segunda-feira, 31 de maio de 2010

Vídeos

Como complemento ao texto de hoje, dois vídeos para que os leitores tirem suas próprias conclusões:

http://www.youtube.com/watch?v=gYjkLUcbJWo

http://www.youtube.com/watch?v=DSFwyWyVo74&feature=watch_response

Crise causada por comboio pode mudar a política internacional

A abordagem israelense à frota marítima internacional – patrocinada pelos turcos – é um desses eventos capazes de alterar decisivamente o cenário geopolítico no Oriente Médio. A guerra de propaganda envolvendo o episódio apenas começou. Como se sabe, a imprensa reflete a paixão com que as pessoas discutem este tema e defendem este ou aquele lado. No entanto, apesar de toda a desinformação que cerca o resultado deste imbróglio de hoje, já é possível chegar a algumas conclusões sobre a empreitada da "Frota da Liberdade".

Vale explicar os pontos de vista de cada um dos atores: a frota, composta de seis embarcações e carregada de ajuda humanitária para os moradores de Gaza, além de mais de 700 ativistas dos direitos humanos, tinha como objetivo furar o bloqueio ao território palestino imposto por Israel e Egito. Autoridades israelenses argumentam que, se fosse permitido que o comboio chegasse ao porto de Gaza, outros grupos poderiam tentar o mesmo, e possivelmente levariam para o território - controlado pelo Hamas desde 2005 – armamento para o grupo terrorista. Israel teria alertado a frota de que os barcos seriam interrompidos à força, caso tentassem furar o bloqueio. E foi exatamente isso o que aconteceu. A Marinha do país também teria oferecido escoltar o comboio até o porto israelense de Ashdod para que, a partir dali, a carga fosse transportada por via terrestre para Gaza.

Como já se sabe, a resolução deste capítulo da tragédia conjunta de israelenses e palestinos foi, mais uma vez, sangrenta. Soldados de Israel entraram nas embarcações. A partir daí, tudo vira guerra de propaganda; só uma comissão independente poderá esclarecer o que de fato ocorreu. Para os militantes palestinos, países árabes e ativistas a bordo, os militares entraram atirando. Para Israel, os ativistas haviam preparado uma emboscada e receberam o grupo de soldados com violência, inclusive tomando suas armas e alvejando dois deles.

O que se pode concluir a partir de todo o episódio é que, claramente, a missão humanitária foi muito bem sucedida em dar aos palestinos mais uma vitória na guerra de propaganda travada entre as partes. E as vitórias não foram poucas. Aliás, o próprio líder do Hamas em Gaza, Ismayil Hanyieh, considerou a operação um grande triunfo - o que, por si só, demonstra que ele não dava a mínima para o carregamento de alimentos, remédios e combustível que a frota carregava.

Sejam lá quais forem os argumentos apresentados por Israel, todos serão rapidamente esquecidos pelo impacto humanitário causado pelo que aconteceu. Mais uma vez, o governo Netanyahu não mostrou nenhuma habilidade e, menos ainda, bom-senso. A frustrada tentativa de furar o bloqueio de Gaza foi mais efetiva contra Israel do que qualquer bombardeio ou atentado terrorista. Mais ainda, a condenação internacional do país serve aos propósitos da aliança xiita da qual já tratei tantas vezes aqui no site. Hezbolah, Irã, Hamas, Síria e, agora explicitamente, Turquia se apressaram em exigir medidas para condenar Israel na ONU. O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, chamou a ação israelense de desumana. A mesma declaração foi feita por líderes de países europeus. Alguns foram mais além, como Suécia, Grécia e Espanha, e chamaram de volta seus embaixadores em Israel.

No caso da Turquia, a ação de hoje é o argumento perfeito que os líderes do país precisavam para romper definitivamente relações com Israel. Este é o clímax de um desejo que começou a ser explicitado por Ancara no início de 2009, na época da invasão israelense a Gaza. Mas vale citar também que esta é a expressão mais firme da nova política externa turca; com a União Europeia em franco declínio econômico, os turcos se voltaram para o Oriente Médio. A aliança estabelecida com Irã e Síria é evidente. Romper com Israel era apenas uma questão de tempo.

Do ponto de vista iraniano, não há melhor notícia: como não esconde de ninguém, Ahmadinejad pretende riscar Israel do mapa. Certamente, este é um objetivo difícil de ser alcançado. Por isso, nada mais interessante do que assistir de camarote à condenação internacional do Estado Judeu e ao seu isolamento político. Se não é possível destruir Israel fisicamente, torná-lo um pária entre a comunidade das nações é um excelente tira-gosto para Teerã. Melhor: além de levar a Turquia definitivamente para o seu lado, ainda adia o debate sobre sanções no Conselho de Segurança na ONU - agora completamente empenhado em discutir respostas à abordagem à frota humanitária.

Para os palestinos, Netanyahu conseguiu finalmente que Mahmoud Abbas, do Fatah, e Ismayil Hanyieh, do Hamas, concordassem sobre algo. E mais: torna possível a realização da sonhada terceira Intifada – planejada pelos grupos radicais que tomaram Gaza –, além de mobilizar os cerca de 1,4 milhão de árabes cidadãos de Israel, podendo gerar um caos interno inédito dentro das fronteiras do Estado Judeu. Alguém questiona a importância dos acontecimentos do dia de hoje na política do Oriente Médio?

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Envio de soldados para a fronteira provoca polêmica nos EUA

Como mencionei ontem, o momento não é nada positivo para a administração Obama. A imigração é um dos pontos mais delicados que o governo vai enfrentar e também será alvo de grande polêmica. O presidente decidiu, nesta semana, enviar 1,2 mil soldados da Guarda Nacional para os quatro estados do sul que fazem fronteira com o México (na foto ao lado, trecho da barreira que divide EUA e o país latino-americano). Longe de resolver o problema, a medida anunciada mostra algo de relevante nesses 16 meses de mandato: Washington não conseguiu pôr em prática as propostas anunciadas durante a eloquente campanha de 2008. Pelo contrário; a Casa Branca tem apenas reagido aos acontecimentos.

E, por consequência, não há planejamento estratégico aparente. A atuação de cartéis de traficantes mexicanos na região da fronteira é a principal justificativa para o envio das tropas. Mas este argumento não se sustenta, uma vez que houve redução considerável dos índices de criminalidade nos últimos dois anos. Ou seja, resta somente o exame do fluxo de imigrantes ilegais. Mas isso também diminuiu, por conta da crise econômica instalada nos EUA.

É impossível não associar esta decisão de Washington às leis retrógradas aprovadas recentemente pelo estado do Arizona. Para lembrar, a polícia poderá abordar qualquer pessoa suspeita de ser um imigrante ilegal. Se ela não portar documentos capazes de provar o contrário imediatamente, será presa e, posteriormente, deportada. Tal diretriz cria um inevitável clima de caça às bruxas que pode se espalhar para outros Estados americanos.

"A Casa Branca está fazendo a coisa certa. Os moradores do Arizona sabem que mais botas (refere-se aos soldados) no solo significam uma fronteira mais protegida e segura", diz a congressista democrata Gabrielle Giffords. A frase soa de alguma maneira parecida com qualquer discurso de campanha do presidente Obama? Acho que não.

Aliás, a decisão de enviar soldados para a região de fronteira lembra muito medida semelhante tomada pelo antecessor, George W. Bush. O problema é que o voto hispânico foi responsável por boa parte do sucesso eleitoral do atual líder americano. E, se a lei do Arizona se espalhar, seguramente famílias de imigrantes serão separadas. Ninguém sabe ao certo como esta massa de 12 milhões de ilegais poderá reagir.

