Após este intervalo de cinco dias, retomo o trabalho com a certeza de que os acontecimentos no Egito são de definitiva importância histórica e geopolítica. Um sinal de tal percepção – mesmo por aqui no Brasil – é o assunto figurar nas capas dos jornais brasileiros – algo raro para a editoria de Internacional, excetuando-se apenas os períodos de guerra. Ou pelo menos o início delas. O cenário que existe atualmente é repleto de uma certeza e de muitas questões. A certeza mundial é de que os protestos populares são consequência de profunda insatisfação interna e do efeito dominó regional gerado pelo exemplo da Tunísia. Isso ninguém contesta. No mais, restam especulações, sendo uma das mais importantes a dúvida sobre a participação dos grupos islâmicos na política egípcia a partir da queda de Hosni Mubarak.
Sobre esta dúvida, tendo a pensar de maneira distinta à maioria dos analistas que vem patinando neste assunto. Há certo otimismo prematuro e generalizado de que o silêncio da Irmandade Muçulmana é a prova de que o grupo não estaria envolvido nas manifestações. Esta é uma leitura parcialmente correta. É possível sim que os fundamentalistas egípcios tenham sido pegos de surpresa tanto quanto o presidente Mubarak. No entanto, isso não prova de nenhuma maneira que eles estejam à margem do processo de mudança política. Pelo contrário. Maior interessada na derrocada do regime, a Irmandade Muçulmana tem agido com inteligência. Ao adotar o silêncio como estratégia, espera colher os frutos da mudança sem que, para isso, seja obrigada a se expor ou entrar em confronto com o governo. Ou alguém acha que o grupo realmente vai aceitar ficar de fora da nova administração política do país?
Regionalmente, o cenário é de completa mudança dos padrões vigentes. O Hezbollah tomou o poder no Líbano; nos territórios palestinos, o Hamas ganha força com a publicação dos documentos que entregam posições polêmicas da Autoridade Palestina; a Turquia continua a se aproximar de Irã e Síria; e, principalmente, a credibilidade americana sofre um revés inédito – desde sempre contestada pelas populações dos países, a mediação de Washington e seu poder de barganha pode mudar para sempre neste cenário em construção. Se a Irmandade Muçulmana conseguir papel institucional num futuro governo egípico, o presidente Barack Obama e Israel estarão em situação muito difícil.
Do ponto de vista israelense, as previsões são desanimadoras. Se as relações com a Turquia já andavam muito ruins, agora com Egito e Autoridade Palestina ainda mais distantes, o isolamento passa a ser completo. Irã e Síria têm preferido esperar porque as perspectivas de ambos são semelhantes às da Irmandade Muçulmana egípcia. A tendência de vitória regional é tão clara que qualquer movimento corre o risco de atrapalhar o curso natural deste processo. Se melhorar, estraga.
Escrevo sempre sobre a grande guerra silenciosa do Oriente Médio; a dos Estados sunitas moderados – apoiados pelos EUA – contra os xiitas – liderados pelo Irã. Esta divisão só é válida enquanto os países sunitas contarem com lideranças políticas apoiadas pelos americanos, como no caso do Egito. Se grupos islâmicos conseguirem o poder nesses países, tudo muda. Por exemplo, mesmo majoritariamente sunitas, os palestinos do Hamas são apoiados pelo Irã xiita porque ambos compartilham os mesmos valores e ambições políticas: a destruição de Israel e a construção de uma Palestina regida pela sharia islâmica. É claro que Hamas e Teerã sabem que possivelmente não alcançarão tal objetivo, mas mantêm o discurso porque precisam dele como razão de existência (no caso do grupo radical islâmico) e massa de manobra política para o sucesso da empreitada em busca da hegemonia regional (no caso do Irã).
O momento é decisivo. Que Mubarak vai cair, não há dúvidas. Mas interessante também é perceber como tal mudança afeta a política mundial, os interesses americanos, e o futuro breve do Oriente Médio. Em meio à massa de informação, a história está dobrando uma esquina importante, com eventos de grandiosidade comparáveis ao nascimento do nasserismo ou à assinatura dos acordos de Camp David, entre Egito e Israel.