quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O Irã perdeu o protagonismo no Oriente Médio

Depois desses dias intensos de debate na ONU, ficou provado que o maior perdedor de todo o processo foi o Irã. Parece estranho, não é? Mas faz sentido quando se conhece o principal objetivo estratégico da República Islâmica. Em tempos de reorganização do sistema internacional, os iranianos – assim como o Brasil, diga-se de passagem – estão em busca de protagonismo.

O vácuo deixado pela Guerra Fria e os dez anos de muitas modificações que marcaram a primeira década do século 21 abriram os olhos de países e até de atores não-estatais que este é um momento de reconstrução. Um velho mundo se foi; outro está para emergir. E esta bagunça representa oportunidade.

O Irã vinha em alta. Quer dizer, o país se firmava ao mundo – e principalmente à população comum do Oriente Médio – como voz disposta a desafiar EUA, Israel e, no fim das contas, as potências ocidentais. Havia elementos para acreditar que o caminho do Irã era o confronto – mesmo que este se resumisse somente às bravatas que se tornaram comuns no governo do presidente Mahmoud Ahmadinejad.

O problema é que os iranianos não contavam que a Turquia estivesse disposta a pagar alto para lhes tomar o lugar. O patrocínio da “Frota da Liberdade”, em 2010, e o rápido posicionamento durante a Primavera Árabe se encaixaram com perfeição a características que só Ancara possui: modelo político que articula islamismo e democracia; posicionamento estratégico no Mediterrâneo; vaga na Otan. Para completar este cenário espetacular, Recep Tayyip Erdogan é o líder mais popular do mundo islâmico. Fica difícil competir, não é?

Resta ao Irã tentar algum protagonismo a partir do conflito com Israel. Esta é a única arma de que dispõe para retomar a posição perdida. Não por acaso, nesta semana coube ao ministro da Defesa do país, Ahmad Vahidi, anunciar na TV estatal que novos mísseis de curto e médio alcances foram distribuídos à Marinha. Esses mísseis podem atingir Israel e as bases americanas do Golfo Pérsico.

O esforço iraniano é tamanho que o ministro das Relações Exteriores, Ali-Akbar Salehi, convocou a União Europeia a retomar o diálogo sobre o programa nuclear do Irã. As pretensões atômicas do país representam hoje a principal preocupação ocidental, mas também as maiores esperanças do Irã de retomar a liderança no Oriente Médio. Por isso, não acho improvável que, a partir de agora, a República Islâmica volte a emitir comunicados sobre a evolução de suas usinas.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Tudo numa boa para israelenses, palestinos e americanos

A partir de amanhã, quarta-feira, as negociações serão retomadas na ONU sobre o reconhecimento de um Estado palestino. Por mais que ainda não haja uma sentença sobre o principal assunto polarizador de opiniões mundiais, já é possível identificar algumas das consequências da grande mobilização política da semana passada. Por incrível que pareça, ouso dizer que todos os três principais atores envolvidos saíram vencedores – muito embora as gradações dessas vitórias sejam distintas entre si.

Os palestinos venceram mais, claro. Não apenas reafirmaram seu poder internacional (e alguém duvida de como é importante o grande capital de simpatia pública nos dias de hoje?), como conseguiram também modificações de status-quo. Se durante os dois últimos anos a situação esteve bastante confortável ao primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, o paquiderme gigantesco no qual se transformou o processo de paz no Oriente Médio foi obrigado a se movimentar. Sem nenhum medo de errar, já dá para ter certeza de que algo está para mudar na região. Ainda é arriscado apontar as mudanças, mas, definitivamente, não há espaço para a manutenção das circunstâncias anteriores – bastante favoráveis ao líder de Israel e à sua coalizão. A comunidade internacional vai pressionar ao máximo e forçar as partes a negociar em termos práticos.

O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu também venceu – menos que os palestinos, mas conseguiu uma vitória importante, a única possível. Seu discurso na Assembleia Geral seguiu pelo caminho do realismo. Transmitido ao vivo para todo o mundo, agradou aos israelenses comuns por expor algumas das contradições da própria ONU, como o fato de o Líbano (com o Hezbollah como parte integrante do governo) ocupar a presidência rotativa do Conselho de Segurança; ou mesmo a Líbia, ainda presidida por Kadafi, ter participado do Conselho de Direitos Humanos. Fora isso, também fez questão de lembrar as negativas da Autoridade Palestina em negociar anteriormente. Mas a grande vitória israelense foi ter conseguido que países importantes como França e Espanha passassem a compartilhar o ponto de vista de Israel. Principalmente quanto à importância de uma solução negociada entre as partes antes da criação de um Estado palestino – não o contrário, como pretende o governo do presidente Mahmoud Abbas. Os israelenses também estão a caminho de estabelecer negociações diretas com os palestinos sem qualquer pré-condição.

Para completar, o próprio presidente Obama também se saiu bem. No final de uma semana difícil repleta de negociações de bastidores, sua proposta de acordo que prevê tomar as fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias como base para o estabelecimento de fronteiras atuais foi levada em consideração pelos dois lados – até mesmo por Bibi. Não há nenhuma novidade na posição da Casa Branca, mas houve tanta confusão após o discurso de Obama em maio passado que a ideia soou quase como novidade polêmica.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Aos palestinos, um Estado; aos israelenses, visão estratégica

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, parece um estadista. Ele tem ótima formação (com direito a diplomas de MIT e Harvard), fala inglês fluentemente e se porta com educação e assertividade. Talvez esses sejam alguns dos elementos que deem a ele este verniz. O problema é que há muita diferença estre este aparato até certo ponto estético e a vida prática de um estadista. Quando alguém se propõe a liderar países e povos deve ter em mente objetivos estratégicos capazes de assegurar uma boa perspectiva de futuro. Este era o caso, por exemplo, do primeiro primeiro-ministro de Israel, David Ben Gurion, e até do controverso Ariel Sharon.