O momento é tão ruim que o envio do contingente militar conseguiu a façanha de desagradar democratas e republicanos. Para os democratas, a decisão impede que se alcance consenso moderado; para os republicanos, a quantidade de militares anunciada é inferior ao número necessário - o senador John McCain, adversário de Obama na corrida presidencial, defendia que ao menos 6 mil soldados ficassem estacionados na fronteira com o México.

"O presidente insistiu inúmeras vezes que a aplicação das mesmas velhas estratégias da administração anterior deveria ser interrompida. Então por que ele as está repetindo?", diz editorial do Denver Post.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Obama divulga documento em busca de virada positiva

O presidente americano, Barack Obama, enviou ao Congresso nesta quinta-feira um documento de 52 páginas conhecido como National Security Strategy (Estratégia de Segurança Nacional) em que lista não apenas os desafios internos enfrentados pelos EUA, mas também as diretrizes internacionais do país. Curiosamente, a redação da formalidade é uma exigência feita aos presidentes desde 1986. A ideia inicial era que os congressistas recebessem esta espécie de relatório todos os anos. Mas poucos cumpriram. George W. Bush, por exemplo, só divulgou por escrito suas posições duas vezes.

No documento divulgado neste ano, Obama reafirma suas intenções de construir um mundo multipolar. Certamente, este é um momento delicado para tal afirmação. Apesar de ter sido uma das principais características a contribuir para a popularidade mundial do presidente americano, seu governo não tem demonstrado o mesmo empenho prático que evidencie possíveis desejos pessoais de Obama. Um exemplo recente é a discordância ainda mantida com Brasil e Turquia quanto ao acordo alcançado pelos dois países emergentes com o Irã.

Talvez como forma de quebrar o gelo, Ben Rhodes, conselheiro de segurança nacional dos EUA e principal redator do relatório divulgado hoje, diz que as autoridades de Washington estão "profundamente comprometidas em aumentar o círculo de atores responsáveis". Ele lembra também os esforços pessoais de Obama para transformar o G8 em G20, com as participações de China, Índia e Brasil. Parece clara a estratégia diplomática americana de marcar posição em relação aos países emergentes. Ou seja, a Casa Branca reconhece que a ordem mundial mudou, mas estabelece limites para as ambições desses novos atores globais.
Um dos pontos do documento examina exatamente esta questão. "Da mesma maneira como foi feito após a Segunda Guerra Mundial, os EUA devem, hoje, moldar um novo sistema de instituições globais capazes de refletir a realidade do século 21 na qual a grandeza americana não está garantida", escreve.

Questões caras ao atual presidente também estão contempladas, como o combate à proliferação nuclear e a preocupação com as mudanças climáticas. Não duvido que esses temas sejam de real interesse de Obama, mas acredito que sua gestão tem sido marcada por uma tremenda falta de sorte.

Quem poderia prever o desastre do vazamento de óleo no Golfo do México? Quem poderia imaginar o desgaste político com Israel? Quem poderia imaginar que cairia no colo do presidente americano a maior crise entre as Coreias desde o final da guerra, em 1953? E a aprovação da lei anti-imigração mais polêmica dos últimos tempos no Arizona?

A divulgação do National Security Strategy é uma tentativa de virar este jogo com placar altamente desfavorável. Apesar de uma leve melhora nos índices de aprovação da gestão Obama (48%, bem longe dos quase 80% do momento seguinte à posse, há 16 meses), o presidente não pode se dar ao luxo de perder a impressão positiva interna e externa de ser o porta-voz da mudança planetária. Se isso acontecer, ele terá sido somente uma imagem arranhada e passageira do que diz representar e, pior de tudo, com apenas um mandato de duração.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Crise das Coreias coloca China na berlinda

O desgaste em curso entre as Coreias causa temor. Kim Jong-il já deixou claro que não irá se render a ameaças e sanções internacionais. Não acredito, no entanto, que os Estados Unidos realmente tenham intenção de abrir mais uma frente de batalha, desta vez no extremo oriente. Não há dinheiro, material humano e, menos ainda, aprovação da opinião pública americana para tal empreendimento. O que se vê hoje é o fenômeno da corte internacional à China. De todas as partes envolvidas. Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão viram na crise atual a oportunidade de chamar os chineses às discussões que lhe interessam.

E, talvez, este seja o ponto mais importante da questão. Beijing se comporta de forma um tanto parecida com Moscou. Da mesma maneira que a Rússia critica o Irã, mas provê tecnologia para as instalações nucleares da república islâmica, a China mantém relações comerciais com os norte-coreanos. Pode não ser muito se comparado a outros dados econômicos, mas o comércio com Pyongyang está na casa dos 3 bilhões de dólares anuais. Levando-se em consideração que o regime é extremamente fechado, vale citar que o comércio com a China representa 42% do total do país.

E agora, com essa crise, EUA, Japão e Coreia do Sul querem que a China se posicione. Ao contrário do exigido dos russos, há uma grande pressão para que os chineses adotem algumas medidas consideradas importantes por esses países: a condenação do ataque cometido pelos norte-coreanos ao navio militar sul-coreano em março passado (a posição oficial de Beijing foi apenas de classificar o ataque como um infortúnio) é uma delas. Ou melhor, a mais importante, uma vez que parte significativa da política externa chinesa é a manutenção da ambiguidade com parceiros controversos – os russos fazem isso com mais discrição.

Obama vê este momento como uma oportunidade para questionar a China sobre suas reais intenções internacionais. Seria apenas o início do processo para discutir outras práticas que incomodam bastante os americanos; a pirataria, por exemplo.

A Coreia do Sul, aliada dos EUA, atua de forma fundamental neste jogo de interesses pragmáticos. Sem a menor dúvida, vai colocar sobre a mesa os 200 bilhões de dólares de negócios anuais que mantêm com o país. Para completar, o Japão vai questionar a legitimidade do próprio programa nuclear chinês – apesar de a China ter aderido ao Tratado de Não-Proliferação (TNP), em 1992.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Brasil e Turquia obrigam potências a mudar seus conceitos

A divulgação da carta enviada por Barack Obama para Lula pegou muito mal para os Estados Unidos. Na prática, é como se ficasse exposto que Washington entregara a corda para o Itamaraty se enforcar. O problema é que a repercussão de que o Brasil foi incentivado pelos americanos a negociar com Teerã é a única resposta possível da diplomacia brasileira. E aí sobram voluntários do governo Obama para tentar amenizar a situação. O fato é que Brasil e Turquia não poderão ser simplesmente ignorados pela comunidade internacional a partir da discordância em torno da questão nuclear iraniana. Como escrevi anteriormente, esta é uma situação totalmente nova. Por consequência, os atores globais ainda patinam sem saber ao certo como agir.

Brasil e Turquia agiram incentivados pela perspectiva da multipolaridade que Barack Obama dizia representar. O caso da Turquia ainda é mais simbólico. Foi no parlamento do país que o presidente americano fez um de seus mais importantes discursos conciliatórios com o mundo muçulmano, em abril do ano passado.

A situação de embate entre as potências e Brasil e Turquia é muito nova porque ainda paira um tanto de desconhecimento quanto à nova ordem global. Se no século vinte os interesses econômicos e ideológicos bastavam para classificar grupos distintos, hoje há uma diversidade de impressões e conceitos que termina por dificultar a simples aplicação de "etiquetas" internacionais.

