Há um grande equívoco ao tentar definir a chamada Primavera Árabe como um fenômeno político monolítico, como se manifestações populares fossem o primeiro passo para a inevitável derrubada de regimes autoritários. Esta prática de rotular situações é muito atraente do ponto de vista da imprensa, mas não necessariamente reflete a realidade. O caso sírio é sintomático e, além de muito violento, expõe não apenas a fragilidade da narrativa jornalística, mas também do próprio discurso supostamente humanitário das potências ocidentais e dos organismos multilaterais.
Para entender esta contradição basta voltar um pouco no tempo e deixar a Síria de lado por ora. Muito perto dali, a Líbia se transformou no espaço de experimentação da política externa que se pretendia fundamentada em aspectos morais. Os dados são muito relevantes. Um dos mais interessantes diz respeito ao número de civis mortos – informação que, sob olhar dos mais inocentes, justifica as intervenções estrangeiras. Foram os ataques de Muamar Khadafi contra os próprios cidadãos líbios que deram argumentos à ofensiva lançada pela OTAN para frear o banho de sangue no país.
No dia 20 de fevereiro – exatamente 28 dias antes da decisão internacional de derrubar Khadafi –, o número de mortos nos confrontos entre o exército da Líbia e os manifestantes era de 233. Sem a menor dúvida, este tipo de violência contra civis – e com o requinte perverso de se tratarem de cidadãos nacionais – não deve ser mesmo tolerada pela comunidade internacional. Mas em apenas quatro meses, esta mesma comunidade internacional supostamente preocupada com os líbios não demonstra a solidariedade prática aos sírios. Há alguma escala quanto ao número de mortos que justificaria esta prática? Ou melhor, esta passividade?
Certamente não. Até porque além dos milhares de refugiados na Turquia, a ofensiva do presidente Bashar al-Assad contra os amotinados na cidade de Hama fez 140 vítimas fatais somente neste final de semana. Grupos independentes estimam em 1,5 mil o número de civis mortos desde março. A própria ONU divulga dados alarmantes que dão conta de 3 mil desaparecidos e 12 mil presos – sabe-se lá em que condições. Portanto, se de fato a comunidade internacional e os organismos multilaterais – e aí vale incluir mesmo as Nações Unidas – tivessem como termômetro a incapacidade de civis de se protegerem da sanha de seus governantes, uma intervenção à Síria seria muito mais compreensível que a ofensiva à Líbia.
Mas política externa é, acima de tudo, fundamentada em pragmatismo. E não há nada de errado nisso. A questão é que os líderes mundiais têm enorme dificuldade de admitir o que é óbvio. O ano de 2011 está se encarregando de expor este tipo de contradição ao custo de milhares de vidas civis.
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