Ben Gurion queria estabelecer o Estado Judeu. Era diplomático e tinha em mente a urgência da criação de um lar nacional judaico, mesmo que, após a partilha da Palestina histórica em 1947, aos judeus coubesse uma porção de terra mínima e, em sua maior parte, desértica. Já Sharon entendeu a necessidade de abandonar Gaza e causou uma confusão interna em Israel quando botou pé firme quanto à importância de desativar os assentamentos no território. Sharon e Ben Gurion eram figuras que possivelmente divergiriam completamente sobre a maior parte dos assuntos. Mas ambos tinham em mente não apenas a segurança do país que governavam, mas também um projeto de futuro. No caso de Sharon, inclusive, ele teve de engolir em seco e ir no caminho contrário a seus aliados históricos – Sharon é até hoje visto como um traidor pelos ex-colonos de Gaza.

Sharon e Ben Gurion são exemplos de estadistas que deram demonstrações concretas de estarem menos preocupados com objetivos pessoais, mas profundamente conscientes dos dilemas enfrentados pelo país que governavam. Netanyahu, no entanto, a cada dia deste seu mandato dá provas de estar focado simplesmente no mandato em si. Sua meta pessoal parece ser conseguir cumprir os quatro anos de governo.

Em Israel, por conta do sistema parlamentarista, é muito raro que isso aconteça. Para que Bibi consiga atingir tal objetivo, precisa manter a maioria dos assentos no Knesset. Consequentemente, não pode desagradar aos partidos religiosos e de direita que sustentam sua coalizão. A única forma de não bater de frente com esses partidos é não fazer nada. E Netanyahu vinha fazendo isso até agora (por mais contraditório que pareça). Adiou decisões sobre assentamentos e conseguiu atingir um bom patamar em Israel: nada de atentados, nada de grandes confusões políticas e o Hamas limitado a lançar mísseis sobre as cidades israelenses do sul sem conseguir causar grandes danos.

A zona de conforto acabou nesta semana, quando a AP anunciou e cumpriu a palavra de levar a questão à ONU. No entanto, Benjamin Netanyahu ainda poderia ter salvo seu país. Se usasse o palanque na ONU da maneira correta, claro. Se Bibi fosse um estadista de verdade, daria um golpe de mestre genial, mesmo que, domesticamente, tivesse de abrir mão de seu cargo. Se Bibi tivesse visão estratégica para além de seus quatro anos de governo, surpreenderia a todo o mundo com um pronunciamento espetacular transmitido ao vivo. Diria que, em nome da paz e do futuro do Oriente Médio, estaria disposto a reconhecer a demanda palestina apresentada. Para surpresa geral, Israel seria o primeiro Estado-membro a reconhecer a Palestina.

O pronunciamento seria uma reviravolta e só traria benefícios a Israel. Vamos a eles: o primeiro e mais óbvio é fácil de reconhecer; um Estado palestino constituído e independente em Gaza e na Cisjordânia resolve, automaticamente, um dos principais impasses do processo de paz: a questão dos refugiados. Acho que ficaria muito claro que, a partir do momento em que um novo país for criado, os refugiados palestinos passam a ter direito de serem cidadãos palestinos, e não alocados em Israel (posição atual da AP). Com este assunto resolvido, Netanyahu teria garantido o futuro de Israel como Estado judeu, uma vez que a maioria da população judaica nas fronteiras de Israel estaria garantida.

Se a Palestina fosse criada nas fronteiras de 1967, Israel também daria uma chave-de-braço permanente no Hamas (olha só!). Ao dar aos palestinos um país por meio de reivindicações restritas à esfera política, esvaziaria o discurso e os métodos violentos do Hamas. Com um Estado palestino em Gaza e Cisjordânia, o Hamas passaria a ser um problema do governo palestino. Além disso, nunca é demais lembrar que o Hamas pretende criar um país por cima do que é Israel hoje, não ao lado de Israel (como defende a AP). Os israelenses dariam uma lição ao países vizinhos: “a política resolve nossos problemas; se nos atacarem militarmente, não conseguirão nada”.

Para completar em grande estilo, Israel acabaria com os argumentos de seus inimigos. Imaginem a cara do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, diante deste surpreendente pronunciamento? E o isolamento político internacional do país? Como seria mantido a partir de uma iniciativa como esta? Este poderia representar um passo gigantesco inclusive para forjar um acordo de paz amplo com os demais países árabes. Ao apoiar um Estado palestino nas fronteiras de 1967, Israel daria um nó tático em qualquer argumento político anti-israelense.

No entanto, Israel está sozinho neste momento. Mesmo o apoio americano sob a presidência de Barack Obama tem se mostrado infrutífero. Aliás, Obama tem péssimas relações com Netanyahu e está impaciente e irritado por ter de usar o poder de veto dos EUA no Conselho de Segurança. Se o atual presidente americano for reeleito, as relações com Israel serão cada vez mais frias.

Seria tão bom que Bibi tivesse alguma visão para além do próprio mandato. Que se preocupasse mais com o futuro de Israel do que com o seu próprio. E, para falar a verdade, se Bibi desse este passo gigantesco poderia até continuar como primeiro-ministro. Poderia até ser abandonado pela sua coalizão tradicional, mas talvez conseguisse formar um governo de união nacional em torno de uma empreitada pela paz. Isso já aconteceu antes e poderia ocorrer novamente.