Brasil e Turquia são exemplos clássicos. A política externa brasileira é independente. O país se relaciona com grande diversidade de atores internacionais. E, ao mesmo tempo em que busca seus interesses de forma pragmática, tem se colocado como porta-voz de nações menos pujantes no cenário. Lula não cansa de repetir que o governo brasileiro quer reequilibrar as relações internacionais. Essas forças aparentemente ambíguas impulsionaram a atuação mundial de Brasília.

A Turquia segue caminho parecido, muito embora o primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan (na foto, ao lado de Lula), apresente mais traços ideológicos do que Lula. O partido governista AKP tem origem islâmica, característica muito distinta da política brasileira. De qualquer forma, no entanto, Ancara participa de organismos multilaterais importantes, como a Otan (a aliança militar ocidental da qual é membro desde 1952), e, por pior que tenha sido nos últimos anos, ainda mantém relações diplomáticas com Israel, por exemplo. O país é candidato a aderir à União Europeia, além de representar atualmente a 20ª economia mundial e ostentar significativa população de 74 milhões de habitantes.

Brasil e Turquia representam hoje uma grande novidade internacional. Tanto que a atuação dos dois países na mediação do acordo com o Irã deu um nó nos conceitos estabelecidos das potências ocidentais. Como ignorar essa nova aliança? Ou melhor, como continuar a negar este novo mundo que ambos representam? Essas são perguntas que os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU têm feito desde a última semana.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

EUA pedem punições à Coreia do Norte. E Irã sonha em se transformar numa Coreia do Norte

A semana termina com mais um fato perigoso envolvendo as relações entre americanos e países que o antecessor de Obama chamou de "Eixo do Mal". Agora, após a subida de tom entre norte-coreanos e sul-coreanos, Hillary Clinton declarou que Pyongyang poderá enfrentar consequências por ter afundado um navio militar da Coreia do Sul em março passado. O ataque deixou 46 marinheiros mortos e fez a comunidade internacional voltar os olhos novamente para o regime de Kim Jong-il (no centro da foto).

O governo americano está certo ao afirmar que o ataque deliberado deve ser punido. Mas a pergunta é: que punições seriam capazes de amedrontar os norte-coreanos? Vale lembrar que o país abandonou as negociações sobre seu programa nuclear em maio de 2009. Um ano depois, o que mudou? Absolutamente nada. A Coreia do Norte não parece estar nem aí. Nenhum dos países ocidentais está disposto a dar o primeiro passo na direção da única e contundente punição capaz de assustar realmente Pyongyang. Como os norte-coreanos sabem disso, permanecem com o mesmo comportamento de sempre.
Interessante notar que a abordagem americana acontece na mesma semana que Washington anuncia a intenção de finalmente aprovar as sanções ao Irã. Como escrevi algumas vezes, não é este pacote de medidas punitivas que será capaz de enfraquecer ou interromper o programa nuclear iraniano. Muito pelo contrário. Sempre sustentei a tese de que o objetivo de Khamenei e Ahmadinejad é fechar mais ainda o regime. Nada melhor do que encontrar um inimigo externo como desculpa para medidas ainda mais restritivas à imprensa e à oposição. Basta ver o tratamento dispensado aos cineastas iranianos. Nada é por acaso.
Ou EUA estão dando um presente para os aiatolás. A oposição interna iraniana vai ficar ainda mais enfraquecida. Com o discurso oficial de que há um complô mundial contra o país - discurso apoiado pelas sanções - , as vozes dissonantes tendem a diminuir. O programa nuclear vai se tornar motivo de orgulho nacional; apoiá-lo vai ser quase um exercício de cidadania. E aí o Irã vai estar relegado ao mesmo destino da Coreia do Norte. Mas localizado numa das regiões mais instáveis do planeta e às vésperas de alcançar autonomia atômica.
Ao assistir ao choque frontal de Brasil e Turquia com as demais potências mundiais, Ahmadinejad alcança o melhor dos mundos: tem a desculpa que queria para demonizar o ocidente e calar a oposição, ao mesmo tempo em que conta com ao menos dois aliados para furar as sanções que estão por vir. Não por acaso comentei que, além do acordo sobre a troca de urânio, o governo brasileiro anunciou uma linha de crédito para incentivar exportações de alimentos brasileiros e também um tratado para o desenvolvimento da indústria petrolífera iraniana.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Barack Obama perde com polêmica. Rússia reage a partir de interesses comerciais

Todo este imbróglio ainda em curso envolvendo as novas sanções ao Irã prejudica os EUA. Para ser mais específico, é ruim para Barack Obama. No final das contas, a imagem que vinha tentando construir como líder de um novo mundo multilateral ficou arranhada. Talvez por isso seja de Hillary Clinton a missão de anunciar os passos tomados pelo governo americano. É ela também quem está a frente de processos como a adoção de medidas unilaterais da Casa Branca. Penso que o Brasil não se saiu mal de tudo isso: tentou negociar, conseguiu um acordo onde as grandes potências já haviam falhado e, agora, termina como o "marido traído" da situação. Se este cenário obviamente não é o ideal, ao mesmo tempo não compromete os esforços do Itamaraty.

Importante saber agora quais serão as consequências no rumo da política externa brasileira. Por mais que o desgaste com os EUA seja claro, é inteligente manter o pragmatismo. Tentar adotar atitudes reativas a europeus e americanos é besteira. Quem mais perde é o Brasil. Já está claro que o país representa hoje uma liderança regional inquestionável e um ator internacional de peso. São ganhos expressivos. A vaga para o Conselho de Segurança da ONU virá em algum momento.
Um ponto que considero importante é o papel russo nisso tudo. Na véspera da viagem a Teerã, Lula se reuniu com o presidente Dmitri Medvedev, que em nenhum momento avisou que estaria disposto a furar qualquer resultado alcançado entre turcos, brasileiros e iranianos. A Rússia mantém uma postura profundamente ambígua em suas relações internacionais. Não haveria por que ser diferente em relação ao Brasil e suas ambições geopolíticas. E Moscou continua a atuar desta maneira.
Mesmo após concordar com as sanções capitaneadas pelos EUA, o ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, disse a Hillary Clinton estar comprometido com as punições "a princípio" somente. Segundo ele, o acordo alcançado por Brasil e Turquia deixaria claro o desafio da comunidade internacional de lançar um "novo olhar" sobre o impasse iraniano. Ou seja, Moscou permanece em cima do muro. E, como se sabe, este tipo de postura costuma esconder uma grande possibilidade de os russos seguirem um caminho descompromissado com qualquer um dos lados.
O problema para o Brasil é que a Rússia é um dos vértices dos BRICs. O Itamaraty tem o Kremlin em alta conta em suas pretensões geopolíticas. E tomar uma punhalada de um parceiro é muito pior do que ser traído por um adversário. Ainda mais se o país em questão é considerado pela diplomacia brasileira como um dos principais agentes capazes de apoiar Brasília em questões de relevância mundial. Como se viu agora, os russos não pensam da mesma forma.
Joe Klein, da revista Time, apresenta uma explicação para este comportamento em relação à questão iraniana. Para ele, Moscou deu mais um exemplo de sua política baseada no potencial energético do país. Quando contrariados, os russos reagem levando em conta somente os prejuízos que podem sofrer nesta área.
"Os russos não ficaram satisfeitos quando souberam pelos americanos que os iranianos estavam construindo uma usina nuclear secreta em Qum. Eles ficaram ainda mais insatisfeitos quando as autoridades iranianas disseram estar mais confortáveis para enviar seu urânio para a Turquia, não para a Rússia. Isso tudo alimentou suspeitas de que Irã e Turquia poderiam planejar um acordo para a construção de um gasoduto que levasse gás natural de Irã e Turcomenistão para a Europa através da Turquia, o que poderia quebrar o monopólio russo", escreve.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Por incrível que pareça, Irã é o primeiro a ganhar com polêmicas sobre acordo

A sucessão de acontecimentos ocorridos após o anúncio do acordo mediado por Brasil e Turquia com o Irã mostra um mundo em transformação. Fica claro agora o embate entre três líderes regionais importantes: a Turquia, no Oriente Médio, e Brasil e EUA nas Américas. Com a ascensão geopolítica brasileira, o impasse envolvendo a questão iraniana mostra uma briga por acomodação internacional.

