A abordagem israelense à frota marítima internacional – patrocinada pelos turcos – é um desses eventos capazes de alterar decisivamente o cenário geopolítico no Oriente Médio. A guerra de propaganda envolvendo o episódio apenas começou. Como se sabe, a imprensa reflete a paixão com que as pessoas discutem este tema e defendem este ou aquele lado. No entanto, apesar de toda a desinformação que cerca o resultado deste imbróglio de hoje, já é possível chegar a algumas conclusões sobre a empreitada da "Frota da Liberdade".
Vale explicar os pontos de vista de cada um dos atores: a frota, composta de seis embarcações e carregada de ajuda humanitária para os moradores de Gaza, além de mais de 700 ativistas dos direitos humanos, tinha como objetivo furar o bloqueio ao território palestino imposto por Israel e Egito. Autoridades israelenses argumentam que, se fosse permitido que o comboio chegasse ao porto de Gaza, outros grupos poderiam tentar o mesmo, e possivelmente levariam para o território - controlado pelo Hamas desde 2005 – armamento para o grupo terrorista. Israel teria alertado a frota de que os barcos seriam interrompidos à força, caso tentassem furar o bloqueio. E foi exatamente isso o que aconteceu. A Marinha do país também teria oferecido escoltar o comboio até o porto israelense de Ashdod para que, a partir dali, a carga fosse transportada por via terrestre para Gaza.
Como já se sabe, a resolução deste capítulo da tragédia conjunta de israelenses e palestinos foi, mais uma vez, sangrenta. Soldados de Israel entraram nas embarcações. A partir daí, tudo vira guerra de propaganda; só uma comissão independente poderá esclarecer o que de fato ocorreu. Para os militantes palestinos, países árabes e ativistas a bordo, os militares entraram atirando. Para Israel, os ativistas haviam preparado uma emboscada e receberam o grupo de soldados com violência, inclusive tomando suas armas e alvejando dois deles.
O que se pode concluir a partir de todo o episódio é que, claramente, a missão humanitária foi muito bem sucedida em dar aos palestinos mais uma vitória na guerra de propaganda travada entre as partes. E as vitórias não foram poucas. Aliás, o próprio líder do Hamas em Gaza, Ismayil Hanyieh, considerou a operação um grande triunfo - o que, por si só, demonstra que ele não dava a mínima para o carregamento de alimentos, remédios e combustível que a frota carregava.
Sejam lá quais forem os argumentos apresentados por Israel, todos serão rapidamente esquecidos pelo impacto humanitário causado pelo que aconteceu. Mais uma vez, o governo Netanyahu não mostrou nenhuma habilidade e, menos ainda, bom-senso. A frustrada tentativa de furar o bloqueio de Gaza foi mais efetiva contra Israel do que qualquer bombardeio ou atentado terrorista. Mais ainda, a condenação internacional do país serve aos propósitos da aliança xiita da qual já tratei tantas vezes aqui no site. Hezbolah, Irã, Hamas, Síria e, agora explicitamente, Turquia se apressaram em exigir medidas para condenar Israel na ONU. O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, chamou a ação israelense de desumana. A mesma declaração foi feita por líderes de países europeus. Alguns foram mais além, como Suécia, Grécia e Espanha, e chamaram de volta seus embaixadores em Israel.
No caso da Turquia, a ação de hoje é o argumento perfeito que os líderes do país precisavam para romper definitivamente relações com Israel. Este é o clímax de um desejo que começou a ser explicitado por Ancara no início de 2009, na época da invasão israelense a Gaza. Mas vale citar também que esta é a expressão mais firme da nova política externa turca; com a União Europeia em franco declínio econômico, os turcos se voltaram para o Oriente Médio. A aliança estabelecida com Irã e Síria é evidente. Romper com Israel era apenas uma questão de tempo.
Do ponto de vista iraniano, não há melhor notícia: como não esconde de ninguém, Ahmadinejad pretende riscar Israel do mapa. Certamente, este é um objetivo difícil de ser alcançado. Por isso, nada mais interessante do que assistir de camarote à condenação internacional do Estado Judeu e ao seu isolamento político. Se não é possível destruir Israel fisicamente, torná-lo um pária entre a comunidade das nações é um excelente tira-gosto para Teerã. Melhor: além de levar a Turquia definitivamente para o seu lado, ainda adia o debate sobre sanções no Conselho de Segurança na ONU - agora completamente empenhado em discutir respostas à abordagem à frota humanitária.
Para os palestinos, Netanyahu conseguiu finalmente que Mahmoud Abbas, do Fatah, e Ismayil Hanyieh, do Hamas, concordassem sobre algo. E mais: torna possível a realização da sonhada terceira Intifada – planejada pelos grupos radicais que tomaram Gaza –, além de mobilizar os cerca de 1,4 milhão de árabes cidadãos de Israel, podendo gerar um caos interno inédito dentro das fronteiras do Estado Judeu. Alguém questiona a importância dos acontecimentos do dia de hoje na política do Oriente Médio?