Segurança de Israel

Benjamin Netanyahu deixou claro em seu pronunciamento na ONU que se preocupa com a segurança dos israelenses a partir da criação de um Estado palestino na Cisjordânia. Ele está certo. Muito próxima do centro de Israel, a Cisjordânia poderia se tornar base de ataques ao Estado judeu – e à maioria da população de Israel que se concentra na região central – no momento em que se tornasse independente. A questão é: Israel vai correr este risco em algum momento, uma vez que a Palestina vai ser um Estado independente mais cedo ou mais tarde. Mesmo que um acordo de paz seja alcançado, não é uma assinatura que vai evitar novos ataques aos israelenses, mas compromisso e tempo para aceitar a realidade. Como um país, qualquer ato contra Israel poderia ser tomado como um ato de guerra. Não acredito que os palestinos estariam dispostos a bancar um confronto com a principal potência militar do Oriente Médio. Eles sabem que seriam os principais prejudicados.
 
E mais: o reconhecimento do Estado palestino não mudaria tudo de uma hora para outra. Na prática, funcionaria como ato obrigatório que levaria as autoridades dos dois lados de volta à mesa de negociações para estabelecer prazos e metas para tornar o projeto viável. É claro que, com o capital de simpatia restabelecido, Israel poderia exigir garantias quanto à segurança dos assentamentos enquanto o processo de desmantelamento e conversações continuasse.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O Brasil, os palestinos e o sistema internacional

O discurso da presidente Dilma Rousseff na ONU não surpreendeu. Ela seguiu à risca o recente histórico da política externa brasileira ao defender o reconhecimento pleno do Estado palestino. No entanto, é preciso dizer que esta prática não se deve tão somente à solidariedade com os palestinos ou ao alinhamento com o eixo sul-sul (para usar um termo bastante comum ao Itamaraty). Essas questões são importantes, mas a estratégia vai mais além.

Soa repetitivo, mas o próprio governo brasileiro procura insistir na tecla de que seu objetivo é reformar, ampliar e, claro, fazer parte de um eventual novo Conselho de Segurança. A tentativa palestina de conseguir reconhecimento nas Nações Unidas é o tipo de situação ideal para o Brasil. A explicação é simples e segue os passos burocráticos planejados pela Autoridade Palestina.

A requisição será apresentada ao CS. Como se sabe, não será aprovada. Mesmo que conte com a adesão da maioria dos membros, será vetada pelos EUA. Como escrevi, Washington não quer fazer uso deste recurso, mas, se não houver acordo com os palestinos e os demais países, será obrigado a fazê-lo. A partir daí, o assunto será levado à Assembleia Geral. Lá, sob aplausos e consternação, os países-membros aprovarão a demanda palestina. Este quadro deixará evidente a disparidade entre o CS e a Assembleia Geral.

Este é o melhor cenário para o Brasil, segundo as autoridades do Itamaraty. Quanto mais distantes estiverem as posições do CS e da Assembleia Geral, melhor. Neste mundo em transformação, países emergentes como Brasil, Turquia e Índia querem representatividade internacional.

Para este grupo de Estados, o CS é um retrato em sépia de uma configuração diplomática, política e militar do pós-guerra. Como buscam ampliação e reforma do fórum, precisam de elementos para argumentar. O veto ao reconhecimento palestino atende plenamente à premissa defendida por Brasil, Índia, Turquia e demais candidatos emergentes de que o desejo da maioria dos membros da ONU não será atendida.

A questão acaba por se transformar em exemplo a ser usado pelo Brasil e por outros países como forma de expor as contradições da sistema internacional. Na prática, o tema também passou a ser um cavalo de batalha entre os que querem a manutenção da hierarquia atual e os que pretendem subvertê-la.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O furo na estratégia palestina

Por mais que os negociadores palestinos e o presidente Mahmoud Abbas estejam seguros, todo mundo sabe que não é possível simplesmente excluir os EUA das discussões do Oriente Médio. Ao que parece, no entanto, a Autoridade Palestina decidiu arriscar tudo – até por conta do que tenho escrito por aqui. A situação é confortável até certo ponto aos palestinos e os americanos chegam a acusar o impacto da resolução a ser apresentada nesta sexta-feira. A secretária de Estado Hillary Clinton se contorce como pode de forma a encontrar alguma solução ao impasse. Por ora, nada.

O temor da Casa Branca é ver ruir o trabalho dos últimos quatro anos, durante os quais Washington tentou de tantas maneiras uma reaproximação com o mundo muçulmano. Como o presidente da “mudança”, este era um objetivo pessoal de Barack Obama. Também por isso os EUA se esmeram em esforços para evitar de todas as formas que o país faça uso do veto ao Estado palestino no Conselho de Segurança. Numa semana onde o termo simbolismo vem sendo usado com tanta desenvoltura, vale dizer que o “não” dos americanos aos palestinos será simbólico. O problema é que alguns simbolismos valem mais do que outros. E se há um assunto que une a opinião pública dos países islâmicos como nenhum outro é a causa palestina. Deu para entender o peso do provável “não” americano transmitido ao vivo pela Al-Jazira.

Abbas está convicto de que este é o momento para fazer uso deste poder. E ele até está certo, mas com limitações. Por exemplo, pode ser uma boa estratégia incluir novos atores na mediação (como Turquia e Brasil), mas ainda vai demorar até que esses países possam substituir completamente os EUA. Até lá – e não há garantias sequer de que isso irá acontecer – é preciso lidar com Washington. E por mais que colocar Israel e EUA em rota de colisão represente uma tentação aos palestinos, Obama e Netanyahu são ocupantes temporários de seus cargos.