Quem ganha com isso é o Irã. Pelo menos num primeiro momento. O "fato novo", conforme definição que vem sendo usada pela diplomacia brasileira, põe Washington e Brasília em rota de colisão. A polarização da América Latina é o cenário ideal para Teerã – já apoiada por países da região abertamente em confronto com os americanos, casos de Venezuela e Bolívia.
Mais ainda, cria um racha entre os membros do Conselho de Segurança da ONU. Os permanentes aparentemente estão fechados com o rascunho apresentado pelos EUA. Mas, para a resolução ser aprovada, é preciso também aprovação de ao menos nove dos 15 membros - rotativos e permanentes. E aí é que a situação se complica para Washington. Os países que ocupam atualmente os assentos não-permanentes são Brasil, Turquia, Áustria, Gabão, Bósnia e Herzegovina, Líbano, México, Nigéria, Uganda e Japão.
A aprovação pode não ser fácil. Se a China furar, o texto não passa. Se topar, além dos cinco membros-permanentes, será preciso também contar com ao menos quatro votos dos rotativos. Brasil e Turquia certamente serão contrários. Bósnia e Herzegovina, Líbano e Nigéria devem seguir o mesmo caminho. Restam Áustria, México, Japão, Gabão e Uganda. Desses cinco, quatro precisam ser convencidos pelos EUA. Se o México quiser se aproximar regionalmente do Brasil, será contrário. Se pesar na balança sua relação comercial com os americanos, irá apoiá-los. O fato é que o jogo permanece totalmente aberto.
Por ora, no entanto, quem mais colheu frutos foi o Irã. Além de deixar a impressão de estar em busca de "medidas para o estabelecimento de confiança mútua" (palavras de Sharon Squassoni, diretor do Center for Strategic and International Studied, de Washington), desestabilizou o Conselho de Segurança da ONU e causou enorme desconforto nas relações americano-brasileiras - que vinham sendo incrementadas, apesar das discordâncias, e mereceram inclusive a assinatura de um acordo militar, em abril.
Com a reação americana ao acordo, o Irã conseguiu polarizar os países do Conselho a partir de um pressuposto maniqueísta: os pró-americanos e os antiamericanos. Indiretamente, o próprio governo de Washington acabou contribuindo para o renascimento de um dilema típico de seus inimigos e que parecia ultrapassado a partir da eleição de Obama. Enquanto isso, Ahmadinejad ganhou ao menos dois defensores árduos: Brasil e Turquia, países que apostaram alto, mas ainda não puderam colher os frutos positivos da tentativa de exercer papel mais relevante no cenário internacional. Por ora, só receberam os golpes de potências reativas frente à possibilidade de uma maior divisão do poder.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Alguns motivos que levaram as potências a renegar o acordo mediado por Brasil e Turquia

É natural a desconfiança em relação ao Irã. O país já avançou e recuou nas negociações sobre seu programa nuclear outras tantas vezes. Mas o mérito do Brasil é inegável. Junto com a Turquia, o governo brasileiro simplesmente adaptou, aumentou e reduziu exigências no acordo proposto em outubro do ano passado por França e Rússia, com o consentimento da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). É por isso que o processo é chamado de negociação e por conta disso também houve uma série de conversações entre as partes envolvidas. Acho importante ressaltar que o Brasil fez o que estava a seu alcance.

As críticas das potências ocidentais são compreensíveis. Por motivos distintos. Em primeiro lugar, a ambição nuclear iraniana não é mesmo positiva. Até porque o país construiu usinas secretas para enriquecimento de urânio e impediu a visita de funcionários da AIEA a suas instalações. Por outro lado, creio que a frieza com que os governos de EUA e países membros da UE receberam o acordo firmado com a ajuda de Turquia e Brasil tem outra explicação: a competência brasileira em negociar com os iranianos pode ser interpretada também como um fracasso da diplomacia de americanos e europeus. Tal raciocínio pode levar a outro; a reforma do Conselho da ONU, uma vez que seus membros permanentes não conseguiram ser bem sucedidos ao abordar o Irã.

Por mais que seja claro para mim que Irã, Brasil e Turquia tenham firmado uma parceria estratégica onde cada um deles é atendido em seus objetivos internacionais - como escrevi ontem -, a percepção da opinião pública mundial poderia ser outra. E aí pegaria muito mal para o grupo de países que vem tentando sem sucesso levar Ahmadinejad à mesa de negociações. A situação fica ainda pior para Barack Obama, há um ano e quatro meses em busca de um acordo com os iranianos. Seus esforços têm sido infrutíferos até agora e não há sinais de que Ahmadinejad deve ceder a seus pedidos.

Agora, a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, informa que as potências ocidentais chegaram a um acordo sobre novas sanções ao Irã. O texto tem aprovação inclusive de Rússia e China, países que sempre se mostraram menos dispostos a aderir à posição americana. O fato gera um constrangimento com Brasil e Turquia, uma vez que deixa claro que seus esforços foram inúteis, segundo a interpretação de Washington.

A aprovação das sanções no dia seguinte ao anúncio do acordo mostra também que o único resultado possível das conversações seria Lula deixar Teerã com a promessa iraniana de interromper seu programa nuclear. E aí não se trata de negociação. Mas, sim, de esperar um sucesso absolutamente distante da realidade do quadro que tem se apresentado. Brasil e Turquia deram um passo importante, e o resultado mexeu com as estruturas internacionais. A tal ponto que as potências decidiram se antecipar como forma de manter o status-quo geopolítico.

Na prática, no entanto, as sanções não conseguiram evitar que o Irã iniciasse seu programa nuclear. Desde 1995, o país é atingido por medidas desta natureza. Ou seja, nada garante que novas sanções sejam capazes de interromper o projeto atômico de Khamenei-Ahmadinejad. Como ninguém se mostra disposto por ora a atacar militarmente as usinas da república islâmica, as potências vão precisar dar explicações mais claras para a tomada de tal decisão.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Brasil, Irã e Turquia aplicam ippon na comunidade internacional

Alguém realmente acreditava que Lula iria percorrer meio mundo para sair sem um acordo com o Irã? Não acredito em tanta ingenuidade. Muito possivelmente, a aceitação da proposta de Brasil e Turquia para o impasse envolvendo o enriquecimento de urânio iraniano já vinha sendo costurada há meses. A primeira rodada de negociações pode ter acontecido em novembro do ano passado, quando Mahmoud Ahmadinejad esteve em Brasília.

Agora, o planeta é comunicado de que Lula e Recep Tayyip Erdogan conseguiram que Ahmadinejad concordasse com o envio de urânio de baixo enriquecimento para a Turquia. Não é por acaso que o acordo foi selado justamente com dois países emergentes membros não-permanentes do Conselho de Segurança da ONU. O trio está fechado e disposto a obter vantagens para todos. O anúncio de hoje é uma prova da política ganha-ganha travada entre Brasil e Irã. Como sustento há bastante tempo, a simbiose alimenta a vitória dos dois a partir da percepção de que as vantagens obtidas podem ser costuradas por eles mesmos desde que seus passos sejam satisfatórios às aspirações da comunidade internacional.

