Há algum tempo venho escrevendo sobre contradições internacionais. É claro que costumo variar os assuntos abordados por aqui, mas todos os eventos que cercam o Oriente Médio nesses meses de agitação giram em torno de alguns fatores: importância estratégia é um deles. E, quando se coloca peso sobre países, revoltas e tentativas de emancipação política, a comunidade internacional se apresenta para participar. E entendam como comunidade internacional os atores mais relevantes neste cenário: EUA, União Europeia, ONU, Otan, Liga Árabe são alguns deles. Em comum, a decisiva parcialidade de ações e os tão repetidos “interesses estratégicos”. O termo foi honestamente exposto por Obama há poucos dias, quando discursou para explicar ao público americano os motivos que justificaram a intervenção na Líbia – liderada e articulada por Washington.
E nas estratégias internacionais as atitudes costumam mesclar ideologia e pragmatismo. Já disse isso por aqui, mas este é um momento particularmente interessante para focar sobre o assunto. Tudo isso porque este também é um momento de contradições. Talvez isso soe estranho aos corações mais puros, mas a verdade é que a incoerência está na raiz do pensamento político. Principalmente quando se fala de potências internacionais.
Justamente ontem comentei sobre as declarações do presidente sírio, Bashar al-Assad, diante de entusiasmados parlamentares. Acho mesmo que a confiança de Assad se deve, em boa parte, à interpretação de que a comunidade internacional não está disposta a uma nova incursão militar no Oriente Médio. E aí há certa frustração entre os que esperavam uma cruzada (com o perdão do termo) contra ditadores que reprimem os próprios cidadãos sem qualquer apreço pelos direitos humanos. Esta missão em nome da justiça não vai acontecer, é bom que se diga.
E eis que há um exemplo excepcional quanto a essas contradições sobre as quais gosto de debater. Enquanto houve justificada comoção humanitária pela fragilidade em que se encontrava a população líbia, a sudoeste de Trípoli, no mesmo continente africano, a Costa do Marfim atravessa situação semelhante (para não dizer pior). Desde que o presidente Laurent Gbagbo (foto) foi derrotado, em novembro do ano passado, a violência tomou conta do país. Cálculos de autoridades das Nações Unidas apontam 462 mortos e mais de um milhão de refugiados.
Somente nesta quarta-feira o Conselho de Segurança da ONU decidiu impor sanções a Gbagbo. As forças de paz da organização foram autorizadas a “usar todos os meios necessários para proteger civis sob risco iminente de violência física”. Isso lembra alguma coisa, certo? Sim, a resolução que acabou por se transformar no passaporte à intervenção na Líbia. A diferença, no entanto, é que houve um atraso de cinco meses na Costa do Marfim.
E se há contradições políticas – e isto é um fato mesmo –, fica a exposição de outro aspecto importante e lamentável. É natural que Estados nacionais tenham seus próprios interesses. Agora, quando a ONU passa recibo de que está completamente desvirtuada de seus objetivos iniciais, fica o alerta de que ela perdeu sua legitimidade enquanto responsável pela manutenção da paz no mundo. Porque se a ONU considera que há diferença entre o valor da vida de líbios e marfinenses, este é um caminho sem volta. Só não enxerga quem não quer.