Não me parece tão inteligente humilhar Obama no mundo árabe e muçulmano (algo que concretamente pode acontecer, como escrevi acima). É menos inteligente ainda acreditar que se a situação está ruim com Obama ela será melhor em sua ausência. Principalmente porque, às vésperas das eleições nos EUA, tudo se transforma em motivo de polarização política. E, claro, a proposta palestina entra no bolo. Por mais que Obama tenha maior aprovação entre os eleitores judeus e por mais que 80% dos judeus americanos costumem votar no partido Democrata, os republicanos encontraram no conflito palestino-israelense uma plataforma para bater na política externa do presidente americano. Radicalizaram para o outro lado e tentam expor Obama como um inimigo de Israel.

De forma a seduzir o chamado voto judeu, prometem de tudo: mudança da embaixada americana para Jerusalém, intransigência nas negociações com os palestinos, fechamento do escritório da Autoridade Palestina em Washington e corte da ajuda financeira aos palestinos (os EUA são os maiores doadores individuais). Isso, claro, se algum dos candidatos do partido vencer as eleições. Acho fácil prometer este tipo de estripulia quando não se ocupa nenhum cargo. Não acredito na consumação dessas medidas no caso de vitória republicana nas eleições presidenciais do ano que vem, mas dá para ter certeza de que as negociações de paz devem ser tão complicadas quanto no período de George W. Bush.

E este é o furo da estratégia atual palestina. Se em curto prazo soa interessante expor os americanos e seu presidente, mais para frente isso pode se mostrar um erro grave.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

As condições muito favoráveis ao Estado palestino

A cartada final palestina acontece num momento estratégico. Todas as condições foram criadas em 2011 para romper com realidades pré-existentes. A Primavera Árabe, o isolamento de Israel, e a ascensão de novos atores internacionais constituem uma espécie de grande onda em que a criação de um Estado palestino soa quase como movimento natural. O presidente Abbas sabe disso e conhece os inúmeros fatores que estão a seu lado.

Tudo isso contribui para que ele se coloque nesta posição irreversível, mesmo diante dos apelos de EUA, do secretário-geral da ONU, da União Europeia e de parte das potências ocidentais. O eixo mudou e é hora de aproveitar.

A Primavera Árabe não chegou aos territórios palestinos. As denúncias de corrupção são as mesmas, mas e daí? O Egito se indispôs com Israel, esfriando de vez as relações entre os países. A Síria, que nunca foi aliada dos israelenses (pelo contrário), mas sempre deixou claro que não estava disposta a um novo embate militar com o Estado Judeu, está afundada em seus próprios problemas. O grito popular por democracia e reformas nos países árabes se tornou realidade, imprimindo certo estranhamento aos países da região alheios ao movimento.

Diante desta configuração, as populações árabes tomam como um passo definitivo a criação de um Estado palestino neste momento. Como não aproveitar esta admiração internacional criada neste ano? Por que não surfar nesta onda? Mahmoud Abbas pode esticar a corda o quanto quiser. Ele não tem nada a perder. Pessoalmente, qualquer resultado o beneficiará. Se um Estado palestino for reconhecido oficialmente, ele terá tirado do papel um projeto nacional jamais alcançado; se for aprovado simbolicamente, já terá ido muito mais longe do que o próprio Iasser Arafat. Se na pior hipótese – e a mais remota delas – encontrar muitos obstáculos pelo caminho, será reconhecido como um mártir político em luta contra as potências ocidentais.

No fim de todo o processo, Abbas deve se tornar o maior vencedor. E isso tudo apenas seis meses depois do vazamento promovido pelo WikiLeaks dando conta de uma espécie de acordo informal oferecido por Abbas e a cúpula atual palestina a Israel. Pouca gente lembra desta história agora, mas este foi um tremendo escândalo potencial abafado graças ao início da Primavera Árabe. O presidente palestino deve ser eternamente grato ao movimento de insurreição popular nos países árabes vizinhos desde seu início e também agora, na fase de aparente conclusão.

Fora tudo isso, os atores que se pretendem protagonistas regionais estão muito satisfeitos. A Turquia se descolou de Irã e Síria (por onde anda Mahmoud Ahmadinejad?) e agora busca estabelecer uma aliança com o Egito. O novo governo do Cairo se afastou de Israel por entender que se aliar ao líder mais popular do mundo muçulmano contemporâneo (o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan) pode ser útil para alavancar negócios e estabilizar a situação no momento seguinte à queda do ex-presidente Hosni Mubarak. A fórmula inventada por Ancara de articulação entre democracia e islamismo faz sucesso e parece ditar os sonhos políticos desta geração de jovens muçulmanos.

Para a Turquia, reforçar laços com esses países emergentes dos embates contra as próprias ditaduras alimenta ainda mais a admiração ao sistema turco. Para completar, entrar em rota de colisão com Israel supostamente para defender os interesses palestinos é uma atitude não apenas coerente, mas esperada por este novo perfil ativista árabe (é bem verdade que a causa palestina sempre foi unanimidade). Ancara entendeu que estar ao lado desses jovens muçulmanos que tomaram as ruas e os governos é um investimento que vai render muito. Ainda mais porque eles querem um exemplo de democracia a seguir e a Turquia pode oferecer isso.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O projeto palestino e a grande desestruturação regional

Finalmente, começou a semana mais importante do Oriente Médio desde a criação do Estado de Israel, em 1948. No próximo dia 23, os palestinos irão à ONU pedir o reconhecimento de seu país. O que vai acontecer a partir desta iniciativa é mera especulação, mas acredito mesmo numa mudança de paradigmas regional. E quando se fala em algo desta grandeza na região mais problemática do planeta, há uma variedade de opções no meio do caminho entre guerra total – a possibilidade mais extrema – e a completa inércia – a alternativa mais remota e menos provável.