Explico: a ansiedade demonstrada com o programa nuclear iraniano só seria amenizada a partir de um acordo deste tipo. Se o Irã aceitasse a proposta dos países desenvolvidos - a mesma feita por Brasil e Turquia -, o mérito seria dos mesmos atores de sempre. E, além do mais, Teerã não obteria qualquer vantagem com isso. Mas, ao fechar com Brasil e Turquia, Ahmadinejad se alia a dois parceiros que precisam de ganhos como esses, que só o Irã pode proporcionar. Além do mais, ao oferecer uma vitória inestimável ao Brasil, Ahmadinejad garante parceiros que poderão sustentá-lo no caso de as potências ocidentais insistirem numa nova rodada de sanções - o que, segundo as primeiras repercussões, deverá acontecer.

Não por acaso também, além do acordo envolvendo o urânio iraniano, o Brasil anunciou duas medidas importantíssimas para a sobrevivência do Irã em caso de novas sanções: uma linha de crédito no valor de 1 bilhão de euros para empresas brasileiras exportarem alimentos para a república islâmica; e a participação de empresas brasileiras na modernização da indústria petrolífera iraniana. Vale lembrar que o Irã não possui capacidade de refino de petróleo. E muitos dos que defendem um boicote à economia iraniana argumentam que este é um dos pontos fracos do país. Agora, o Irã consegue, graças ao Brasil, cercar algumas de suas fragilidades mais fundamentais: combustível e alimentos.

Do ponto de vista do Brasil, os ganhos são facilmente percebidos. Como já é conhecido, o objetivo do Itamaraty é credenciar o país a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. Ao se envolver com sucesso no impasse ocidental com o Irã, Brasília não apenas exerce papel de protagonista num dos principais focos de perturbação mundial, como imobiliza os atores que defendem a manutenção do status-quo internacional: se a atuação brasileira não é reconhecida pelas Nações Unidas, logo a instituição precisa de reformas urgentes sob o risco de não representar a realidade das novas relações internacionais.

Sem a menor dúvida, o Irã também vai aproveitar para ganhar tempo. Até porque a logística para pôr o acordo em prática é complicadíssima. Além do mais, a Turquia não tem capacidade tecnológica para enriquecer o urânio que os iranianos enviarão. Ou seja, será preciso encontrar outro país para novas negociações. O anúncio de hoje também está longe de resolver o impasse nuclear. Mas é inegável que Brasil e Turquia conseguiram mais avanços que as potências ocidentais. Para Lula, é uma vitória ainda maior. Em seu último ano de mandato e a cinco meses das eleições presidenciais, ele conseguiu o que mais queria: transformar o sucesso com os iranianos num último ato repleto de simbolismo da nova política externa que conseguiu implantar no Brasil.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Recuo estratégico americano

Na expectativa do início da visita de Lula ao Irã, reafirmo: a ausência americana no Oriente Médio deixa espaço para novos atores. Rússia, Brasil e Turquia são ótimos exemplos de países interessados em usar todo o potencial conflituoso da região para alavancar seu poderio internacional. Mas, talvez os EUA mais uma vez tenham optado por um recuo estratégico; uma mudança de postura em relação ao mundo muçulmano, mais especificamente, declarada no discurso de Obama no Cairo, em junho de 2009. Curiosamente, agora, um ano após este evento marcante, Washington vive seu maior momento de pressão em sua não-relação com o Irã.

Para Robin Niblett, diretor do centro privado de análise de Chatham House, de Londres, a política de engajamento - como tem sido chamada a doutrina externa promovida por Barack Obama - é inteligente e muda o posicionamento americano mesmo em relação a seus inimigos.

"Muda a dinâmica da política externa dos Estados Unidos, mesmo que não consiga atingir resultados imediatos e específicos. Ao tentar abrir discussões bilaterais com o Irã, (Obama) não foi capaz de mudar o comportamento iraniano, mas aumentou a boa vontade europeia para apoiar sanções mais sérias", diz em entrevista à BBC.

Ou seja, na prática, a atuação americana seria muito parecida à brasileira. Vale lembrar que Washington ofereceu todas as chances de diálogo a Ahmadinejad. A opção por sanções acabou sendo a única restante - se descartarmos uma ação militar que, segundo as próprias autoridades dos EUA, ainda permanece sobre a mesa. A visita de Lula a Teerã segue mais ou menos a mesma linha, na medida em que o presidente brasileiro não cansa de repetir que espera conseguir da liderança iraniana garantias dos objetivos pacíficos de seu programa nuclear.

Pode ser uma prerrogativa equivocada, mas o discurso do Itamaraty não desconsidera a possibilidade de o Brasil vir a se colocar ao lado de EUA e União Europeia na aplicação de novas sanções ao Irã. Para isso, bastaria que Lula não conseguisse extrair de Ahmadinejad as tais garantias quanto a seu programa nuclear. Como acho que o presidente brasileiro não toparia ir a Teerã para provar que sua linha de raciocínio esteve errada durante todo este tempo, creio que inevitavelmente algum acordo capaz de satisfazer as ansiedades mundiais será anunciado neste final de semana.

Os EUA vão assistir de camarote aos acontecimentos. Seguramente irão intervir quando acharem que novamente suas expectativas não foram correspondidas. Por ora, no entanto, a diplomacia de engajamento americano dá conta apenas de recuar e assumir a postura low-profile que os próprios inimigos do país reivindicaram principalmente durante o governo Bush. Ao mesmo tempo, sua atuação internacional - exceção feita às guerras de Iraque e Afeganistão, fatos consumados anteriormente à posse de Obama - acontece cada vez mais em esferas menos formais, vamos dizer assim. Ou seja, reafirma slogans marcantes do discurso do presidente americano no Cairo: "Respeito mútuo, interesses mútuos e responsabilidade mútua".

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Aliança entre Rússia e Turquia promete movimentar o Oriente Médio

O Oriente Médio não tem sido foco de interesse nas últimas semanas. No entanto, isso não significa a ausência de movimentação por lá. Muito pelo contrário. Apesar de os Estados Unidos demonstrarem menos empenho do que se costuma ver, os países têm se movimentado em busca de alianças, empreendimentos econômicos e políticos e influência. O Brasil é um desses casos. Muito embora os resultados das intensas comunicações diplomáticas com o Irã só devem ser conhecidos a partir de sábado. A Rússia é um dos atores mais agressivos, deixando claro que pretende preencher o vácuo deixado pelos americanos nesses últimos tempos.

Passou despercebido, mas Moscou deu um passo grandioso em sua busca por protagonismo na região. Nesta semana, o presidente, Dmitry Medvedev (na foto com o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan), esteve na Turquia, onde assinou 17 acordos com o governo de Ancara. Voltado principalmente para a área energética – a ponta-de-lança da política externa russa – ficou acordada a participação do Kremlin na construção da primeira usina nuclear turca. Ou seja, se alguém ainda duvidava desta possibilidade, é mais um passo para a realização da temida corrida atômica numa das regiões mais instáveis do planeta.

