso, seus membros abandonaram o parlamento no último sábado. Agora um adendo externo: o primeiro-ministro é apoiado politicamente pela maior potência xiita do Oriente Médio, o Irã. Em meio ao embate geopolítico entre as alianças de Estados sunitas e xiitas, transformar o Iraque em aliado – com o poder nas mãos exclusivamente dos xiitas – é o melhor cenário para os iranianos. Ainda mais neste momento em que o país de Mahmoud Ahmadinejad e Ali Khamenei está em desvantagem numérica. Do ponto de vista da população sunita – que, obviamente, não está alheia aos acontecimentos externos –, impedir tal aliança parece ser a única alternativa para evitar o que ela imagina que pode se transformar numa grande vingança xiita pelos anos de privilégios concedidos aos sunitas durante o regime de Saddam Hussein.
Agora, de volta ao Iraque. O primeiro-ministro Nuri al-Maliki pôs o vice Tareq al-Hashemi na ilegalidade. Acusando-o de ter participação num atentado contra membros do governo há cinco anos, Maliki determinou sua prisão. Hashemi fugiu para Erbil, capital da região curda autônoma no norte do país. Portanto, é preciso dizer claramente: o governo iraquiano está em colapso. As rivalidades sectárias entre sunitas e xiitas estão formalmente de volta ao tabuleiro menos de uma semana depois da partida dos soldados americanos. Num olhar mais amplo e que leva em conta a situação internacional, o Iraque hoje está no centro das disputas. Isso porque as províncias de maioria populacional sunita (Anbar, Diyala e Salahuddin) passaram a reivindicar autonomia política. Para completar, Anbar faz fronteira com a Síria, cuja maior parte da população é sunita, e, assim que Bashar al-Assad cair, deve se aliar formalmente aos sunitas iraquianos.
Se o Iraque de fato for fracionado – e esta é uma possibilidade real – a guerra sectária que tomou conta do país voltará a acontecer. E, desta vez, será ainda pior porque os diversos interesses regionais se manifestarão com mais força no território iraquiano: os sunitas apoiados por Arábia Saudita e o eventual novo Estado sírio; e os xiitas apoiados pelo Irã. E este é apenas o cenário mais restrito do novo confronto que está por vir.
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