A intenção das lideranças políticas palestinas é mudar a realidade do terreno. Principalmente porque a proposta que devem apresentar à Assembleia Geral das Nações Unidas não se restringe à alteração do nome Autoridade Palestina para simplesmente Palestina. Longe disso.

O texto que vão colocar em pauta de votação é preciso para atingir em cheio o governo do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu. Será claro e direto ao exigir a legitimação do Estado palestino nas fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias, em 1967. Como certamente esta iniciativa contará com amplo apoio dos 192 países que compõem Assembleia Geral, na prática, a ONU vai dar o seguinte recado a Israel: “mais uma vez e com muito mais força, nós nos opomos que Jerusalém Oriental seja parte do Estado de Israel e, menos ainda, sua capital. Da mesma forma e com o mesmo impacto, nós nos opomos que 400 mil judeus continuem a viver na Cisjordânia”.

Dá para entender o impacto de uma legitimação internacional como esta no conflito de maior impasse do planeta? Os palestinos farão uso dessas palavras como forma de alcançar seus objetivos históricos: criar seu país, acabar com os assentamentos judaicos e, além de tudo, pôr em xeque o destino de Jerusalém Oriental.

Não é à toa que agora não apenas Netanyahu passou a topar negociações sem fazer muitas exigências (antes, exigia que o Hamas não fizesse parte de um governo de coalizão ou que os palestinos reconhecessem Israel como um Estado judeu). Agora, a situação mudou completamente. Qualquer negociação beneficia Israel; o problema para o premiê israelense é que os palestinos estão no controle e não têm mais nada a perder.

Todo mundo sabe da ampla simpatia internacional à causa palestina. E sondagens mostram que a resolução favorável ao Estado palestino passará com folga na Assembleia Geral. Na pior das hipóteses ao presidente Mahmoud Abbas (foto), a pressão sobre Israel será tão grande que forçará o governo Netanyahu a retomar as negociações em profunda desvantagem política. Na melhor das hipóteses para as pretensões palestinas, forçará a queda do atual gabinete israelense.

Essas são apenas alguns dos cenários que podem surgir nesta semana decisiva. Resta saber como as populações irão reagir; até porque ninguém ainda sabe responder como vão ficar – juridicamente e na prática – os 400 mil judeus que vivem na Cisjordânia. Se a Palestina for mesmo aprovada – mesmo que simbolicamente –, esta população judaica entra numa espécie de “limbo” legal. Qual será seu destino nos dias seguintes à votação é uma incógnita de conseqüências dramáticas para ambos os lados.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Semana especial: palestinos em busca de reconhecimento

Caros leitores,

tirei cinco dias de folga, mas retorno já na segunda-feira. A próxima semana será exclusivamente dedicada ao projeto de criação de um Estado palestino reconhecido pela ONU.

domingo, 11 de setembro de 2011

11/9: dez anos depois, a vitória dos EUA sobre a al-Qaeda

Talvez este texto tenha validade muito limitada e pode ser que enquanto escrevo essas linhas tudo tenha mudado novamente. Nesta data que marca a lembrança de dez anos dos atentados de 11 de Setembro, é preciso deixar claro: os EUA derrotaram a al-Qaeda.

Não há nada de polêmico nesta declaração. Dez anos se passaram e durante este período os americanos conseguiram atingir dois de seus principais objetivos para responder aos ataques terroristas: evitar a realização de novos e mortais atentados; impedir que o Afeganistão permanecesse como base do planejamento e treinamento da al-Qaeda. Essas afirmações são incontestáveis. Mas, como escrevi acima, elas são frágeis porque dependem da manutenção do status-quo.

A diferença, agora, é que, ao contrário de dez anos atrás, os EUA estão muito mais vigilantes. É verdade que para se chegar a este ponto três trilhões de dólares foram gastos, é verdade que este dinheiro poderia ter sido empregado na economia americana e áreas como educação, saúde, pesquisa e tantos outros investimentos internos; também é verdade que muitos americanos morreram não apenas nos ataques, mas nas guerras seguintes promovidas para responder ao 11 de Setembro. Mas a al-Qaeda simplesmente fez com que Washington tomasse as medidas necessárias para evitar que este grupo terrorista ou qualquer outro voltasse a agir em território americano.

A organização de Osama Bin Laden dispunha de uma única bala. A partir do “disparo”, todo a dinâmica mudou. Até porque, conceitualmente, a situação não poderia ser outra mesmo. E, claro, o próprio Bin Laden sabia muito bem disso. De um lado, a maior potência do planeta, um orçamento milionário, os maiores e melhores recursos militares do mundo. De outro, uma entidade que não era um Estado nacional, com tecnologia bélica limitadíssima e provida somente de disposição ideológica. Ninguém poderia imaginar que esta balança assimétrica poderia ser minimamente equilibrada.

Apesar disso e de tamanho desequilíbrio, pesquisa do Instituto Gallup mostra resultados surpreendentes: assim como em outubro de 2001, os americanos continuam ainda hoje divididos quanto a quem está vencendo a chamada “Guerra ao Terror”: 46% dizem – em 2011 – que os EUA e seus aliados estão vencendo; 42% afirmam que nem os americanos ou os terroristas venceram a guerra. Pois é, a dúvida é certamente muito favorável à al-Qaeda – organização que, na realidade, além de ter perdido seu líder está cada vez mais enfraquecida. Não apenas estruturalmente, mas também porque seu discurso simplesmente não colou entre a população árabe e muçulmana.