Como se sabe – e como tenho repetido neste espaço ao longo dos últimos seis meses –, o governo turco não faz qualquer questão de esconder que está cada vez mais alinhado ao Irã. E isso tem sido tema também de protestos dos militantes pela manutenção do caráter laico do Estado. Coincidência ou não, as mudanças propostas pelo atual governo turco sugerem um maior controle estatal de fóruns anteriormente regidos pela sociedade civil e laica. Coincidência ou não, o partido do governo tem fortes tendências islâmicas e a sempre controversa relação entre religião e política é colocada em pauta mais uma vez. Como não credito tais articulações somente ao acaso, acho que a possibilidade de a Turquia seguir o mesmo rumo do Irã num futuro próximo não é impossível.

Ao se alinhar aos turcos, a Rússia pretende se beneficiar duas vezes com um único gesto político: mostra disponibilidade para atuar junto a esta coligação turca, iraniana e síria; e deixa claro estar disposta a não esquecer sua extinta zona de influência entre as ex-repúblicas soviéticas. Por isso, um dos assuntos abordados foi justamente o conflito no Cáucaso em torno de Nagorno-Karabakh, região disputada justamente entre Azerbaijão (ex-república apoiada pela Turquia) e Armênia (cuja relação com a Turquia é a pior possível, não é preciso ser dito).

Para completar, a Rússia acena com a possibilidade de construir um oleoduto ligando o Mar Negro ao Mediterrâneo turco. Não custa lembrar que a presença russa no Mar Negro foi garantida graças ao desconto de 30% concedido à Ucrânia, no último mês de abril, na compra de gás. Os russos permanecerão com sua base em território ucraniano pelo menos até 2042. E certamente darão mais passos ousados rumo à polarização do Oriente Médio.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Desafios dos novos líderes da Grã-Bretanha

É o primeiro governo conservador na Grã-Bretanha em 13 anos. É o primeiro governo de coalizão desde a Segunda Guerra Mundial. Em tempos difíceis na Europa, a dupla David Cameron-Nick Clegg (foto) já anunciou uma série de intenções de mudança no primeiro pronunciamento desde que conservadores e liberais democratas aceitaram a união em nome da governabilidade. O processo de alternância de poder foi rápido, algo que, por si só, já é bastante positivo. Deixar o país entregue a uma longa disputa de poder neste momento seria uma tragédia.

A agenda apresentada por Cameron e Clegg mostra disposição de atenuar a confusão política ressaltada por este processo eleitoral que se encerra. A intenção é mudar o sistema e estabelecer nova votação em maio de 2015, alterando o atual regime em que o primeiro-ministro tem poderes para convocar eleições a qualquer momento. Acho que só este gesto serve para tranquilizar bastante a opinião pública, já que ficou muito claro o descontentamento com a imprevisibilidade política que poderia ter sido agravada por um vácuo de poder prolongado durante período de tempo indeterminado.

Há, no entanto, previsões de tempos difíceis para o país. Conforme informação da edição de hoje do New York Times, a taxa de desemprego atingiu a marca de 2,5 milhões de pessoas, a maior já registrada. Além disso, o governo produziu um buraco de 240 bilhões de dólares em sua conta anual. Some-se a isso tudo a recessão europeia em curso, e está formado o cenário catastrófico. Um enorme problema cuja resolução caberá a Cameron e Clegg.

E isso sem levar em conta que a articulação política vitoriosa não é unanimidade entre os eleitores. Não é preciso muito esforço para diagnosticar possíveis reações populares com o aperto de gastos para frear o crescente déficit fiscal britânico. Aliás, hoje mesmo, durante o pronunciamento, Cameron deixou claro que a população vai precisar fazer esforços para contornar a crise. Acredito, no entanto, que eventuais protestos na Grã-Bretanha não se aproximem do caos instalado na Grécia, por exemplo. E não apenas por questões culturais, mas porque a economia britânica é bem mais sólida e complexa que a grega.
Há visões distintas sobre as possibilidades oferecidas pela aliança entre conservadores e liberais-democratas. Enquanto o Guardian é otimista e acredita que os lib-dems poderão amenizar o conservadorismo de Cameron, o Independent lembra que os eleitores não apoiaram Nick Clegg na esperança de que ele viesse simplesmente a sustentar uma coalizão liderada pelos conservadores. Acho que ambos os raciocínios se complementam e não necessariamente são excludentes

terça-feira, 11 de maio de 2010

Projeto europeu atravessa seu pior momento

Há algo muito além da crise econômica nos países europeus mediterrâneos e na Irlanda. Com a Alemanha finalmente tomando a frente do concerto de nações envolvidas em ajudar principalmente os gregos, a natureza da União Europeia corre sérios riscos. Tudo isso porque os eleitores alemães deixaram claro que não estão dispostos a pagar para resgatar as economias mais fracas do bloco. E isso pode mudar tudo.

A questão é interessante porque mistura uma série de fatores: economia, nacionalismo, identidade e senso de pertencimento. O recado recebido pela chanceler alemã, Angela Merkel, veio das urnas e tão logo seu gabinete aprovou o pacote de quase 1 trilhão de dólares a serem destinado à Grécia: seu partido, o Democrata-Cristão, teve o pior desempenho nas eleições locais desde a Segunda Guerra Mundial. E justamente na Renânia do Norte-Vestfália, o maior estado alemão.

A situação de descontentamento não é exclusiva da população alemã, mas um consenso generalizado entre os membros da UE menos atingidos pela crise. Na prática, a mensagem é bem simples e direta: os eleitores das economias que sustentam o bloco não legitimam que seus líderes transfiram parte de sua riqueza para os países em dificuldades. O momento oferece uma oportunidade única – e que certamente será desperdiçada – para analisar dois processos que correram paralelamente e nunca se encontraram: a união política dos Estados da UE não foi capaz de, num curto espaço de tempo, criar a mentalidade em seus habitantes de que eles compartilham um destino comum.

Assim, agora simplesmente está muito claro que alemães e holandeses não acreditam que o estado de caos e falência grega seja algo com que a Alemanha ou a Holanda devam se preocupar. É basicamente isso que George Friedman, fundador do Stratfor, apresenta em artigo publicado hoje. Um texto perfeito, diga-se de passagem.

"Na fundação do projeto europeu estava a ideia de que essas nações poderiam ser transformadas num único regime econômico e que este poderia amadurecer e se transformar numa única entidade política.(...) A história europeia desde a Revolução Francesa mostra a resistência do conceito de Estado-nação. Tanto a Alemanha Nazista e União Soviética tentaram criar Estados multinacionais dominados por um único ator. Ambas as tentativas falharam e se tornaram odiadas por isso", escreve.

Ou seja, se colocar em prática o regime supranacional em áreas como Defesa e Política Externa já causava resistência – vale lembrar a enorme rejeição à simples ratificação do Tratado de Lisboa, assunto já amplamente discutido aqui no blog –, imagine quando a UE passa a representar prejuízo e desfalque nas economias mais fortes do bloco? Acho mesmo que o futuro europeu passa pela superação da crise nos chamados PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha, na sigla em inglês) e de como os descontentamentos internos e as repercussões políticas vão ser administradas daqui para frente.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O próximo provável primeiro-ministro britânico

O Partido Trabalhista britânico levou uma lavada nas urnas. Apesar disso, no entanto, a situação continua indefinida. A enorme complexidade no Reino Unido mostra como processos eleitorais esquizofrênicos acabam por prejudicar o que se pretende ser uma democracia. O caso está longe de ser isolado. Vale lembrar, por exemplo, o resultado das urnas israelenses, em 2009, quando Tzipi Livni venceu Benjamin Netanyahu por uma pequena margem de votos, conseguiu mais cadeiras no parlamento, mas, mesmo assim, acabou perdendo o cargo.

