Revoltas populares, barricadas, queima de pneus e represálias policiais não são incomuns. Curioso é quando o alvo da ira é a ONU. No caso, os soldados da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) chefiada pelo Brasil. Talvez este seja o primeiro grande desafio internacional de Dilma Rousseff. Na verdade, como já escrevi tantas outras vezes, era apenas uma questão de tempo para que o Brasil deixasse de ocupar o posto de "queridinho" mundial. Este é o preço natural que se paga quando se assume um papel mais arrojado na política externa. Na prática, é muito simples: lutar por espaço certamente incomoda muita gente - ou, no caso, os muitos países concorrentes que se acotovelam na briga por protagonismo neste novo mundo em formação.
Vai ser no mínimo curioso entender como Brasília reagirá a partir desta mudança de cenário. O governo brasileiro, pela primeira vez desde a Guerra do Paraguai (1864-1870), pode estar mudando de lado na bancada. Não necessariamente os conflitos no Haiti vão se encaminhar desta forma, mas é uma possibilidade. Se o clima hostil entre a Minustah e a população piorar ainda mais, poderemos testemunhar mortes de civis e, por consequência, o comando militar brasileiro local - em coordenação com o Itamaraty - tendo de explicar suas ações.
No entanto, é bom deixar claro que o Brasil não é o causador desta revolta popular. A epidemia de cólera que já registra mais de 18 mil doentes e mais de mil mortos é a origem dos distúrbios. A população acredita que soldados nepaleses que compõem a Minustah são os responsáveis por levar a doença ao país. Ainda não há uma posição final quanto a isso, mas já se sabe que o vírus presente ao Haiti é o mesmo em circulação no sul da Ásia e que chegou ao país através de uma única fonte ou evento.
De qualquer maneira, a epidemia é a gota d'água numa sociedade atingida pela fome, miséria e falta de acesso a recursos básicos de higiene. Se antes do terremoto devastador de janeiro somente 17% dos haitianos usufruíam de saneamento, hoje a situação é muito pior. E não é por falta de dinheiro, mas pelo caminho tortuoso que a ajuda financeira segue. Há hoje no país 10 mil Organizações Não-Governamentais (ONGs). Segundo Allyn Gaestel, jornalista do Atlantic baseado em Porto Príncipe, menos de 38% dos recursos captados após a tragédia do início deste ano foram aplicados na construção de infraestrutra.
E aí cabe dizer que há um erro fundamental na alocação do dinheiro: o Estado haitiano ficou em segundo plano. O principal destino do montante é este amontoado de ONGs instaladas no país. O processo é descentralizado, gerando ainda mais dificuldades de regulamentação, fiscalização e aplicação prática dos recursos. Fora que, agora, o Haiti pode estar pagando um valor altíssimo pelas estratégias da política externa americana recentes.
"Em 2000, um empréstimo de 54 milhões de dólares do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) deveria ter sido repassado ao governo haitiano como forma de reabilitar seus sistemas de saneamento urbanos e rurais. Mas os EUA queriam desestabilizar o governo democraticamente eleito de (Jean-Bertrand) Aristide. Fontes sugerem que o governo americano teria pedido ao BID que bloqueasse o envio deste dinheiro, assim como outras remessas totalizando 146 milhões de dólares que seriam investidos em educação, saúde e infraestrutura santiária (...)", escreve Isabeau Doucet, correspondente do Guardian no Haiti.
Esta é uma denúncia gravíssima que precisa ainda ser provada. Mas é pouco provável que tal investigação ocorra agora, até porque colocaria Washington em posição muito delicada. O fato é que esta bomba-relógio de graves consequências humanitárias está no colo do Brasil, de certa forma. E talvez configure o primeiro grande desafio internacional de Dilma. Dependendo de como a situação irá transcorrer, o Haiti pode ter um papel determinante na história política brasileira, marcando o momento em que o Brasil passaria de pedra a vidraça.
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