segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Novos documentos vazados pelo WikiLeaks ajudam a entender a política externa brasileira

No domingo à noite recebi um telefonema de uma entusiasta do blog que se apressou a compartilhar comigo os segredos revelados no final de semana pelo Wikileaks, projeto dedicado a encontrar e divulgar documentos secretos. Como não costumo acessar a internet com frequência nos finais de semana, corri ao computador para entender o que havia acontecido. De fato, os mais de 250 mil textos e telegramas sigilosos que revelam as ansiedades, opiniões e o pensamento internacional do governo americano poderiam pautar este site por um bom tempo.

Por conta disso, decidi me dedicar sem qualquer pressa ao assunto e neste primeiro momento pretendo examinar as interessantíssimas posições diplomáticas brasileiras. Sim, deste total de documentos descobertos, há 1.948 dedicados somente ao Brasil. Antes que se questione o volume, é bom dizer também que as informações cobrem correspondências entre embaixadas americanas e Washington entre 28 de dezembro de 1966 e 28 de fevereiro de 2010.

Um dos aspectos interessantes – e o WikiLeaks estrategicamente divulgará todas as informações em intervalos de tempo de forma a manter o assunto vivo – é verificar mais sobre a relação de Washington e Brasília durante a ditadura militar brasileira.

De qualquer maneira, os dados disponíveis ajudam a entender não apenas as relações atuais entre Brasil e EUA, mas também a política externa do governo Lula. Há vários sinais que mostram a ratificação de uma linha de raciocínio sofisticada. Por exemplo, em relação ao terrorismo, a embaixada americana traça um perfil sobre o comportamento do Itamaraty.

Documento do então embaixador Clifford Sobel elogia as ações de combate ao terrorismo, mas deixa claro que o Brasil não quer tornar públicas tais práticas. O texto afirma que as autoridades brasileiras prendem com frequência indivíduos ligados ao terrorismo. Ainda segundo o ex-embaixador, o país evitaria estardalhaços devido ao "medo de estigmatizar a grande comunidade muçulmana no Brasil" ou "prejudicar sua imagem como destino turístico". Também "evita parecer com o que é visto como uma política agressiva dos EUA de guerra ao terrorismo".

Há muito para ser dito diante de tantas revelações. Em primeiro lugar, acho que a maneira como Sobel interpreta a preferência de Brasília por não divulgar ações antiterror é limitada. É claro que há esforços para não estigmatizar os 1,5 milhão de muçulmanos que vivem no país ou mesmo de não arranhar a imagem como destino turístico. Mas isso não é tudo. O Brasil não quer se colocar como agente da guerra ao terrorismo na América Latina justamente porque internacionalmente defende um discurso de busca por negociações e frequentes críticas à maneira como países que enfrentam ameaças terroristas lutam contra elas.

Além do mais – e aí o ex-embaixador faz uma ótima análise – haveria grandes estragos às pretensões internacionais brasileiras se o país passasse a ser visto como parceiro americano em questões de segurança global. O Brasil perderia onde quer mais ganhar politicamente: no posicionamento como líder equilibrado do movimento dos Estados "não-alinhados". Como poderia requisitar tal status ao se colocar voluntariamente ao lado dos EUA num assunto tão sensível a parceiros que Brasília considera fundamentais?

O fato de manter o discurso equilibrado abertamente e combater ações, planejamento e financiamento ao terrorismo em "low profile" resume o pensamento externo corrente do Itamaraty: manter a legalidade nacionalmente e não incentivar a violência ao mesmo tempo que evita cumprir com entusiasmo o que poderia ser interpretado como a "cartilha americana".

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Eleições no Egito são importantes para o futuro próximo do Oriente Médio

No próximo domingo, dia 28, meio que na encolha por conta de tudo o que está acontecendo no mundo, o Egito realiza eleições parlamentares. Não se pode esquecer a importância estratégica regional do país e de como tudo o que acontece a partir do governo do Cairo reverbera em todo o Oriente Médio. A presidência de Hosni Mubarak deve ser "ameaçada" somente no ano que vem, quando haverá eleições para o cargo político máximo. Mesmo assim, o pleito atual pode dar algumas pistas importantes sobre o rumo a ser seguido pela controversa "democracia" egípcia.

Em primeiro lugar, é preciso apresentar uma série de contradições de um dos principais aliados americanos na região: é o partido de Mubarak – que ostenta ironicamente o título de Partido Nacional Democrático – o responsável pela verificação do processo eleitoral. Isso já seria estranho o suficiente, mas vale dizer também que o PND – representado pelo presidente – está no comando do país há 30 anos, e recentes declarações indicam que ele deverá concorrer novamente ao cargo no ano que vem. Para completar, há indícios de que a cobertura da imprensa egípicia no domingo já está comprometida com os candidatos do partido do governo.

Resta saber, então, por que os EUA apoiam um presidente que não larga o osso, direciona a imprensa e controla o parlamento. No jogo de forças políticas do Oriente Médio, Mubarak dispõe de uma característica capaz de levar os americanos a fecharem os olhos para todas as demais: ele sufoca o movimento fundamentalista Irmandade Muçulmana, que prega a islamização da política egípcia, por exemplo, e é fonte de inspiração para o Hamas, em Gaza, e diversos grupos radicais islâmicos em toda a região. Mubarak não apenas colocou o movimento na ilegalidade, como costuma sufocar qualquer manifestação de força de seus militantes.

Curiosamente, no entanto, a situação não é a representação completa do maniqueísmo. Isso porque a legislação política egípcia – ao contrário da brasileira, por sinal – permite que candidatos concorram ao parlamento como independentes. Tal brecha permitiu à Irmandade Muçulmana eleger um em cada cinco parlamentares nas últimas eleições (há 518 cadeiras no parlamento do país).

Há alguns fatos novos que podem alterar este tênue equilíbrio de poder no Egito: a mobilização de parte da sociedade – 14 mil membros de entidades civis do país pretendem fiscalizar as eleições, mas a autorização depende da Comissão Eleitoral do governo – e o retorno do ex-presidente da Agência Internacional de Energia Atômica Mohamed ElBaradei ao país. Ganhador do prêmio Nobel da paz e fundador do movimento Associação Nacional para Mudança, ElBaradei é bastante popular e representa uma terceira via para disputar politicamente as eleições presidenciais no ano que vem.

Por ora, resta observar os resultados de domingo. A tendência é de vitória em larga escala do PND, mas pode ser que a Irmandade Muçulmana – representada por boa parte dos candidatos independentes – consiga mais uma votação expressiva. Se isso acontecer, ninguém sabe como o próprio Mubarak irá reagir.