O resultado desta pesquisa reflete uma sensação muito natural e humana. A de que aquele momento pontual trágico vai perdurar pela História. Explico: meses após o 11 de Setembro, o mundo foi varrido pela “novidade” do terrorismo em escala global. E aí o imaginário da humanidade – e principalmente da população ocidental – foi preenchido por teorias, livros, reportagens sobre o fundamentalismo islâmico. E a força deste discurso não deixou espaço para virar a página.

Mas a página foi virada. A al-Qaeda perdeu, os EUA venceram militarmente – muito embora tenham perdido demais por conta da crise econômica que atravessam – e, enquanto a situação permanecer como está, o poder do fundamentalismo islâmico sobre as decisões da maior potência do planeta terá representado apenas um capítulo mínimo da trajetória dos EUA.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A mudança política nos EUA pós-11/9

A grande imprensa daqui não mostrou grande interesse pelo debate entre os pré-candidatos republicanos à presidência dos EUA. E fez muito bem. O encontro dos que pretendem derrotar Barack Obama no ano que vem foi um circo dos horrores. Desculpem a expressão, mas os diálogos beiravam a loucura. Pelo menos sob o ponto de vista de qualquer cidadão brasileiro, é difícil entender a agenda deste novo Partido Republicano.

A mudança de prisma de um dos principais partidos políticos americanos pode ser considerada também uma das consequências mais reveladoras dos atentados de 11 de Setembro. A legenda está cada vez mais radical em seus ataques não apenas ao partido Democrata, mas a alguns dos principais pilares dos EUA: o bem-estar social, os investimentos do governo em educação e saúde, por exemplo. Isso se deve, em boa parte, a este crescimento incompreensível – novamente, sob o ponto de vista dos cidadãos comuns brasileiros, que fique claro – do Tea Party. Já escrevi isso muitas e muitas vezes, mas sempre vale repetir: estruturar o discurso político baseado somente no corte de gastos governamentais e na redução de impostos é de tal forma simplista que é difícil entender que, a partir de agora, é em torno disso que giram quase todas as discussões políticas americanas.

Os EUA pós-11 de setembro se fecharam em muitas questões. Uma delas diz respeito aos gastos em segurança. Também houve uma espécie de repúdio a um “mundo essencialmente antiamericano”. E este mundo insiste em discussões que os republicanos consideram como destinadas a derrubar o país. É o caso, por exemplo, das conversas para a redução da emissão de poluentes – rapidamente interpretadas pelos republicanos como uma fantasia paranoica que vai frear o crescimento econômico. Se as indústrias pisarem no freio, haverá ainda menos empregos num momento que já é de crise. Os membros do Tea Party bebem desta fonte. Ou seja, os trabalhadores americanos estão em risco graças a ideias de ambientalistas estrangeiros extravagantes.

Este é um ponto interessante que compõe o painel de boa parte dos partidários republicanos. O cenário é ainda pior porque se alinha a outras certezas mais radicais, muitas delas repetidas no debate desta quarta-feira.

Considerado o vencedor da noite, o governador do Texas, Rick Perry (foto), caminha a passos largos rumo à vitória. Lembram que escrevi sobre Michele Bachmann na semana passada? Ela agora ficou para trás, figurando abaixo da terceira colocação nas pesquisas. Mas esta não é nenhuma notícia animadora. Principalmente porque Perry compartilha muitas de suas ideias. Por exemplo, considera a intervenção federal em tragédias como o furacão Irene ou o Katrina fora de propósito. Para ele, Washington não deve gastar dinheiro com isso. Por conta de um discurso como este que escrevi neste mesmo texto que é difícil para os brasileiros entender a agenda do Tea Party. Imagina quem por aqui iria defender uma eventual omissão de Brasília em catástrofes como as causadas pelas chuvas em Santa Catarina ou no Rio de Janeiro?

Para piorar, Perry concorda com Bachmann. Para ambos, o Seguro Social não é apenas ruim, mas se trata de uma “monstruosidade”. Para Perry, o fato de seu adversário de partido e também pré-candidato Mitt Romney – ex-governador de Massachusetts – ter investido num plano de saúde para virtualmente todos os moradores do estado é o ponto mais fraco de sua candidatura. Ou seja, Romney é um alvo fácil nos próximos debates por ter ampliado a cobertura de saúde oferecida aos cidadãos. Este é o ambiente atual da disputa republicana. Deu para entender o que quis dizer com a expressão “circo dos horrores”?

terça-feira, 6 de setembro de 2011

11/9 mudou o eixo da política externa americana

Dez anos depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, o mundo é um lugar muito diferente. Esta frase verdadeira encerra o ciclo de repetições desta efeméride. De fato, há muitas e muitas transformações ocorridas a partir dos ataques da al-Qaeda aos EUA. Algumas muitos importantes, mas que sempre acabam periféricas nas muitas análises publicadas. Não apenas o planeta mudou seu foco, mas – tão fundamental quanto – sua principal potência voltou os olhos para além de suas fronteiras de uma maneira como não se via há bastante tempo.

Antes de 2001, quantos americanos sequer sabiam que o Afeganistão existia? Parte deles tinha uma lembrança dolorosa do Iraque, mas a relação construída a partir da ofensiva de 2003 passou a ser uma realidade para todos os cidadãos. Mais americanos morreram nesta segunda guerra do Iraque do que nos próprios atentados de 2001. Isso é circunstancial, mas explica muito pouco. O que quero dizer é até bastante simples: involuntariamente, a al-Qaeda transformou os EUA num país com olhos voltados para o Oriente.

