O esfriamento das relações políticas entre Turquia e Israel era uma barbada. O distanciamento entre os países é um movimento político turco iniciado não agora, mas em dezembro de 2008, desde a guerra entre israelenses e palestinos em Gaza. O que era um sinal muito evidente se transformou em medida formal. O gabinete turco ordenou o retorno do embaixador em Tel Aviv e a expulsão de Gabby Levy, embaixador de Israel em Ancara.
Foto: crianças curdas protestam contra bombardeios promovidos por Irã e Turquia
Todo este estremecimento atual se deve ao vazamento do chamado “Relatório Palmer”, documento que reúne uma série de investigações conduzida de maneira independente pela ONU sobre um dos mais graves e interessantes episódios políticos recentes do Oriente Médio: a abordagem ao navio Mavi Marmara, em 2010, quando a embarcação tentava furar o bloqueio israelense a Gaza. Os resultados, obtidos antecipadamente pelo New York Times, são ambíguos. Parecem matematicamente construídos de forma a agradar e desagradar os envolvidos quase simetricamente.
Segundo a comissão das Nações Unidas, Israel tem o “direito a exercer o bloqueio a Gaza devido a preocupações de segurança legítimas”. No entanto, o relatório também conclui que, especificamente sobre a abordagem ao Mavi Marmara, “os israelenses usaram de força excessiva e irracional”. A partir de agora, ambos os governos estão se esforçando internacionalmente para divulgar suas próprias versões do dilema que por aqui no Brasil chamamos de “copo meio cheio, copo meio vazio”.
Ou seja, para o governo de Jerusalém vale a posição oficial de um instrumento da ONU de que o bloqueio a Gaza é legítimo. Depois de muito tempo, as Nações Unidas apoiam Israel, mesmo que parcialmente. Este é um lado da moeda. Em Ancara, o discurso é completamente diferente: os israelenses abusaram da força e devem ser punidos por isso.
No fundo, acho que a Turquia está mais preocupada com a questão. Israel já não conta com grande apoio internacional. Portanto, a mínima vitória retórica já vale demais. Principalmente sob o ponto de vista de um governo como o do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu – cujo ponto mais fraco é justamente a articulação de alianças internacionais. Já a Turquia tem muito a perder. Foi o partido do premiê Recep Tayyip Erdogan quem patrocinou a ousada empreitada marítima de 2010. É este mesmo líder carismático – e que pesquisas mostram ser o mais admirado pela população dos países muçulmanos e árabes – que está fragilizado. Ainda mais neste momento difícil que a Turquia atravessa.
Vamos a eles: os turcos estão sob pressão porque, apesar de todo o poder do país, não conseguiram frear o ímpeto violento de Bashar al-Assad, na Síria. Esta era uma grande oportunidade para o país mostrar toda a sua capacidade de liderança regional e suas intenções positivas a partir deste poder de barganha. Até agora, nada aconteceu. Para piorar, há um problema corrente interno: os curdos. O Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) continua a atuar na Turquia, expondo toda a ambiguidade do discurso de Erdogan. Para amarrar isso e dar uma volta nos curdos, Ancara fez alianças com o Irã e com a administração curda autônoma do norte do Iraque. O acordo permite, inclusive, que forças militares iranianas atuem a partir do norte do Iraque em operações conjuntas para bombardear posições do PKK.
Para jogar todos esses planos para debaixo do tapete, a Turquia decidiu fazer uso de uma fórmula de sucesso no Oriente Médio: o desgaste com Israel. Não apenas porque esta é uma opção para esconder os próprios problemas do país, mas também porque me parece que não há outras alternativas após os resultados apresentados pelo Relatório Palmer. Afinal, acatar suas conclusões é o mesmo que aceitar a legitimidade do bloqueio a Gaza. E, neste caso, os prejuízos para os turcos seriam muito piores. Até porque Anacara tem forjado alianças mais próximas com os atores regionais. Silenciar seria dar adeus a qualquer pretensão de liderança no Oriente Médio.
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