Resta a dúvida também como os demais atores regionais poderiam responder a esta injeção de ânimo. E mais: creio que, neste caso, o próprio processo de paz entre israelenses e palestinos seria ainda mais prejudicado, uma vez que o Egito exerce o papel de importante intermediário regional para as conversações.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Imprensa internacional e a cobertura sobre a violência no Rio: o Brasil ainda está no lucro

Era só uma questão de tempo até que a onda de violência no Rio merecesse a devida atenção internacional. Como este período em que vivemos é marcado pela instantaneidade, a preferência dos veículos estrangeiros pelo Brasil era só uma questão de escolha mesmo. Esta escolha foi feita na medida em que a crise entre as Coreias parece ter sido reduzida a um episódio pontual.

Assim, o Brasil retorna às manchetes de uma maneira muito familiar. No final dos anos 1980, o país disputava cabeça a cabeça com a Colômbia o imaginário de violência latino-americana. Depois da estabilização econômica e, finalmente, dos últimos oito anos de crescimento, participação em fóruns e protagonismo até diplomático, subimos alguns muitos degraus. Não acredito que esta crise momentânea irá conseguir deslegitimar todas as boas credenciais adquiridas recentemente.

Sem a menor dúvida, no entanto, é um presente de grego para o final de mandato de Lula, presidente empenhado em tornar o Brasil ator relevante. O projeto do Itamaraty é bem sucedido, não se pode negar. Aliás, talvez por isso, até agora as reportagens de veículos do exterior não tem partido para a condenação das ações policiais. Muito pelo contrário.

"O estabelecimento das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) há dois anos testemunhou a primeira tentativa de quebrar o ciclo, introduzir as leis nas favelas e conquistar corações e mentes da próxima geração".

Ao contrário do que possa parecer, este não é um trecho de qualquer comunicado oficial do governo estadual do Rio de Janeiro, mas parte da reportagem do britânico Telegraph que pretende explicar os acontecimentos desta semana.

Como não poderia deixar de ser, há também uma comparação entre a situação de Colômbia e Brasil para justificar as medidas tomadas pelo governador Sérgio Cabral.

A maior parte das reportagens tem seguido este rumo. De certa forma, as políticas de relações públicas brasileiras podem ser consideradas efetivas porque, ao contrário do que ocorre na maioria de situações conflituosas, os grandes jornais não estão – pelo menos até este momento – questionando qualquer medida oficial. Quem acompanha os acontecimentos internacionais sabe que situações deste tipo costumam causar controvérsia.

No caso do Rio, alguns fatores talvez expliquem o momentâneo vácuo de críticas: a falta de familiaridade da imprensa e do público internacionais com a situação; e a dificuldade de acesso aos traficantes que combatem a polícia. Os grupos armados que atuam nas favelas estão a anos-luz de distância dos paralelos radicais que combatem em outras partes do planeta e que investem pesado na construção de discursos para validar suas posições.

Isso porque há grande diferença entre esses grupos. Se no Oriente Médio, por exemplo, há grande escopo ideológico por trás das ações armadas, por aqui o único interesse é manter o tráfico. Por mais que originalmente parte dos grupos armados cariocas tenha tentado se vincular a movimentos ideológicos, a prática atual deixou claro que, assim como determina a economia ocidental, o mercado é o único ente a ser venerado. Não há espaço ou interesse de misturar qualquer discurso a ele. 

Não é possível dizer se a suavidade quanto ao olhar interpretativo sobre as ações brasileiras neste caso será mantida. Tudo vai depender de como a polícia e o governo – e Brasília deverá ter um papel ainda mais ativo – agirem nos próximos dias. Enquanto isso, é bom que se saiba que os estragos internacionais foram mínimos.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Coreia do Norte: autoestima de Kim Jong-il é esquizofrenia nacional

As incongruências entre as expectativas norte-coreanas e as concessões internacionais podem acirrar os conflitos iniciados ontem. Perceber que Pyongyang pretende se estabelecer como potência atômica planetária reforça o que já escrevi. Para analisar os passos do regime de Kim Jong-il é preciso ter em mente mais uma característica humana transportada às ações governamentais: a autoestima está alta demais.

Na foto: manifestante sul-coreano em Seul queima bandeira da Coreia do Norte

Isso poderia não ser ruim necessariamente. O problema é quando ela passa a denunciar uma boa dose de loucura. Loucura do grande líder transformada em insanidade institucional. Como menciona o texto de ontem, o Ocidente enfrenta grandes dificuldades para entender a Coreia do Norte porque todas as explicações levam em consideração certo bom-senso.

Agora, depois do primeiro impacto causado pelos bombardeios, já é possível estabelecer novos paradigmas de análise. Um dos mais interessantes é o seguinte:

"O que eles (os norte-coreanos) desejam há ano é reconhecimento diplomático de seu país pelos EUA. Eles estão frustrados porque entraram nas negociações de seis partes, fizeram testes nucleares e todo o tipo de ameaças, mas ainda não conseguiram levar os americanos à normalizar relações", diz à CNN Wenran Jiang, cientista político da Universidade de Alberta, no Canadá.

Ora, a premissa apresentada mostra total falta de conhecimento do modo de operação de Washington. Algum Estado que minimamente acompanhe a política externa americana desde o início do século 20 saberá que os EUA não costumam aceitar chantagens em troca de relações diplomáticas. Há três administrações presidenciais americanas – a partir de Bill Clinton, em 1994 – existe um consenso de que é preciso interromper o programa nuclear norte-coreano. Houve muitos erros de análise por parte dos EUA, mas em nenhum momento qualquer presidente do país ou autoridade mostrou a mínima disposição de conviver com a possibilidade de uma Coreia do Norte com capacidade atômica.

Em artigo publicado no Wall Street Journal, Michael J. Green e William Tobey, dois ex-oficiais de segurança dos EUA, informam que fontes da Coreia do Norte dizem que o interesse de seu governo é negociar com os americanos um acordo de controle de armamentos. Isso é tão improvável de acontecer que soa ridículo. Se os EUA enfrentam dificuldades para ratificar internamente um tratado de redução de arsenal nuclear com a Rússia (Start, na sigla em inglês), imagina como os congressistas reagiriam a uma proposta deste tipo para fazer algo semelhante com os coreanos? Não faz qualquer sentido.

Washington está em conversações com Moscou porque no século 20 houve algum paralelo entre a capacidade militar dos EUA e da ex-URSS. Definitivamente, o mesmo raciocínio não pode ser aplicado à Coreia do Norte.

Se Pyongyang deposita na aceitação americana de sua autoestima como forma de dar fim a esta nova série de provocações, é melhor que a Coreia do Sul se prepare para novos ataques. Aliás, os EUA já despacharam para a região o porta-aviões George Washington acompanhado de navios militares para conduzir exercícios com os aliados de Seul. Esta primeira resposta oficial deixa claro que as expectativas estão em patamares muito distintos.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Coreia do Norte manifesta ambiguidade. Mais uma vez

O ataque de hoje promovido pela Coreia do Norte à ilha de Yeonpyeong, no lado sul da disputada fronteira marítima entre as duas Coreias, pode ser interpretado de muitas maneiras. Não há dúvidas de que a escalada de violência na região deixa o mundo todo em alerta. Mas a globalização aponta algumas semelhanças entre países suspeitos de prosseguir com programas nucleares cujos fins seriam militares: quanto mais inconsequente – ou quanto mais parecer inconsequente –, melhor.