Grã-Bretanha, Israel e Bélgica são exemplos de sistemas eleitorais que precisam ser modificados. Os eleitores terminam mesmo por se tornar meros coadjuvantes do processo político. No caso do atual imbróglio britânico, fica evidente a rejeição ao modelo apresentado pelos trabalhistas, neste momento, e, mais especificamente, ao primeiro-ministro, Gordon Brown – que anunciou hoje que não será mais o líder do partido.

Apesar da insistência de Brown de brigar pelo cargo, as urnas deixaram um gosto amargo. Foi o segundo pior desempenho eleitoral de seu partido desde 1918. Mesmo com vitórias em Escócia e País de Gales, a legenda foi massacrada na Inglaterra, onde os conservadores receberam 40% dos votos. O sistema de divisão de poder é tão pouco representativo que os trabalhistas ficaram com 191 assentos.

Editorial do Telegraph de hoje mostra o descontentamento de parte do eleitorado. Afinal, por trás das intricadas articulações políticas, é incontestável o resultado do pleito. Se o líder conservador, David Cameron (foto), não se tornar o próximo primeiro-ministro, ninguém sabe se a população vai dar legitimidade ao futuro governo.

"A única perspectiva realista de um governo estável é oferecida pelo partido que assegurou o maior número de votos e assentos no parlamento, os conservadores. Seria intolerável ao eleitorado se o mais popular entre os três principais partidos fosse o único a ficar excluído do poder no final deste processo", escreve.

Mas Cameron possivelmente vai conseguir levar os liberais-democratas para o seu lado. A terceira força emergente das urnas é cortejada pelos dois maiores partidos britânicos. No entanto, é menos artificial uma aliança entre liberais-democratas e conservadores do que entre liberais-democratas e trabalhistas. Julian Glover, do Guardian, explica bem a situação:

"Ambos os líderes acreditam na primazia do indivíduo, não do governo. As conversas (entre Clegg e Cameron) realizadas neste final de semana não foram entre duas equipes à espreita uma da outra, como cães em alerta, mas entre pessoas com pensamentos afins à espera de concretizar um acordo que funcione", diz.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

As duas faces do pragmatismo brasileiro

O chanceler francês, Bernard Kouchner (foto), deu entrevista ao Globo de hoje afirmando temer que o presidente Lula seja enrolado pelo Irã. A declaração da autoridade francesa soa um tanto ultrapassada. Não pela crítica ao líder brasileiro, mas por crer na existência de atores incautos no cenário atual. Como escrevi algumas vezes, inclusive ontem, acredito mais no voluntarismo brasileiro em sua relação com os iranianos. Tendo o cuidado de me isentar por ora no juízo de valor quanto à velha tática de Ahmadinejad de embromar para ganhar tempo – o que ele faz desde sempre quando se trata de seu programa nuclear –, a verdade é uma só: o Brasil optou neste momento por esticar a corda ao máximo em relação à aprovação das sanções a Teerã.

Curiosamente, Kouchner não foi capaz de fazer esta avaliação. Aliás, tenho certeza de que fez, mas preferiu não expor o que Paris pensa de verdade. Não há ingênuos nas relações internacionais. Muito menos o Brasil, país que conseguiu em apenas oito anos passar de figurante a protagonista. Talvez, de certa maneira, haja um tanto de nostalgia da parte do chanceler francês, como alguém que sonha com o velho e acabado mundo onde o norte decidia e o sul era apenas informado. Vale dizer que, após a declaração, ele emendou afirmando que "França e Brasil são países que se amam" (seja lá o que isso signifique).

Apenas para relembrar, Lula e Ahmadinejad se encontram em Teerã em pouco mais de uma semana. Até lá, o Itamaraty optou por manter a política de não se posicionar ao lado de França, Grã-Bretanha e Estados Unidos pela aprovação de mais sanções ao Irã. É uma forma de manter o protagonismo internacional e, quem sabe, aumentar o suspense para eventuais surpresas sobre o resultado das conversas no Irã – essas já, sem dúvida, devidamente combinadas com o regime islâmico.

Acho que a política externa brasileira pode ser traída somente pela crescente radicalização da República Islâmica e de seus aliados. Este não é um cenário improvável, muito pelo contrário. Desde a controversa reeleição de Ahmadinejad, em junho passado, os iranianos têm virado as costas para os parceiros que não comungam de dar um aperto na oposição. O Brasil parece ser a exceção que confirma a regra.

A BBC Brasil tem publicado uma série de reportagens sobre regimes totalitários. Ao abordar o Irã, o veículo revela, por exemplo, que, dos 475 candidatos que se apresentaram para disputar a corrida presidencial, somente quatro foram aprovados pelo Conselho de Guardiões. Para complicar, a Guarda Revolucionária tem sido cada vez mais presente na vida pública e política do país. Já mencionei alguns meses atrás a intenção que a ala militar mais radical do país tem de criar seu próprio canal de "jornalismo".

Para completar, a Turquia – Estado com relacionamento cada vez mais próximo ao Irã – anunciou hoje a aprovação de 26 mudanças constitucionais cujo objetivo parece ser um crescente controle das instituições do país pelo partido AK, de fortes tendências islâmicas. Esta é uma ameaça real ao caráter laico turco, princípio inerente à criação da Turquia moderna, em 1922, por Kemal Ataturk.

Ou seja, é preciso que o Brasil leve todos esses fatores em consideração, mesmo tendo como norte o pragmatismo que vem apresentando com sucesso na condução de sua política externa. Fechar os olhos para a radicalização de parceiros importantes é aceitar o beijo da morte. Até porque, o livre acesso brasileiro no mundo só é possível porque ninguém põe em dúvida seus objetivos. Basta que essa percepção mude e as portas serão fechadas.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Brasil sobre proposta do Irã: explicando para confundir

Depois que as duas únicas agências de notícias iranianas, Fars e Irna, divulgaram a informação de que o presidente Ahmadinejad estaria disposto a enviar urânio levemente enriquecido ao Brasil, houve uma sucessão de confusões, explicações, desmentidos e malabarismos políticos. Se isso de fato acontecer, o governo brasileiro definitivamente será alçado ao status de jogador internacional de primeira linha. E isso certamente interessa a Brasília. E, é claro, a Teerã também.

Para se ter ideia de como a situação pode sofrer um revés interessante, a proposta – originalmente de autoria de Estados Unidos, Rússia, França, China, Grã-Bretanha e Alemanha – pressupõe o envio de combustível nuclear iraniano para o exterior e sua devolução a Teerã em forma de isótopos para o tratamento de câncer. A conversa entre os presidentes de Venezuela, Hugo Chávez, e do Irã foi a mesma. Tratou apenas de adaptar o eventual acordo para os moldes da política externa de dois dos principais símbolos da política não-alinhada. Ou melhor, países que pretendem ser enxergados desta maneira.

Baixando tom da euforia que tal acordo possa provocar, vale lembrar que este não é um fato completamente novo. A sugestão já ocorrera entre o final do ano passado e o início deste ano. E, na ocasião, o Brasil declinou da oferta com o argumento de que não haveria condições técnicas de realizar a operação no país.

E aí vale especular sobre as possibilidades. Quando Celso Amorim e Marco Aurélio Garcia afirmam que o país poderia se envolver num eventual acordo nuclear com o Irã, eles estão jogando com algumas possibilidades: 1 - esqueceram de tudo o que foi dito sobre a problemática técnica, algo que considero muito pouco provável de ter acontecido; 2 - estão surfando na onda de preocupação mundial sobre o assunto e decidiram aproveitar a deixa para esquentar ainda mais o encontro programado entre Lula e Ahmadinejad, no próximo dia 15.