Este fato acabou respingando por aqui de forma diferente. Se até meados da primeira década deste século 21 a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) polarizava partidos e paixões políticas no Brasil, este assunto agora se resume a uma lembrança turva, como de um passado muito distante. Washington mudou prioridades e abriu mão de sua atuação histórica na América Latina. A Casa Branca deixou de lado articulações no continente em nome de medidas de segurança. Afinal, qual a importância de construir um relacionamento especial num espaço que não costuma ser grande fonte de problemas quando os cidadãos americanos correm riscos dentro do próprio país?

Durante esses dez anos, o objetivo tem sido o mesmo, algo até palpável e perceptível visualmente: Bush e, posteriormente, Obama não poderiam se permitir errar como erraram naquele 11 de setembro. Não haveria formas de justificar internamente a repetição das mesmas falhas – falhas amplamente divulgadas pela comissão interna que investigou e apontou todas as brechas e vacilos nacionais.

Ao mesmo tempo em que olharam para fora estupefatos, os americanos se voltaram para as questões de segurança interna. E gastaram dinheiro. Muito dinheiro. Estimativas publicadas pelo jornal Washington Post apresentam números impressionantes. Nesses dez anos foram investidos 3 trilhões de dólares para que 854 mil pessoas divididas em 1,2 mil organizações governamentais e 1,9 mil empresas dessem conta de prover informações, vigiar, checar dados e interromper qualquer tipo de atividade terrorista nos EUA. E, assim como na vida da maior parte dos trabalhadores, os EUA entenderam que não há limites para o buraco quando se fala da vida financeira. Sempre dá para piorar. Os trilhões de dólares gastos com segurança são simultâneos à maior crise do país desde os anos 1930.

O 11 de Setembro moldou uma nova visão de política externa que tende a se sofisticar com a passagem do tempo. O tal “Eixo do Mal” popularizado pelo presidente Bush hoje soa ainda mais simplório. Até porque os atores se tornaram menos maniqueístas e suas ações e realidades não necessariamente evidenciam intenções. Vale um exemplo interessante: Irã, Turquia e Rússia enfrentam, cada um com sua particularidade, movimentos contestadores aos respectivos governos centrais. São grupos que bombardeiam alvos nacionais com objetivos distintos, mas que, em comum, estão no lado oposto à administração central. Alguém é louco de dizer que, por conta disso, esses países estão de alguma maneira alinhados aos EUA?

Essas são apenas algumas das complexidades provocadas pelos ataques de 11 de Setembro. Ao longo desta semana em recordação aos dez anos dos atentados escreverei mais sobre o assunto.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Turquia rompe com Israel em nome da liderança regional

O esfriamento das relações políticas entre Turquia e Israel era uma barbada. O distanciamento entre os países é um movimento político turco iniciado não agora, mas em dezembro de 2008, desde a guerra entre israelenses e palestinos em Gaza. O que era um sinal muito evidente se transformou em medida formal. O gabinete turco ordenou o retorno do embaixador em Tel Aviv e a expulsão de Gabby Levy, embaixador de Israel em Ancara.

Foto: crianças curdas protestam contra bombardeios promovidos por Irã e Turquia 

Todo este estremecimento atual se deve ao vazamento do chamado “Relatório Palmer”, documento que reúne uma série de investigações conduzida de maneira independente pela ONU sobre um dos mais graves e interessantes episódios políticos recentes do Oriente Médio: a abordagem ao navio Mavi Marmara, em 2010, quando a embarcação tentava furar o bloqueio israelense a Gaza. Os resultados, obtidos antecipadamente pelo New York Times, são ambíguos. Parecem matematicamente construídos de forma a agradar e desagradar os envolvidos quase simetricamente.

Segundo a comissão das Nações Unidas, Israel tem o “direito a exercer o bloqueio a Gaza devido a preocupações de segurança legítimas”. No entanto, o relatório também conclui que, especificamente sobre a abordagem ao Mavi Marmara, “os israelenses usaram de força excessiva e irracional”. A partir de agora, ambos os governos estão se esforçando internacionalmente para divulgar suas próprias versões do dilema que por aqui no Brasil chamamos de “copo meio cheio, copo meio vazio”.

Ou seja, para o governo de Jerusalém vale a posição oficial de um instrumento da ONU de que o bloqueio a Gaza é legítimo. Depois de muito tempo, as Nações Unidas apoiam Israel, mesmo que parcialmente. Este é um lado da moeda. Em Ancara, o discurso é completamente diferente: os israelenses abusaram da força e devem ser punidos por isso.

No fundo, acho que a Turquia está mais preocupada com a questão. Israel já não conta com grande apoio internacional. Portanto, a mínima vitória retórica já vale demais. Principalmente sob o ponto de vista de um governo como o do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu – cujo ponto mais fraco é justamente a articulação de alianças internacionais. Já a Turquia tem muito a perder. Foi o partido do premiê Recep Tayyip Erdogan quem patrocinou a ousada empreitada marítima de 2010. É este mesmo líder carismático – e que pesquisas mostram ser o mais admirado pela população dos países muçulmanos e árabes – que está fragilizado. Ainda mais neste momento difícil que a Turquia atravessa.