Esta é uma forma de manter em permanente estado de alerta aqueles que tentam negociar com potências atômicas. A característica humana da insanidade é propositalmente transportada para governos – por mais estranho que isso possa parecer. Desta maneira, o Irã tem conseguido, bem ou mal, se equilibrar. Desta maneira também está agindo a Coreia do Norte.

Desde o estabelecimento das negociações de seis partes (como são chamadas as seguidas rodadas de conversas entre Pyongyang e potências internacionais), em agosto de 2003, o regime de Kim Jong-il deu muitos passos adiante e outros tantos em sentido contrário.

E assim, sempre aceitando enormes quantias de dinheiro quando promete interromper seu programa nuclear, a situação segue exatamente no mesmo ponto. Aliás, há duas semanas o Ocidente teve uma bela resposta: a Coreia do Norte convidou Siegfried Hecker, ex-diretor dos laboratórios Los Alamos, nos EUA, para conhecer as instalações nucleares do país. Foram três horas e meia de visita às centrífugas de enriquecimento de urânio. No auge do senso de humor, o governo jura que pretende apenas produzir eletricidade.

O ataque de hoje é permeado de explicações muito plausíveis por sinal: seria uma reação norte-coreana aos exercícios militares conduzidos pela Coreia do Sul realizados próximos à chamada Linha de Limite ao Norte, fronteira marítima entre os dois países reconhecida pela ONU, mas que não conta com a aprovação da Coreia do Norte; ou marca o início do processo de sucessão de Kim Jong-il – segundo o pesquisador sul-coreano ouvido pela revista Time Cheong Seong-Chang, Kim Jong Un, o filho do ditador, estaria sob influência de um grupo de generais ainda mais linha-dura.

Acredito mesmo que tais motivos tenham contribuído para os ataques de hoje. Mas acho também que a demonstração de força segue a linha de reforçar ainda mais o perfil inconsequente construído pelo regime mais fechado do planeta. As interpretações sobre os acontecimentos são sempre lógicas demais, muito embora a Coreia do Norte dê repetidas mostras de ambiguidade internacional. Por exemplo, o bombardeio acontece no dia seguinte ao envio de delegados do país à Coreia do Sul para discutir, com o auxílio da Cruz Vermelha, o envio de ajuda a Pyongyang.

A explicação menos politicamente correta e mais compatível com o contexto vem de Praveen Swami, editor de Diplomacia do britânico Daily Telegraph.

"Ao atacar uma ilha sem qualquer valor estratégico, o regime disfuncional – mas eminentemente racional – da Coreia do Norte pretende mostrar ao mundo quanta dor pode causar se não for subornado para se comportar. Ambos os lados querem riqueza, não guerra – e o armamento nuclear é o meio norte-coreano de obter isso", escreve.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O envolvimento do Hezbollah no assassinato de Rafik Hariri e o futuro do Oriente Médio

A Canadian Broadcasting Corporation (CBC) investigou e deu o furo mundial do dia – e, quem sabe, do ano. Segundo o grupo de comunicação canadense, o Tribunal Especial do Líbano estabelecido pela ONU chegou à conclusão de que o Hezbollah esteve diretamente envolvido no assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri (foto). Mais tarde, o atentado à bomba que matou o líder nacionalista libanês culminaria na Revolução de Cedro, movimento popular que conseguiu encerrar a ocupação síria.

A reportagem da CBC mostra que gravações telefônicas apontam contatos frequentes entre oficiais do Hezbollah e os proprietários dos telefones celulares usados na detonação dos explosivos que mataram Hariri. Leia a matéria completa aqui.

Já escrevi em outubro passado sobre a comissão que investigava o caso (leia aqui). As consequências das descobertas podem ser gravíssimas. A posição oficial do Hezbollah – e não poderia ser outra, claro – era de que Israel teria participado do ataque. Os israelenses sempre negaram as acusações.

A divulgação das informações colhidas pela CBC deve mudar profundamente o rumo do Oriente Médio. Como se sabe, a milícia xiita libanesa recebe ajuda financeira e militar iraniana. Acuada, deve reagir muito mal. Isso significa que pode seguir dois caminhos: ou manter o empenho em deslegitimar o tribunal da ONU – o que deve ficar mais difícil agora – ou tentar até mesmo promover um golpe de Estado. Esta não é uma possibilidade remota. Nunca é demais lembrar que as forças do Hezbollah possuem mais armas e são mais preparadas que o exército regular libanês.

Além disso, é muito provável que, se optar por esta decisão, a milícia conte com ainda mais apoio dos aliados Irã e Síria. Não é difícil imaginar que os dois países ratifiquem apoio ao grupo em nome de uma suposta defesa dos interesses nacionais libaneses em confronto com Israel e EUA. Este discurso mobiliza parte considerável da opinião pública interna, além de muitos setores em todo o Oriente Médio.

Tampouco é improvável imaginar que o Hezbollah volte a adotar estratégias militares do passado recente. Acredito que, se de fato a ONU bancar as conclusões reveladas pela CBC e decidir indiciar membros do Hezbollah até o final deste ano, a milícia xiita opte por voltar a lançar mísseis sobre o norte de Israel. Como o líder Hassan Nasrallah declarou muitas vezes, o grupo teria se rearmado desde a guerra contra os israelenses de 2006 e hoje estaria em situação ainda melhor do que naquele período.

Envolver Israel num novo confronto militar atende a alguns interesses importantes: une internamente o país e mobiliza seus aliados regionais. Por outro lado, há uma grande parcela da população libanesa que não está mais disposta a pagar por tal decisão. Será preciso encontrar um modo de atacar Israel sem deixar evidente que se trata de uma retaliação às evidências apresentadas pelo tribunal das Nações Unidas. E será muito difícil levar este projeto adiante.

Travar uma nova guerra com Israel pode também precipitar um ataque israelense às instalações nucleares iranianas. Se isso acontecer, Jerusalém poderá contar com o apoio de Washington – o que não interessaria ao Irã neste momento. Por tudo isso, acho que este é o pior momento da história do Hezbollah.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Como a epidemia de cólera no Haiti pode afetar as posições internacionais brasileiras

Revoltas populares, barricadas, queima de pneus e represálias policiais não são incomuns. Curioso é quando o alvo da ira é a ONU. No caso, os soldados da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) chefiada pelo Brasil. Talvez este seja o primeiro grande desafio internacional de Dilma Rousseff. Na verdade, como já escrevi tantas outras vezes, era apenas uma questão de tempo para que o Brasil deixasse de ocupar o posto de "queridinho" mundial. Este é o preço natural que se paga quando se assume um papel mais arrojado na política externa. Na prática, é muito simples: lutar por espaço certamente incomoda muita gente - ou, no caso, os muitos países concorrentes que se acotovelam na briga por protagonismo neste novo mundo em formação.

