A Síria oferece a possibilidade de um novo tipo de olhar sobre a Primavera Árabe. Ao contrário do ocorrido em Egito e Tunísia, o exemplo sírio não se encaixa perfeitamente no modelo previsto e admirado pelo Ocidente. Os manifestantes no país querem sim a mudança do regime, liberdade de expressão e imprensa, eleições livres, oportunidades para construir uma vida melhor etc. Tudo isso está dentro do pacote de reivindicações. A diferença, no entanto, é o comportamento dos envolvidos.
Na Síria, o Estado policialesco exerce controle ainda maior sobre a população. Se egípcios e tunisianos ainda encontravam brechas no sistema, o governo de Bashar al-Assad pôs em prática toda a sorte de repressão sem maiores constrangimentos. Nos dois países árabes que conseguiram derrubar os líderes autoritários, curiosamente, a proximidade de Ben Ali e Hosni Mubarak com o Ocidente impedia excessos. A Síria não precisava se envergonhar. Suas alianças com Irã, Hamas e Hezbollah permitiam a manutenção do regime sem condenações internacionais. Tudo em nome, claro, de uma suposta “resistência”. E aí Assad sempre fez muito bom uso de teorias conspiratórias bastante populares na região.
A situação agora está para mudar justamente devido à pressão internacional. Se a Líbia foi invadida em nome do senso de justiça da comunidade internacional, é impossível assistir passivamente ao genocídio cometido por Assad contra os próprios cidadãos. O Ocidente criou expectativas sobre a Primavera Árabe, e a população comum do Oriente Médio respondeu. Com os sírios não é diferente. A diferença mesmo está no rumo dos acontecimentos. Em Egito e Tunísia, as manifestações foram bem sucedidas em boa parte graças à adesão do poder coercitivo. As passeatas basicamente pacíficas não sofreram repressão violenta dos respectivos exércitos. Em pouco tempo, inclusive, as forças armadas perceberam a dimensão do que acontecia e se aliaram aos manifestantes. Na Síria isso ainda não está acontecendo. Ou, pelo menos, não é um fenômeno em larga escala.
Desde o início do levante, em 18 de março, já são mais de 1,1 mil mortos. Há casos que se tornam simbólicos, como a tortura e morte pelas forças oficiais de um menino de apenas 13 anos de idade. E, como no Iêmen, parte da população optou por partir para um confronto aberto, causando, inclusive, a morte de 120 soldados do governo na última segunda-feira. A expectativa é de mais violência. A família Assad não costuma responder com sutileza quando se sente coagida desta maneira. Foi assim no entorno da cidade de Hama, em 1982. Na ocasião, o pai de Bashar, Hafez, usou até a força aérea para acabar com uma rebelião liderada pela Irmandade Muçulmana, resultando no assassinato de mais de dez mil cidadãos.
Com este histórico macabro à espreita, a população faz o que pode. E isso significa fugir para a Turquia, país vizinho que mantém boas relações com Damasco e que aboliu a necessidade de retirada de visto para permitir a entrada de visitantes sírios. Relatos dão conta de que mais de 400 pessoas tenham cruzado a fronteira e conseguido passar para o lado turco. E este número deve subir ainda mais. A questão é que o cenário de uma guerra interna na Síria envolve interesses do mundo todo.
O caso da Turquia é bastante óbvio. Apesar de os turcos não serem árabes, são muçulmanos. E a grande maioria da população é sunita, exatamente como a maior parte dos sírios. Às vésperas de eleições parlamentares – sobre as quais comentei por aqui na sexta passada –, o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan não vai assistir à morte de sunitas logo ali ao lado de braços cruzados. Pelo contrário. É claro que Erdogan não vê com bons olhos a possibilidade de uma enxurrada de imigrantes, mas barrá-los na fronteira é algo impensável neste momento. O líder turco já tratou de receber os sírios em fuga e clamou a Assad que interrompa o assassinato em massa.
O Ocidente reage moderadamente. Europeus e americanos exigem que Assad faça reformas – repare que os comunicados ainda não pedem sua saída – e, agora, França e Grã-Bretanha estão decididas a levar o assunto ao Conselho de Segurança da ONU. O texto vai condenar a repressão e pedir livre acesso de ajuda humanitária ao país. O assunto vai envolver outros membros e provocar uma discussão interessante. Rússia e China já manifestaram oposição a resoluções contra a Síria anteriormente. A China porque criou uma linha de política externa pragmática e com tons fortemente antiamericanos. A Rússia porque mantém sua esquizofrenia dos últimos tempos e ainda se considera uma superpotência. Como sírios e russos eram aliados durante a Guerra Fria, Moscou pretende insistir em sua viagem solitária de volta ao passado. Vai entender.
Ah, o Brasil pode votar contra também, uma vez que o governo brasileiro diz temer a possibilidade de que a resolução abra caminhos para a intervenção estrangeira no país. Acho pouco provável uma ação internacional na Síria em curto-prazo. A Síria é um ator regional muito importante e que, se invadida, pode abrir a tampa da caixa de Pandora do Oriente Médio devido a suas alianças com Irã, Hamas e Hezbollah.
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