Vamos a eles: os turcos estão sob pressão porque, apesar de todo o poder do país, não conseguiram frear o ímpeto violento de Bashar al-Assad, na Síria. Esta era uma grande oportunidade para o país mostrar toda a sua capacidade de liderança regional e suas intenções positivas a partir deste poder de barganha. Até agora, nada aconteceu. Para piorar, há um problema corrente interno: os curdos. O Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) continua a atuar na Turquia, expondo toda a ambiguidade do discurso de Erdogan. Para amarrar isso e dar uma volta nos curdos, Ancara fez alianças com o Irã e com a administração curda autônoma do norte do Iraque. O acordo permite, inclusive, que forças militares iranianas atuem a partir do norte do Iraque em operações conjuntas para bombardear posições do PKK.

Para jogar todos esses planos para debaixo do tapete, a Turquia decidiu fazer uso de uma fórmula de sucesso no Oriente Médio: o desgaste com Israel. Não apenas porque esta é uma opção para esconder os próprios problemas do país, mas também porque me parece que não há outras alternativas após os resultados apresentados pelo Relatório Palmer. Afinal, acatar suas conclusões é o mesmo que aceitar a legitimidade do bloqueio a Gaza. E, neste caso, os prejuízos para os turcos seriam muito piores. Até porque Anacara tem forjado alianças mais próximas com os atores regionais. Silenciar seria dar adeus a qualquer pretensão de liderança no Oriente Médio.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Eleições presidenciais nos EUA: Deus, impostos e gastos governamentais

Pelo menos 46 pessoas morreram em 11 estados Americanos devido à passagem do furacão Irene. Apesar disso, a candidata a candidata (é isso mesmo) do partido Republicano Michele Bachmann não deixou de brindar o público com toda a sua verve “humorística”. Vou reproduzir exatamente o que ela disse em discurso de pré-campanha: “eu não sei o quanto Deus deve fazer para conseguir a atenção dos políticos. Nós tivemos um terremoto; tivemos um furacão. Ele disse: ‘vocês vão começar a me escutar por aqui? Escute o povo americano porque o povo americano está rugindo exatamente agora’. Eles (sic) sabem que o governo está numa dieta de obesidade mórbida e nós precisamos controlar os gastos”. Quem achou graça levante a mão.

Há consenso – principalmente fora dos EUA – de que os republicanos nunca foram lá grandes humoristas. E, pelas declarações de Bachmann, continuam a não ser. No entanto, há alguns sinais importantes em suas palavras.

O primeiro deles diz respeito à campanha presidencial americana. Para usar o termo apropriado, testemunharemos cada vez mais este cruzamento bizarro entre religião e política. Se um candidato simplesmente republicano ainda oferecia alguma esperança de debates em alto nível e discussões interessantes, com um representante do Tea Party esta expectativa vai por água abaixo. Possivelmente, as propostas do político que vai se esforçar para derrotar Obama irão variar entre Deus, gastos governamentais e impostos. E com direito a toda sorte de combinações entre esses três itens. Haja paciência.

Quando Bachmann insiste na ideia de que o governo é grande demais e faz gastos demais é por uma questão política. O Tea Party se resume a isso. É um grupo minoritário, mas com cada vez mais força no cenário político americano e que chega até a incomodar algumas alas do próprio partido Republicano. No entanto, por mais que faça muito barulho, não tem propostas. É um grande aglutinado de políticos astutos a serviço de parte de empresários espertos que se aproveita da inocência popular ao levantar como bandeira a redução de impostos. Que cidadão de qualquer país do mundo não quer pagar menos taxas?

Mas não se trata somente disso. O Tea Party é formado primordialmente por toda a sorte de aproveitadores (com o perdão do termo, não vejo outra forma de qualificá-los). Os fundadores do movimento são empresários do ramo da indústria química muito insatisfeitos com os impostos cobrados pelo governo e pela fiscalização imposta devido ao uso desmedido do meio ambiente. O pulo do gato que encontraram foi fazer de sua luta a luta de milhares de pessoas ingênuas. Para isso, passaram a contestar qualquer forma de atuação governamental, mas também a própria ciência. Foi assim que conseguiram a adesão de grupos religiosos contrários ao evolucionismo, por exemplo. E, juntos, acreditam que, com certeza, este negócio de aquecimento global é uma besteira. Essa gente já esteve e pode voltar a estar no comando da maior potência do planeta. Particularmente, não creio que se trata de uma boa notícia.

E aí entra o interesse internacional no Tea Party. A Casa Branca chefiada por um presidente do grupo irá jogar às favas qualquer discussão em torno da redução de gases poluentes. No caso específico do Brasil, certamente haverá retrocessos nos debates sobre o fim dos subsídios aos produtores americanos. Esta é uma péssima notícia ao agronegócio brasileiro que se vê impedido de disputar em condições de igualdade no maior mercado consumidor do mundo.

Para os próprios cidadãos americanos, o Tea Party é uma má notícia. Principalmente se falarmos dos cidadãos pobres, que não têm dinheiro para arcar com planos de saúde privados. Uma das principais propostas do grupo é acabar com qualquer projeto de auxílio nesta área em nome da redução de custos ao governo. E redução de custos diminui impostos. Pode parecer incrível, mas muita gente desprovida apoia esta lógica torta.

Ah, para finalizar em grande estilo, o discurso de Bachmann sobre o furacão Irene mirava justamente nos planos de Washington de auxiliar nos resgates da população e na reconstrução das cidades atingidas. Para Bachmann e o Tea Party esta não é a função do governo, mas dos Estados. O problema é que nenhum Estado pode pagar sozinho os custos de um furacão sem a ajuda financeira da Casa Branca. A conta simplesmente não fecha. Mas esta definitivamente não é uma preocupação do Tea Party.