 
Vai ser no mínimo curioso entender como Brasília reagirá a partir desta mudança de cenário. O governo brasileiro, pela primeira vez desde a Guerra do Paraguai (1864-1870), pode estar mudando de lado na bancada. Não necessariamente os conflitos no Haiti vão se encaminhar desta forma, mas é uma possibilidade. Se o clima hostil entre a Minustah e a população piorar ainda mais, poderemos testemunhar mortes de civis e, por consequência, o comando militar brasileiro local - em coordenação com o Itamaraty - tendo de explicar suas ações.

 
No entanto, é bom deixar claro que o Brasil não é o causador desta revolta popular. A epidemia de cólera que já registra mais de 18 mil doentes e mais de mil mortos é a origem dos distúrbios. A população acredita que soldados nepaleses que compõem a Minustah são os responsáveis por levar a doença ao país. Ainda não há uma posição final quanto a isso, mas já se sabe que o vírus presente ao Haiti é o mesmo em circulação no sul da Ásia e que chegou ao país através de uma única fonte ou evento.

De qualquer maneira, a epidemia é a gota d'água numa sociedade atingida pela fome, miséria e falta de acesso a recursos básicos de higiene. Se antes do terremoto devastador de janeiro somente 17% dos haitianos usufruíam de saneamento, hoje a situação é muito pior. E não é por falta de dinheiro, mas pelo caminho tortuoso que a ajuda financeira segue. Há hoje no país 10 mil Organizações Não-Governamentais (ONGs). Segundo Allyn Gaestel, jornalista do Atlantic baseado em Porto Príncipe, menos de 38% dos recursos captados após a tragédia do início deste ano foram aplicados na construção de infraestrutra.

E aí cabe dizer que há um erro fundamental na alocação do dinheiro: o Estado haitiano ficou em segundo plano. O principal destino do montante é este amontoado de ONGs instaladas no país. O processo é descentralizado, gerando ainda mais dificuldades de regulamentação, fiscalização e aplicação prática dos recursos. Fora que, agora, o Haiti pode estar pagando um valor altíssimo pelas estratégias da política externa americana recentes.

"Em 2000, um empréstimo de 54 milhões de dólares do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) deveria ter sido repassado ao governo haitiano como forma de reabilitar seus sistemas de saneamento urbanos e rurais. Mas os EUA queriam desestabilizar o governo democraticamente eleito de (Jean-Bertrand) Aristide. Fontes sugerem que o governo americano teria pedido ao BID que bloqueasse o envio deste dinheiro, assim como outras remessas totalizando 146 milhões de dólares que seriam investidos em educação, saúde e infraestrutura santiária (...)", escreve Isabeau Doucet, correspondente do Guardian no Haiti.

Esta é uma denúncia gravíssima que precisa ainda ser provada. Mas é pouco provável que tal investigação ocorra agora, até porque colocaria Washington em posição muito delicada. O fato é que esta bomba-relógio de graves consequências humanitárias está no colo do Brasil, de certa forma. E talvez configure o primeiro grande desafio internacional de Dilma. Dependendo de como a situação irá transcorrer, o Haiti pode ter um papel determinante na história política brasileira, marcando o momento em que o Brasil passaria de pedra a vidraça.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Crise na Irlanda: todo mundo é culpado, mas caberá somente ao povo o ônus da austeridade

A confusão econômica europeia atinge em cheio a Irlanda. A discussão sobre se vale ou não a pena aceitar o pacote monetário de resgate oferecido pela União Europeia gira em torno também das variáveis políticas. Os irlandeses se sentem especialmente incomodados com a possibilidade de a Grã-Bretanha ser uma das principais agentes de salvação. É interessante que o debate de ideias tenha seguido por este caminho.

Ao que parece, Dublin deve ceder às fortes pressões. Segundo o dirigente do Banco Central Irlandês, Patrcik Honohan, o país vai receber um empréstimo bastante substancial, muito embora o governo da Irlanda negue mesmo ter pedido a ajuda.

No centro deste imbróglio está o Fianna Fáil, partido no comando do país desde a criação do Estado nacional irlandês. Não seria espantoso se a crise econômica levasse junto o movimento. Ou ao menos revigorasse a oposição, o que seria bastante natural. O que tem dificultado, inclusive, a possibilidade de a Irlanda aceitar o pacote de resgate é justamente a posição adotada pelo Fianna Fáil de que a soberania do país está em jogo.

Este discurso não é completamente inválido, na medida em que todo mundo conhece as pesadas contrapartidas exigidas pelo FMI - um dos protagonistas da injeção monetária - em troca da suposta "salvação" econômica. Talvez o partido político irlandês não esteja comunicando corretamente sua posição. Ou esta seja uma estratégia proposital de forma a evitar alarmismos. De qualquer maneira, a diretriz oficial está longe de ser unanimidade.

"Em certo ponto, a intervenção de UE e FMI não é necessariamente ruim. Signfica que as decisões de como podemos viver de acordo com as nossas condições serão forçadas goela abaixo dos interesses competitivos que bloquearam qualquer resposta nacional genuína à crise", defende editorial do Irish Times.

Enquanto as conversas teóricas mantêm passo firme, a situação econômica do país é cada vez mais catastrófica. O déficit já alcançou a incrível marca de 32% do PIB. Se parece não haver mais tempo para decidir, é preciso que o governo seja muito cuidadoso com o caminho que irá escolher. Acho que isso explica a aparente inércia de Dublin diante do caos iminente. Se for isso, seus dirigentes apresentam comportamento ético único em todo mundo. Não se poder atribuir o ônus à população.

Esta guerra verbal capitaneada pela Alemanha se enquadra bem neste dilema. Como escrevi ontem, Berlim tem usado seu status econômico como prerrogativa para desancar os demais países. Isso é contraditório hoje, na medida em que, de certa maneira, se não fosse a "irresponsabilidade consumista" dos tempos de vacas gordas em boa parte do Estados europeus hoje na penúria, as empresas alemãs - e por consequência o país inteiro - não estariam entre as mais "saudáveis" e lucrativas do continente. Por isso tendo a concordar com a posição de Alan Posener, comentarista da Die Welt e um dos mais influentes blogueiros alemães.

