A guerra entre policiais e a população mais pobre de Londres causou surpresa internacional. Imediatamente após o início dos conflitos na tarde do último sábado, analistas de todo o mundo – e especialmente da Grã-Bretanha, claro – passaram a tentar entender as raízes deste fenômeno de sublevação social. Não é preciso dizer que ninguém consegue chegar a qualquer consenso em relação a isso. Até porque é muito importante destacar o óbvio: não se trata, de nenhuma maneira, de um movimento orquestrado.
Isso talvez ajude a entender o que se passa. Trata-se de um momento significativo. Na figura mais ampla, temos duas das principais capitais do planeta passando por um instante de transformação. Londres está imersa no caos físico; Nova Iorque, no financeiro – causado pelo rebaixamento da nota da dívida dos EUA. Por mais que as situações não estejam relacionadas, são sintomas de um ano profundamente marcado pela contestação.
A Primavera Árabe ainda não pode ser considerada revolução, mas sua mera existência evidencia uma transformação mundial. Ela está na raiz dos acontecimentos em Londres; ela serviu de inspiração aos jovens que foram às ruas da Espanha para exigir oportunidades e alguma perspectiva de futuro. E ela também permeia, curiosamente, os israelenses que contestam o alto custo de vida no país. A inversão do centro gravitacional político representa, por si só, a própria revolução. Quem imaginaria que a população comum árabe estaria na ponta de lança das tendências de reivindicação internacional? É este o mais relevante fato novo da história recente.
Voltando a Londres, há duas principais linhas de interpretação dos acontecimentos: a primeira acredita que os manifestantes são ideologicamente conscientes e levam adiante os confrontos em nome da contestação dos cortes promovidos pelo governo conservador; a segunda defende que tudo não passa de uma grande arruaça sem qualquer sentido e que a intelectualização do movimento só contribui para justificar uma farra violenta.
Como acontece na maior parte das vezes, acho que para ser razoável é preciso encontrar um meio-termo. Ou seja, é claro que os londrinos em confronto com a polícia não arriscam suas vidas em nome da derrubada do “capitalismo internacional”. Tampouco creio que essas pessoas estejam nas ruas pelo mero exercício da violência. O movimento começou de maneira muito semelhante ao pontapé inicial da Primavera Árabe na Tunísia (na ocasião, um vendedor de frutas ateou fogo ao próprio corpo após policiais confiscarem o carrinho com que vendia frutas). Na Inglaterra, um jovem foi morto por policiais no sábado em circunstâncias suspeitas. Da mesma maneira que ninguém imaginaria que o episódio na Tunísia pudesse provocar tantas transformações, ninguém poderia prever a violência na capital britânica.
E isso é compreensível e até natural. Poucos movimentos contestadores nasceram organizados, articulados. No caso britânico, a espontaneidade não pode servir como subterfúgio da dura realidade dos jovens. Em Tottenham, epicentro dos atuais acontecimentos, o desemprego está em 8,8% (taxa duas vezes superior ao restante do país). Pesquisa da União Europeia aponta dados mais amplos e perversos: 17% dos jovens não fazem qualquer coisa. Ou seja, não trabalham, não estudam, não estão em treinamento. Cerca de 600 mil jovens com até 25 anos de idade jamais trabalharam na vida.
Como não levar em consideração esses dados? Como ignorar esta completa falta de perspectiva? Não se pode tampouco deixar de lado os grandes acontecimentos históricos deste ano.
Os jovens britânicos não estão alheios ao mundo. Aliás, isto sequer é algo possível nos dias de hoje. Se antes era preciso ser profundamente engajado para tomar parte em manifestações de contestação, hoje é muito mais simples. Não é necessário ser membro de grupos físicos e, menos ainda, ter de se deslocar até reuniões clandestinas. Boa parte dos movimentos já nasce com milhares de adeptos antes mesmo de tomar as ruas. Foi o que aconteceu durante a Primavera Árabe. É o que está acontecendo agora na Grã-Bretanha. O assassinato do jovem negro e pobre no norte de Londres foi apenas o clique inicial.
2 comentários:
Um mundo realmente está mudando, estou entendendo mais o que está acontecendo e/ou aconteceu em Londres. Grato.
Obrigado pelo comentário, Marcelo. Seja bem-vindo ao site.
Um abraço.
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