O vazamento de documentos da Autoridade Palestina é mais um capítulo da nova modalidade em curso de atuação da imprensa: quando ela deixa de simplesmente informar e passa a influenciar diretamente o curso político. Isso sempre existiu, mas a criação do WikiLeaks transformou o fenômeno, acelerando-o. De certa maneira, este é um acontecimento até natural, uma vez que vivemos a era da velocidade da internet. Não se poderia imaginar que a história seguiria o ritmo do século passado. A diferença, no entanto, é que a rapidez transforma a análise. Ela perde o tempo de amadurecimento para acompanhar a sucessão de eventos bombásticos. Perde também em qualidade, como não poderia deixar de ser. É assim também diante das muitas informações apresentadas pela Aljazeera e pelo Guardian, veículos que tiveram o primeiro acesso aos cerca de 1.600 documentos que acompanham, preferencialmente, o ponto de vista da Autoridade Palestina durante as negociações com Israel e EUA.
Analisar os impactos de tantos e importantes dados exige uma mudança de olhar. Sob o ponto de vista ocidental, é muito bom saber que a AP estava realmente interessada em negociar. E como negociar nada mais é do que aceitar perdas – e algumas delas dolorosas – , é válido reconhecer que a liderança palestina se dispôs a perder muito. Por exemplo, o presidente Mahmoud Abbas e o negociador-chefe Saeb Erekat (foto) colocaram em xeque as próprias biografias ao aceitar abdicar da reivindicação por toda a Jerusalém Oriental.
Israel não aceitou a oferta porque ela não compreendia alguns dos principais blocos de assentamentos: Ma’aleh Adumim, Har Homa e, principalmente, Ariel. No caso deste último, é bom que se diga que se trata de um dos maiores assentamentos na Cisjordânia, com 20 mil moradores e mais uma população de dez mil estudantes universitários transitórios – num país de sete milhões de habitantes, este é um número que não pode ser ignorado. A contraproposta israelense consistia no controle de Ariel, Gush Etzion, Ma’aleh Adumim, Givat Ze’ev e Har Homa. Na prática, seriam anexados 6,8% da Cisjordânia e em troca Israel cederia 5,5% de território, além da construção de uma rodovia ligando Gaza e Cisjordânia a ser controlada pela Autoridade Palestina.
Fica muito claro que graves consequências aguardam os líderes palestinos moderados. A reação de Abbas e Erekat mostra que ambos sabem que suas vidas correm risco; Abbas disse que todo o material exposto era de conhecimento dos demais países árabes; Erekat procurou desqualificar os documentos e dizer que a Aljazeera tenta minar o governo da AP.
O que muitos veículos de imprensa procuram enxergar como condescendência por parte da AP nada mais é do que fruto de total desamparo político. Negociar com Israel e EUA foi o que restou aos membros do governo palestino, após o grupo ser expulso de Gaza pelo Hamas, em 2007. O realismo político está por trás desses documentos – e isso ninguém parece estar disposto a dizer – para israelenses e palestinos. Se o Hamas levanta a bandeira do radicalismo, defende a violência como método e condena as negociações com Israel, só restava mesmo a seus opositores internos – a própria Autoridade Palestina que tem nos membros do Fatah seus mais importantes e numerosos representantes – seguir pelo caminho inverso. Abraçar as negociações é a própria razão de existência da AP – criada após os Acordos de Oslo, em 1993, justamente com este objetivo. Unificar o discurso com o Hamas seria decretar o fim da mais importante instituição política palestina apoiada, bancada e legitimada pelo ocidente.
A atuação do governo israelense do então primeiro-ministro Ehud Olmert também foi guiada pelo realismo político. O país em crescimento e os atentados terroristas praticamente anulados tornavam a negociação no mínimo arriscada. Aceitar perdas – e, como escrevi antes, qualquer negociação compreende abrir mão de algo – era desnecessário. Deixar a situação correr em inércia era uma opção viável e que não acarretaria maiores prejuízos políticos nem a Olmert, nem para a então chanceler Tzipi Livni.
Quem mais perdeu com tudo isso foi o governo da Autoridade Palestina. Sem a menor dúvida, os muitos opositores à administração de Mahmoud Abbas irão se aproveitar do clima negativo de surpresa para tentar obter ganhos políticos. Não é impossível imaginar que o Hamas adquira ainda mais força. Até porque os territórios palestinos não estão isolados dos demais países árabes. Se a transmissão da Aljazeera dos acontecimentos na Tunísia motivou manifestações em todo o mundo árabe, a publicação desses documentos pela mesma rede de TV promete sacudir a política palestina.
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