"São os gregos e irlandeses que não podem encontrar uma saída (...) e estão encarando anos de austeridade para compensar as extravagâncias do passado. Um passado em que você não escutava Mercedes, Siemens e companhia reclamarem que essas pessoas compravam um monte de coisas com as quais não poderiam arcar; um passado em que bancos, que supostamente deveriam monitorar o mercado e avisar sobre eventuais crises, permaneceram estranhamente silenciosos", escreve.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A crise econômica europeia, o fracasso do G-20 e o fim do modelo de bem-estar social

A reunião do G-20 não serviu para resolver a crise mundial. Aliás, o encontro não conseguiu sequer chegar perto disso. As discussões realmente importantes ficaram de fora das decisões finais da cúpula. Nem a China foi pressionada o bastante a ponto de ser "comovida" a flexibilizar o yuan, nem os EUA foram minimamente convencidos a interromper o fluxo de dólares que tem levado a moeda americana a se desvalorizar, prejudicando as exportações alheias – inclusive do Brasil.

Por conta desta omissão, os países têm agido isoladamente. Sem qualquer dúvida, é a Europa que atravessa o pior momento. Os líderes da zona do euro têm deixado de lado qualquer traço de unidade comunitária. Todos se atacam mutuamente.

A Alemanha, como maior economia regional, está na posição de cobrar austeridade dos vizinhos europeus. A mais recente investida é contra a Grécia, que anunciou nesta semana que, foi mal, não vai dar para reduzir o déficit governamental a 8,1% de seu Produto Interno Bruto (PIB). A meta foi estabelecida depois que Atenas recebeu 110 bilhões de euros de resgate dos países da zona do euro e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Os alemães estão especialmente incomodados porque entraram com 22 bilhões de euros desta quantia total.

Outra briga interna no continente que já foi o modelo de boa vida internacional é protagonizada pela troca de acusações entre Portugal e Irlanda.

"Se a situação está pior na Irlanda, por exemplo, ela vai contagiar outras economias da zona do euro e particularmente as que estão sob forte escrutínio dos mercados, como Portugal", disse Fernando Teixeira dos Santos, ministro das finanças português.

Não custa lembrar que, apesar deste tipo de declaração, Lisboa não tem motivos para se orgulhar. Irlandeses e portugueses estão juntos no mesmo barco furado. Portugal apresenta déficit de 9% do PIB, quando o limite para a zona do euro é de 3%. A Irlanda, por sua vez, é a maior dor de cabeça do momento. É o que a Grécia foi no ano passado. Seus bancos já perderam cerca de 80 bilhões de dólares. Ou o equivalente a 50% da economia do país, como destaca o New York Times.

Enquanto a situação vai de mal a pior na Europa, há comentaristas que conseguem enxergar nisso uma lição de algum ente divino. Ou, pior, a "evolução" em curso no continente que, finalmente, irá reduzir a presença do Estado e, por consequência, os benefícios que marcaram o imaginário mundial construído sobre a vida que seus cidadãos levaram durante boa parte do século 20. A realidade a partir de agora será bem diferente, como se sabe.

"Há algo no ar. Quase parece que pelo menos alguns (países) europeus têm aprendido lições da recessão recente. Eles perceberam – ou estão a ponto de perceber – que seus setores estatais são grandes demais. Eles estão próximos de descobrir que seus gastos públicos, que pareciam justificáveis nos bons tempos econômicos, precisam ser cortados. A classe média até sabe que seus subsídios – em hipotecas, ajudas de custo a universitários ou até tratamentos de saúde – não podem durar", escreve Anne Applebaum, colunista do Washington Post.

A derrubada do modelo de bem-estar social parece um fato consumado. Pelo menos é assim que seus detratores preferem encarar este momento.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O G-20 e o futuro do sistema econômico mundial

No encontro que começa hoje, em Seul, os países que juntos representam 85% da economia mundial têm o enorme desafio de restabelecer a confiança global na competência do mercado. Não se trata de discutir a eficiência do capitalismo, mas perceber que muito de seu simbolismo ficou manchado desde a crise mundial iniciada, justamente, nos EUA. As imagens que percorrem o mundo de jovens britânicos quebrando a sede do Partido Conservador, em Londres, acabam por entrar também no bolo. Não se tratam de protestos periféricos fomentados por grupos que contestam o capitalismo ou organizações de defesa do meio ambiente, mas da revolta daqueles que deveriam representar a esperança no futuro.

Tal manifestação é digna de nota. Como já havia acontecido na Grécia, em 2008, os jovens decidiram protestar contra o violento pacote de cortes divulgado pelo primeiro-ministro David Cameron. Todo o tipo de manifestação é legítima, mas esta me parece ainda mais significativa, na medida em que representa a indignação da próxima geração de trabalhadores com a responsabilidade de pagar a conta de escolhas políticas equivocadas.

E o G-20 pode ter papel fundamental na continuidade desta polarização mundial. O fórum que se pretendia mais democrático por ampliar o antigo G-7 pode se transformar no símbolo mais perverso de uma era de muitas incertezas. Dos países-membros, só a China está rindo à vontade. Mesmo o Brasil - que se orgulha de ter conseguido reverter a certeza da crise - está preocupado porque a valorização do real não é necessariamente positiva. Pode até ser um momento feliz para a classe média continuar a se esbaldar em Miami, mas põe em risco as exportações.

Se Beijing ocupa o papel de vilão por conta do controle sobre o yuan, EUA e os países europeus não podem se sentir confortáveis. Afinal, como lembra o britânico Guardian, foram eles os responsáveis pela ideia de que o livre mercado resolveria todos os problemas da humanidade. Deu no que deu. E, pior, incentivaram a entrada dos chineses no jogo - que fizeram sua própria interpretação das regras e agora não abrem mão delas.

Aliás, os pedidos ao país asiático não se restringem somente à questão do câmbio. Todo mundo vai implorar para que a China incentive o consumo interno. Como escrevi ontem, se o regime disser que vai atender às demandas, mas, no final das contas, decidir não fazer nada, quem poderá lhe aplicar qualquer punição por isso?

O G-20 está hoje preso à própria armadilha que criou. E sem a menor moral para argumentar. Se não bastassem todas as decepções recentes com o mercado, mesmo os países que compõem o grupo acabaram por adotar as medidas que mais condenam; segundo levantamento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), a maior parte deles optou recentemente por leis protecionistas.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

E a China engoliu o mundo

Não há dúvidas de que a China vai ser o grande assunto do encontro dos países do G-20 que começa amanhã, em Seul, na Coreia do Sul. Na prática, a ocidentalização da economia chinesa acabou se tornando um problema. Quando Beijing entendeu que brigar em termos iguais com as grandes potências era um projeto econômico viável, a guerra estava ganha. Isso porque a interferência do governo no câmbio interno provê ao país uma enorme vantagem em relação a todos os outros. Agora parece ser tarde demais. Não acredito que a enorme pressão que se inicia nesta quinta-feira será capaz de frear as ambições da república popular.

