O colapso da trégua e das conversações indiretas entre Israel e membros do Hamas pode ter a ver com o quadro de rivalidades e disputas mais amplo do Oriente Médio. De acordo com o Al Hayat, jornal árabe publicado a partir de Londres, o Qatar estaria por trás do fracasso das negociações.
Segundo informação publicada na edição de quarta, o Qatar teria forçado o Hamas a retomar o lançamento de mísseis sobre Israel, chegando inclusive a ameaçar de expulsão de seu território o líder político do grupo, Khaled Meshal (que vive no Qatar desde 2010). Se isso soa estranho, vale fazer algumas considerações que ajudam a entender este processo menos óbvio – e certamente pouco abordado.
Já expliquei por aqui algumas vezes que a região é dividida hoje entre dois principais eixos: de um lado, os sunitas Egito, Autoridade Palestina, Jordânia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, além de Israel e EUA. Esta é uma aliança de interesses mútuos e, evidentemente, velada. Do outro lado, Turquia, Qatar, Síria, Irã, Hamas e Hezbollah. O Hamas não é um grupo xiita, mas era parte desta união de forças e fidelidades por questões pragmáticas. Esta última aliança foi desfeita, principalmente em função do apoio do Hamas aos grupos que combatem Bashar al-Assad na Síria. No entanto, o eixo está mais fechado entre três membros: Turquia, Qatar e Hamas. Curiosamente, nesses esses três membros a maioria da população é sunita.
A divisão entre esses eixos é pragmática. O foco da política externa do Qatar é estar à frente do processo de tomada de decisão política e econômica do Oriente Médio. Para isso, claro, alguém tem que perder. O problema com seus vizinhos do Golfo Pérsico é que eles também têm seus próprios objetivos. E aí é que começa o conflito, até agora silencioso, entre todos esses atores – e que influencia nos rumos da guerra entre Israel e Hamas.
Para o Qatar, a forma de enfraquecer seus inimigos geopolíticos é apoiar os adversários internos desses países, colocando em risco a estabilidade interna de cada um deles. A questão é que democracia passa longe de Egito, Arábia Saudita, Jordânia e Palestina. No entanto, a região tem assistido ao fortalecimento dos grupos islâmicos que se pretendem também protagonistas políticos. Isso aconteceu no Egito e na Tunísia pós-Primavera Árabe, por exemplo. Este também é um movimento forte – e presente no círculo de poder – na Turquia do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan.
Qatar, Hamas e Turquia se concentram no fortalecimento dos movimentos islâmicos. Por sua vez, esses movimentos representam uma ameaça às monarquias regionais, como Arábia Saudita, Emirados Árabes e Jordânia. Entre os palestinos, o Hamas é sua expressão e põe em risco o protagonismo da Autoridade Palestina. No Egito, a Irmandade Muçulmana chegou ao poder, mas foi derrubada pelo atual governo militar, causando baixa no eixo que estava se consolidando.
Ao ameaçar o Hamas e forçá-lo a não aceitar a extensão da trégua com Israel, o Qatar manda uma mensagem deste grupo político do Oriente Médio: não aceitará que o Egito pós-Irmandade Muçulmana assuma o protagonismo. E, mais importante, não dá legitimidade a este novo governo egípcio responsável pela deposição da Irmandade Muçulmana e por esta batalha perdida pelo movimento islâmico em sua guerra maior de aspirações regionais.
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