Ontem comentei sobre a possibilidade de diálogo entre EUA e a Irmandade Muçulmana. Isso deve acontecer de alguma forma, na medida em que o grupo estará representado no futuro governo egípcio. Mesmo os americanos já consideram este fato. Tanto que autoridades do país disseram estar prontas a aceitar debater com o alto-escalão do islamismo político desde que seus membros se comprometam a abandonar as armas. E tal gesto não seria inédito na região.
Vale lembrar que esta mesma Autoridade Palestina hoje desacreditada tem origens na Organização pela Libertação da Palestina (OLP) – que, para quem não se lembra, esteve bem longe de ser um grupo de escoteiros do Oriente Médio. Mesmo o Fatah, de Arafat e do presidente Mahmoud Abbas, nunca foi tão somente um partido político. E aí existe um norte para vislumbrar um possível futuro para a Irmandade Muçulmana do Egito: assim como o Fatah, que mantém seu braço armado – as Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa –, a Irmandade Muçulmana pode se adaptar a seu novo patamar político, assumindo publicamente compromissos razoáveis, mas ao mesmo tempo mantendo suas origens e o forte discurso antiamericano e anti-israelense.
Aliás, a verdade é que não creio que será fácil dobrar o islamismo político do Egito. Isso pode acontecer, mas vai levar algum tempo. Principalmente porque a Irmandade Muçulmana é o que, por aqui, costumamos chamar de “velha guarda”. Ela está na origem das centenas de outros movimentos islâmicos e radicais que se espalham principalmente pelo Oriente Médio, mas também estão presentes em importantes centros de população muçulmana, como Paquistão, Afeganistão e Indonésia. Romper tal tradição poderia ser interpretado como capitulação aos “interesses americanos”.
Estar no lugar da liderança da Irmandade Muçulmana neste momento não deve ser fácil. A pressão das maiores forças mundiais é grande. Se a necessidade de reconstrução do país é uma ameaça real por forçar algum tipo de compromisso com os americanos, a outra potência regional, o Irã, não tem facilitado. Se no começo das manifestações populares as autoridades da República Islâmica preferiram o silêncio, agora se sentem cada vez mais impelidas a exercer seu poder. Tanto que, nesta sexta-feira, o próprio supremo líder, o aiatolá Ali Khamenei, disse que os acontecimentos no Egito são uma demonstração do “despertar islâmico” iniciado durante a revolução iraniana de 1979. Perceberam o significado de tal declaração?
O que está em jogo neste momento é mais um capítulo da disputa regional entre EUA e Irã. Ou melhor, entre os modelos representados por cada um deles. Se Washington tem a seu favor a indispensável ajuda financeira fornecida anualmente ao governo do Cairo, Teerã está consciente dos valores partilhados entre suas lideranças políticas e a Irmandade Muçulmana. Não se sabe por enquanto para que lado a futura administração egípcia irá pender, mas afirmo seguramente que criar um meio-termo entre esses dois modelos – enganando Irã e EUA diga-se de passagem – é tarefa ingrata. Não acredito que a Casa Branca aceitaria manter o considerável repasse de verbas a um Egito regido pela sharia (a lei islâmica) cujo gabinete presidencial tivesse fortes laços com Khamenei e Ahmadinejad.
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