A China compreendeu que abrir algumas brechas poderia lhe render frutos ainda maiores. Se mantivesse a economia totalmente fechada, não competiria internacionalmente. Seus dirigentes foram espertos. Não apenas se permitiram "ocidentalizar" as áreas mais favoráveis, como também estão crescendo sem parar graças ao capitalismo de mercado. As estratégias adotadas também contaram com a leitura perfeita deste cenário.

Por exemplo, hoje o país é responsável pelo fornecimento de mais de 90% dos 17 metais e minerais que estão no coração do capitalismo contemporâneo. O material é fundamental na composição de discos rígidos, telas de plasma, bombas, turbinas e toda a sorte de equipamentos tecnológicos. Simplesmente, o planeta se tornou dependente de tais matérias-primas. Por consequência, dependente da China também. Não por acaso, as maiores valorizações das bolsas europeias na última semana foram justamente as das empresas de matérias-primas.

Este não é um evento ocasional. Beijing soube analisar as tendências e entender que colocaria os demais concorrentes no bolso a partir de suas vantagens naturais e da compra de mineradoras em todo o mundo. O regime sabe de sua força e recentemente deu mostras de que está disposto a usar a dependência internacional como forma de fazer exigências geopolíticas. Por conta da disputa com Japão e Taiwan pelas ilhas Senkaku/Diaoyu, o país anunciou, em julho deste ano, cortes na produção. Foi o suficiente para acender a luz amarela em todo o mundo.

Teoricamente, a China não pode usar tais práticas como chantagem. Segundo reportagem da Bloomberg, tal decisão fere compromissos assumidos a partir do ingresso na Organização Mundial de Comércio (OMC), em 2001. Mas aí cabe um questionamento: alguém acredita que a China seria expulsa da OMC?

O pulo-do-gato chinês é justamente investir nesta percepção ambígua que o mundo ainda cultiva a seu respeito. Se não bastasse a dependência de todo o planeta, ninguém sabe ao certo como Beijing reagiria quando pressionada por um gesto agressivo como, por exemplo, a expulsão mencionada acima. Ao manter este perfil um tanto imprevisível, também aumenta sua capacidade de ameaça internacional. É mais ou menos o que o Irã tem feito durante esses anos, com a diferença de que a China é muito superior à república islâmica em todos os quesitos.

As potências ocidentais têm tentado correr atrás deste prejuízo. A verdade é que ninguém havia levado em conta as consequências políticas do poderio econômico de Beijing até a demonstração de força no episódio das ilhas. Alguns líderes mundiais estão procurando se aproximar, casos de David Cameron, da Grã-Bretanha, e do francês Nicolas Sarkozy (que passa a ocupar, inclusive, a presidência do G-20).

Os EUA têm optado por um caminho diferente. O atual giro de Barack Obama pela Ásia também pretende "blindar" aliados diante do poderio chinês. No entanto, todos os gestos do momento são ínfimos se comparados ao status alcançado pela China de protagonista internacional.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

As difíceis escolhas americanas na Ásia

A visita de Obama à Índia mostra a preocupação dos EUA com a Ásia e o Sudeste Asiático. No mundo em transformação, a noção de que as regiões são entidades desconexas se confronta com a realidade. A intenção de fortalecer laços com os indianos na verdade resume os múltiplos interesses em jogo: a guerra do Afeganistão, a luta do Paquistão contra os talibãs, e a percepção da importância da aliança com a Índia num momento em que a China se projeta como potência internacional.

Tudo isso está misturado e conectado de alguma maneira ou de muitas maneiras simultâneas. É esta a complexidade geopolítica do século 21, marca que parece ter vindo para ficar por bastante tempo. A agenda de Obama envolve a necessidade de lembrar aos indianos que os EUA são seus aliados por uma série de fatores: a China inicia seu processo de expansão regional baseada em sua inegável força econômica, militar, estrutural e populacional. Ao mesmo tempo, não se pode contar apenas com a ajuda paquistanesa no Afeganistão. E, para completar, é importante deixar claro que Washington não irá tolerar qualquer disputa na Caxemira que coloque em risco seus principais esforços asiáticos.

Acredito, no entanto, que a questão mais importante no momento é mesmo a China. Frear as intenções de Beijing é fundamental porque este é um problema que acaba caindo na conta da economia americana. Se os republicanos conseguiram mudar a balança de poder interna ao basear parte do discurso na taxa de desemprego atual, o presidente americano responde como pode. E um dos campos onde ainda usufrui de liberdade de ação é justamente a política externa. Evitar a expansão chinesa para os demais países da Ásia pode ser uma forma de fragmentar o potencial econômico regional e impedir, por ora, mais competição para a indústria americana.

"As regiões como elas existem hoje devem sobreviver sob a influência geoeconômica. Os Estados irão se encontrar mais envolvidos numa rede de associações de livre comércio. Na Ásia-Pacífico, a China provavelmente deverá se sentir mais confortável no papel do 'suserano exaltado', uma versão atualizada do tradicional sistema tributário chinês", escreve James C. Hsiung, professor da Universidade de Nova Iorque.

Para barrar este projeto de Beijing, Obama finalmente decidiu visitar a Índia. Topou, inclusive, prometer se empenhar no reequilíbrio de instituições multilaterais, como a ONU - o que poderia também beneficiar o Brasil. O problema é que, para convencer Nova Déli a embarcar no canto americano, será preciso mexer com o também aliado - e problemático - Paquistão.

A fidelidade ambígua de Islamabad é velha conhecida de Washington. Mesmo assim, não se pode abrir mão deste apoio. Seria loucura abandonar à própria sorte um Estado detentor de arsenal atômico que tem o Talibã lhe batendo à porta. Mas a rivalidade entre Índia e Paquistão é histórica e foi reforçada por conta dos atentandos a Mumbai, em 2008. Nada disso, no entanto, impediu os americanos de dar continuidade à transferência de 13,8 bilhões de dólares em equipamentos militares ao país numa parceria altamente incômoda aos indianos.

Acho que este é um dos casos em que impera o maniqueísmo de ambas as partes. Será difícil ao projeto americano seduzir a Índia sem causar prejuízo à relação que os EUA mantêm com o Paquistão. O mesmo raciocínio vale para as relações com o Paquistão. Obama terá de abrir mão de algo neste caso: a estabilidade no Afeganistão ou a influência econômica na Ásia. Qualquer que seja sua escolha, as consequências a longo prazo irão reverberar em todo o mundo. Definitivamente, a sorte não tem acompanhado o presidente americano.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Republicanos e Israel: uma relação nem tão óbvia quanto parece

Para encerrar esta semana especial depois das eleições americanas, acho válido buscar um caminho para entender os rumos da política para o Oriente Médio a partir das grandes mudanças em curso. Na verdade, não há qualquer consenso sobre os caminhos que os republicanos devem adotar após o voto de confiança que restabeleceu ao partido parcela de poder considerável desde a eleição de Obama. Mas vale dizer que não necessariamente as escolhas serão óbvias.