Parece-me que a última opção é a mais viável. O problema é que, por conta disso, o Brasil acaba por participar do velho jogo de empurra iraniano. Não é de hoje que a tática de Ahmadinejad se resume a simplesmente sustentar ao máximo a situação enquanto puder. E o pragmatismo brasileiro optou por aceitar o plano em nome dos possíveis benefícios que possa colher mais para frente.

Por isso, a confusão causada pelas declarações de Lula, Marco Aurélio Garcia e Celso Amorim é proposital. Quanto menos claras e mais contraditórias, menos óbvia é a posição que o Brasil vai adotar até o encontro do dia 15. Vale lembrar algumas afirmações das autoridades brasileiras para deixar evidente este propósito:

"O Brasil espera e busca uma solução negociada e pacífica para a questão”, declaração de uma fonte do Itamaraty que não explica qualquer coisa.

"O Brasil não trabalha com a hipótese de ser depositário do urânio do Irã. Há lugares mais perto do Irã que o Brasil. Mas isso vai depender muito do Irã", declaração que não nega, não aceita e ao mesmo tempo não descarta a hipótese ventilada pelas agências de notícias iranianas.

Só devemos descobrir mesmo o que foi combinado nos bastidores entre Brasil e Irã depois do encontro do dia 15. Até lá, ficaremos apenas com as confusões propositais.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

A verdadeira bomba americana

Agora ninguém mais parece questionar o envolvimento do Talibã paquistanês no quase-atentado de Nova Iorque. E essa é a melhor opção entre todas as outras mesmo. Existe uma possibilidade que poderia ser muito mais fatal do que a reivindicação de qualquer gruto fundamentalista islâmico: a de que o esquema do carro-bomba tivesse sido montado por imigrantes insatisfeitos com as novas leis aprovadas pelo estado do Arizona.

Esta sim seria uma situação devastadora para os EUA. Até porque se estima que o número de imigrantes ilegais no país varie em torno de 11 milhões de pessoas.

Vale recapitular essa história: o governo do Arizona aprovou uma lei de traços macartistas. A partir dela, qualquer pessoa pode ser parada nas ruas e, se não tiver como apresentar documentos capazes de provar que está legalmente nos Estados Unidos, será presa. Ou seja, a medida termina por transformar os imigrantes em criminosos. A prática está longe de ser exclusiva do estado americano. Ela já é aplicada em países europeus, como Itália e Suíça, e recebeu críticas contundentes de organizações de direitos humanos.

No caso dos EUA, a lei do Arizona abre um precedente perigoso. Há estados do sul que contam com grandes contingentes de imigrantes. Por exemplo, estima-se que o número de ilegais em Califórnia, Texas e Flórida - os três principais centros de atração - seja de 5 milhões de pessoas. A verdade é que ninguém sabe como esses grandes contingentes reagiriam se leis punitivas fossem aprovadas.

O que se tem certeza, no entanto, é que haveria uma grande mobilização de descontentes (eufemismo proposital). Passeatas e discursos seriam os protestos mais brandos. Mas é impossível prever quais seriam os passos seguintes no que possivelmente seria uma briga de gato e rato entre perseguidores - na medida em que qualquer um com traços hispânicos passa a ser alvo de uma abordagem policial não me espantaria com uma onda de denúncias voluntárias por parte de militantes anti-imigração - e perseguidos - os cerca de 15% de imigrantes latinos que formam hoje a população americana.

Não haveria pior situação para o governo Obama do que passar para a história como o chefe de Estado a testemunhar um grave período de caos social interno. Isso não está longe de acontecer. Por mais curioso que seja, Obama deportou, em 2009, 400 mil ilegais. Os dados mostram que ele está para repetir o número neste ano. De qualquer maneira, o presidente da mudança conseguiu nos últimos dois anos superar os recordes de deportação de seu antecessor George W. Bush.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Carro-bomba em Times Square: uma pergunta ainda sem resposta

Após alguns dias ausente do blog por estar em viagem de trabalho, retorno já com uma série de assuntos importantes. Não é todo dia que Mahmoud Ahmadinejad está nos Estados Unidos para participar justamente do encontro que revisa o Tratado de Não-Proliferação de Armamento Nuclear. E também não é todo dia – definitivamente – que um carro-bomba quase é detonado num dos pontos principais da cidade mais importante do planeta.

As autoridades americanas capturaram o paquistanês de nascimento (mas com cidadania dos Estados Unidos) Faisal Shahzad. Segundo informações divulgadas pelo governo dos EUA, outro homem foi preso em Karachi, no Paquistão, acusado de ter participado do planejamento do atentado. O Talibã paquistanês assumiu o ataque. De certa maneira, o caso caminha para uma solução óbvia.

Mas duas principais dúvidas ainda passam pela minha cabeça, apesar disso: por que o grupo terrorista não reivindicou a autoria logo nas horas seguintes à descoberta do veículo carregado de explosivos? assim que o Talibã costuma agir, ainda mais quando pode se vangloriar de furar o aparato de segurança da maior potência do planeta.Por que o carro não explodiu? Vale lembrar que o mesmo Talibã paquistanês é responsável por uma série de atentados que, nos últimos três anos, deixaram um rastro de mais de 3.200 pessoas mortas.

A segunda pergunta é mais simples de ser respondida. Com os meios de comunicação e a proliferação da ideologia da al-Qaeda, qualquer pessoa hoje pode montar explosivos na própria casa. Basta acessar as páginas de grupos terroristas na internet e seguir o passo-a-passo fornecido.

"Velhas técnicas como o uso de carros e ônibus-bomba mostram que os jihadistas passaram a considerar a realização de ataques terroristas mais fáceis de serem executados", escrevem Steven Simon, membro do Conselho de Relações Internacionais, e Jonathan Stevenson, professor de Estudos Estratégicos da Escola de Marinha de Guerra Americana, no Washington Post.

Ou seja, a simplificação do terrorismo acabou por retirar o "selo de qualidade" dos ataques. Sem a presença dos especialistas – cada vez mais confinados ao território livre da fronteira entre Afeganistão e Paquistão –, fica impossível garantir o "sucesso" desses ataques. Haveria uma perda de eficiência calculada em nome da expansão da ideologia. Faz sentido.

O problema é que a primeira pergunta continua em aberto. Por que não reivindicar a autoria do primeiro atentado em Nova Iorque desde o 11 de Setembro? Alguns podem argumentar que ninguém quer levar o crédito por um ataque frustrado. Mas eu não creio que tenha sido um fracasso, do ponto de vista dos terroristas. Afinal, as forças de segurança americanas foram mobilizadas, os nova-iorquinos prenderam a respiração mais uma vez, e a cidade parou.

Sustento a teoria de que os ataques de 11 de Setembro tinham como objetivo mandar uma mensagem simbólica, não necessariamente tirar a vida da maior quantidade de inocentes possível. Se este fosse o caso, seria mais óbvio atacar o estádio de futebol americano no dia da final do campeonato. Por isso, penso que o ataque de sábado passado atingiu seu objetivo, de certa maneira. Afinal, o terrorismo pretende pôr em xeque algumas das conquistas básicas da sociedade ocidental (e ainda mais caras aos americanos, vale dizer): liberdade e segurança.

Mas e se o atentado não tiver sido necessariamente planejado pelo Talibã paquistanês? Amanhã, escreverei sobre isso.