É importante ter em mente que o Tea Party não se dedica à formação de um pensamento internacionalista americano com o mesmo empenho com que debate suas principais plataformas de luta (corte de gastos do governo e redução de impostos). Por isso determinar suas ações em relação à política externa é, neste momento, especulação.

Em relação ao Oriente Médio, acredito que Obama continuará a pressionar Israel a retroceder na construção de assentamentos na Cisjordânia porque este é um tema que interessa à sua carreira política e que, no imaginário popular mundial, pode valer a realização de alguns dos aspectos mais marcantes de sua campanha: mudança e esperança.

Enquanto seria lugar-comum acreditar que os israelenses estariam satisfeitos com a vitória republicana, é bom notar que tal satisfação talvez esteja restrita ao primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu.

"No final das contas, um presidente fraco significa que os EUA também estarão fracos", diz Oren Nahar, editor internacional da Rádio Israel.

A fraqueza a que ele se refere é a mesma que pode satisfazer o premiê israelense; sem a pressão de Obama sobre negociações com os palestinos, teoricamente Netanyahu poderia se concentrar no ponto de sua agenda internacional que mais lhe interessa e onde se sente mais confortável: a discussão sobre o programa nuclear iraniano e a articulação de um ataque às instalações atômicas da república islâmica – empreitada militar que, se levada adiante, contaria com no mínimo auxílio logístico americano.

Mas é importante lembrar que é pouco provável que Jerusalém vire as costas para Washington e decida atacar o Irã sem contar com a aprovação da Casa Branca. Antes que se afirme que o apoio republicano a Israel é óbvio, é preciso levar em consideração alguns pontos: o sinal verde americano passaria pela aprovação de Obama – e os fatos até o momento não levam a crer que o presidente daria tal aprovação – e o republicano George W. Bush, ainda como ocupante do cargo, chegou a ser consultado pelos israelenses e pediu ao então primeiro-ministro Ehud Olmert para não concretizar o ataque.

Além disso, ninguém sabe exatamente como os republicanos ligados ao Tea Party imaginam conciliar o discurso de redução do papel do Estado e cortes do orçamento com o setor de Defesa. As posições são as mais diversas. Alguns de seus mais notáveis membros – como Sarah Palin, por exemplo – não admitem reduzir verbas militares. Mas Mark Meckler, um dos fundadores do movimento, transparece disposição de discutir o assunto num estudo orçamentário mais amplo. Não há consenso, portanto.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A argumentação republicana apresenta brechas que podem ser usadas pelos democratas

Ontem comentei sobre as muitas conquistas de Obama desde que assumiu a presidência, há quase dois anos. Mesmo num espaço de tempo curtíssimo e diante de muitas adversidades, os progressos foram significativos. A massa de votos nos republicanos que mudou a balança de poder na Câmara e no Senado tem mais a ver com a percepção de que o governo não se esforça o bastante. Aliás, o próprio Obama admitiu isso em pronunciamento após a divulgação de boa parte dos resultados.

A estratégia republicana – e do Tea Party, especificamente – foi perfeita. Ela acertou em cheio onde os democratas mais falharam. Convencer a população de que tudo vai mal – mesmo quando isso não é verdade – não costuma ser uma das tarefas mais difíceis (antes que me questionem, a eleição brasileira é um caso distinto, até porque a vida das pessoas mais pobres melhorou substancialmente). O discurso adotado nos EUA sobre tamanho de governo e da carga tributária toca no ponto fundamental: a distinta concepção sobre o papel do Estado. E cada vez mais as posições entre os dois principais partidos americanos diante deste assunto parecem irreconciliáveis.

A vitória eleitoral republicana segue uma equação que se fecha principalmente porque consegue sensibilizar a massa de cidadãos: se há impostos demais é porque o Estado gasta demais; o Estado gasta demais porque ele se preocupa com áreas onde não deveria se meter (por exemplo, a reforma da saúde, uma das principais plataformas políticas de Obama). Dá para entender como este discurso é sedutor para trabalhadores endividados e que ainda se debatem com contas e todo o prejuízo financeiro e material causado pela crise econômica?

Pois é. Não se pode questionar a capacidade republicana de transmitir claramente seu principal ponto de atrito com os democratas. A vitória nas urnas deveu-se, em boa parte, à repetição contínua desta mensagem. Mas não se pode deixar de notar que a conquista apresenta outra face: os candidatos republicanos obtiveram sucesso mais pela decepção com a suposta incapacidade de Obama de realizar as mudanças anunciadas em sua campanha do que por qualquer fidelidade ideológica com o Partido Republicano. A segunda parte da estratégia republicana será apresentar propostas capazes de fidelizar esses eleitores. Sem dúvida, este é o passo mais difícil.

"Os americanos temem que o governo esteja gastando seu dinheiro, da mesma maneira que os europeus se mostram descontentes com a questão da imigração", diz Barbara Martinez, editora do Global Post.

O grande desafio republicano será conseguir mostrar que sabe resolver todos esses problemas. Ou seja, apresentar soluções viáveis e econômicas para reduzir os gastos públicos.

É curioso notar que uma das alternativas oferecidas – diga-se de passagem, durante toda a campanha – é derrubar a reforma da saúde que estendeu a cobertura nacional para 30 milhões de cidadãos. E aí fica a questão: será que esta leva de redução orçamentária também irá atingir a área da Defesa? Acho pouco provável. Ou seja, os interesses da população americana vão ficar em segundo plano, enquanto os gastos militares estarão intocados.

Nesta nova balança de forças nos EUA, a área de política externa pode ser alvo de discussões ideológicas mais firmes, uma vez que a polarização entre os dois partidos tende a aumentar. Os democratas poderão se utilizar dela para questionar as prioridades dos republicanos: as guerras travadas no Oriente Médio ou a acesso à cobertura de saúde mesmo aos americanos mais necessitados? Esta é uma oportunidade para que Partido Democrata encontre um novo caminho de enviar uma mensagem mais clara aos eleitores que votarão em 2012.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Os equívocos democratas e o risco enfrentado por Obama nas eleições de 2012

A derrota do Partido Democrata nas eleições realizadas nesta terça-feira nos EUA aponta uma perspectiva complicada para o presidente Obama. A Câmara dos Representantes passa para controle republicano. Haverá também redução da presença democrata no Senado. Há, no entanto, três importantes vitórias que a Casa Branca pode comemorar: a eleição de Harry Reid, que disputava a vaga pelo estado de Nevada com Sharron Angle, uma das estrelas do Tea Party; a retomada do governo da Califónia, com a escolha de Jerry Brown para o cargo e a reeleição da senadora Barbara Boxer.

Se a derrota ensina muitas lições, há alguns sinais que precisam ser interpretados pelos democratas. O primeiro deles é a vasta incapacidade de comunicar os resultados obtidos pelo governo nesses dois anos. Já escrevi isso antes, mas nunca é demais lembrar que Obama herdou a maior potência do planeta afundada na principal crise econômica desde os anos 1930. Mesmo assim, Washington conseguiu aprovar a ampla reforma da saúde – que passou a incluir 30 milhões de americanos no sistema de cobertura médica.

Os dados são muito importantes, mas o governo não conseguiu impactar os eleitores. Por exemplo, duas das principais acusações dos candidatos republicanos continuam a repercutir como verdade, muito embora não sejam. Plataforma de campanha da oposição, a falta de emprego e a alta de impostos foram fatores fundamentais que contribuíram decisivamente nos resultados apresentados hoje. Como informa o jornalista Michael Cohen, em artigo publicado no AOL News, dois em cada três cidadãos – segundo pesquisa Bloomberg – acreditam que os impostos subiram. Mas, por incrível que pareça, a diminuição da carga tributária atinge atualmente cerca de 95% da população.

Outro pilar de campanha republicana é o aumento do desemprego. De fato, a taxa de 9,6% ainda é alta – muito embora bem menor que em boa parte dos países europeus, por exemplo. Mas, desde janeiro de 2009, a administração Obama conseguiu criar três milhões de postos de trabalho.

Os resultados das eleições foram diretamente influenciados pelo erro estratégico de não comunicar com clareza as grandes vitórias do governo. Outro motivo que explica a mudança de poder nos EUA é justamente o que levou Obama a se eleger. Havia uma enorme expectativa quanto a sua capacidade de interferir positiva e rapidamente na realidade. Não foi isso o que aconteceu, principalmente por conta da urgência que a Casa Branca encontrou para apagar os muitos "incêndios" políticos e econômicos neste curtíssimo espaço de tempo.

Segundo fontes do partido entrevistadas pelo Wall Street Journal, há evidências de uma profunda divisão interna. As maiores queixas giram em torno da falta de empenho pessoal do presidente para eleger os candidatos da legenda, além do erro estratégico no período anterior às eleições, quando o partido passou a acusar os republicanos de receberem ajuda financeira "externa" durante a campanha - de acordo com os entrevistados, esta é uma questão distante das muitas demandas reais dos eleitores.

Se Obama está em falta com o partido, a mesma acusação não pode ser aplicada ao ex-presidente Bill Clinton, que trabalhou bastante durante a campanha. Não custa lembrar que Clinton é o maior adversário político de Obama. Seu empenho não é por acaso, mas suas muitas habilidades já detectaram que a reeleição de Obama em 2012 está longe de garantida. E aí, segundo este raciocínio, nada melhor do que substituir uma esperança por outra; sua mulher, Hillary.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A eleição de Dilma e os desafios internacionais do próximo governo

Depois da campanha mais suja desde o processo de redemocratização, Dilma foi eleita. Todo o processo é repleto de evidências sobre o país que existe hoje. Talvez este tenha sido um dos maiores méritos destas eleições: suas articulações e resultados são uma verdadeira radiografia política do Brasil.

Primeiro de tudo, ficou claro que os meios de comunicação tradicionais não serão os únicos protagonistas no papel de formadores da opinião pública. O efeito que Franklin Martins chamou de "Pedra no Lago" (leia aqui) está com os dias contados. A tendência é que ele desapareça de vez, ainda mais se o governo levar a cabo o projeto de popularização da banda larga.

Apesar de todas as leituras da mídia tradicional brasileira, a imprensa internacional parece ter conseguido entender melhor o significado da vitória de Dilma. Não se trata somente de um cheque em branco dado a Lula, mas da percepção de boa parte da população de que houve melhoria substancial em sua vida. Ao contrário do que muita gente acredita baseada somente em preconceito, as pessoas mais simples também sabem ler o cenário político. Foram elas que optaram não apenas por Lula, mas pela manutenção do projeto.

Dilma obteve vitória esmagadora no Nordeste, por exemplo, não somente graças ao Bolsa Família, mas por dados concretos que mostram aumento de renda e crédito. Em 2008, pela primeira vez na história, a região teve crescimento de 25% e consumiu mais que o Sul. Os programas sociais foram importantes, mas também a melhoria da renda familiar e a alta do emprego. O investimento numa das áreas mais necessitadas do país foi recompensado com a goleada eleitoral.

Deixando de lado preferências eleitorais, é importante que se diga que o Brasil sai fortalecido. A democracia está consolidada, e os acontecimentos mostram uma mudança precoce em sua trajetória. Depois do operário, Dilma irá representar uma virada histórica, emblemática e veloz. Torturada nos porões da ditadura, assume o cargo político mais importante do país somente 25 depois do fim do regime militar. A situação é simbólica; um ciclo que se encerra com a restituição do poder aos que deram a vida pela democracia.

No campo internacional, Dilma enfrentará amplos desafios. Em menos de seis anos, o Brasil deverá ocupar a posição de quinta maior economia mundial. Como já declarou em seu primeiro pronunciamento, seu governo vai continuar a lutar por maior equilíbrio no comércio internacional. Não era preciso dizer com todas as letras, mas fica claro que será mantida a posição brasileira nas disputas na Organização Mundial do Comércio (OMC).

A nova presidente deve manter nos cargos também o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e o assessor especial para a área, Marco Aurélio Garcia. A política externa vai usar o máximo que puder da nova capacidade econômica – e dos números do pré-sal – para requisitar status internacional compatível.

A armadilha particular que Dilma vai encarar atende por Mahmoud Ahmadinejad. Se enveredar pelo caminho da defesa dos direitos femininos – como disse no discurso de ontem quando usou um slogan parecido ao de Barack Obama para se referir ao potencial das mulheres, "sim, a mulher pode" –, vai receber inúmeros pedidos das organizações humanitárias para tratar do tema com o presidente iraniano – especificamente, sobre a situação de Sakineh Mohammadi Ashtiani.

Não acredito que Dilma irá se empenhar nas questões internacionais num primeiro momento. Ao contrário de Lula, ela não se sente totalmente confortável ao discorrer sobre o tema, mas será preciso que se esforce. Afinal, deve provar que a política externa brasileira não é plenamente dependente do carisma do atual presidente. Por isso, Dilma irá acompanhar Lula durante a próxima reunião do G-20, em Seul, na Coreia do Sul, nos próximos dias 11 e 12.

A questão mais importante que chegará a seu gabinete logo de cara interessa a maior parte das lideranças de um planeta sedento por energia. A extração do pré-sal e as definições sobre royalties entre estados e municípios deve ser prioridade no próximo governo. A presidente eleita deixou claro que a riqueza proporcionada pela exploração do pré-sal irá financiar grandes e importantes mudanças sociais no país. A discussão será acompanhada com atenção em todo o mundo e uma das promessas de campanha de Dilma é fazer valer a presença do Estado em todo o processo relacionado ao pré-sal.