sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O legado de Néstor Kirchner

A morte prematura do ex-presidente argentino Néstor Kirchner conseguiu silenciar temporariamente seus mais ferrenhos adversários. Não apenas as figuras políticas que se opunham a ele, mas também os grandes grupos de comunicação do país. A cobertura brasileira sobre o governo argentino é um tanto restrita e privilegia, principalmente nos últimos tempos, as tentativas da presidente Cristina Kirchner de discutir o setor de mídia. Dias antes de o marido morrer, inclusive, a líder argentina propôs a "nacionalização" da imprensa do país.

Curiosamente, a ausência de Néstor não permitiu apenas uma trégua neste embate, como contribuiu para que as ações do Grupo Clarín subissem 40%. A troca de acusações mútuas entre governo e imprensa é apenas uma parte das grandes brigas que o ex-presidente decidiu levar adiante. Se por aqui existe uma tentativa de discutir seu legado, é preciso lembrar algumas de suas posições mais contundentes que de fato o colocam na posição de um dos mais corajosos líderes recentes latino-americanos.

Ao assumir em 2003, durante a maior crise da história do país, Kirchner enfrentou não apenas os dados econômicos muito desfavoráveis, mas colocou em pauta a discussão sobre os abusos do regime militar que governou a Argentina. Pôs de lado a anistia, e estabeleceu dezenas de julgamentos envolvendo as figuras locais que participaram dos muitos abusos aos direitos humanos. Este tipo de assunto é um tabu por aqui e os arquivos das forças armadas contendo informações sobre presos políticos permanecem fechados.

As medidas políticas e econômicas que tomou também foram fundamentais para tirar a Argentina da recessão. Kirchner herdou um país abandonado por cinco presidentes que assumiam seus cargos e os deixavam com a mesma rapidez. Não apenas isso, mas recebeu o Estado falido de todas as formas. A desvalorização provocou um débito de 95 bilhões de dólares, e o desemprego atingia 21% da população (para efeito de comparação, a atual taxa brasileira está em 6,2%). A solução mais óbvia seria pedir a ajuda do FMI, mas ele fez exatamente o contrário.

Em setembro do mesmo ano que assumiu, Kirchner decidiu deixar de pagar as dívidas contraídas com a instituição financeira. Para levantar fundos, como lembra a Economist, o governo retomou a gestão do sistema previdenciário e usou parte das reservas do Banco Central. Se Lula tivesse feito o mesmo por aqui, seguramente teria sido deposto. Melhor do que ocorrido na Argentina, é inverter a lógica e tornar o FMI devedor do Brasil.

Seja como for, se a situação não é a ideal, a melhora é visível: 11 milhões de pessoas (dos 40 milhões de argentinos) saíram da linha de pobreza e, em 2008, a taxa de crescimento foi de 8%. Não é pouco. Ainda mais se for considerado o estado de falência em que a Argentina se encontrava cinco anos antes. É por tudo isso que Kirchner será lembrado.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

EUA devem apresentar nova proposta de negociação ao Irã

Pela primeira vez em muito tempo, as autoridades americanas estão otimistas em relação ao programa nuclear iraniano. Por mais que a república islâmica tenha anunciado nesta semana o carregamento de combustível na usina de Bushehr (foto), no sul do país, Washington demonstra certa percepção de que, finalmente, os esforços para aplicar sanções mais duras começam a ser recompensados.

Realmente, as poucas notícias que chegam de Teerã sem o filtro oficial não são boas para os iranianos. A desvalorização do rial, a moeda do país, a diminuição das vendas internacionais de petróleo – o Irã é o segundo maior exportador mundial – e as dificuldades para encontrar bancos dispostos a fazer as transações têm dificultado as operações governamentais. Para completar, há o início de divisões internas; os subsídios históricos que mantêm os preços estáveis estão para cair. Com isso, ninguém sabe como os cidadãos comuns irão comprar todos os distintos bens cotidianos, como pão ou gasolina.

As sanções, de fato, estão tornando a vida pior no Irã. Mas a população do país é a mais afetada, não a cúpula governamental. É uma forma de pressão, não há dúvida, mas ela não vai receber a resposta que os EUA esperam. A posição de Washington é um tanto ingênua, de certa forma. Os teóricos do governo americano acreditam que, com a escassez tornando o dia a dia muito difícil, os iranianos irão se mobilizar e pressionar para que seus líderes aceitem negociar os termos do programa nuclear com o Ocidente.

Há algumas evidências recentes para acreditar que esta possibilidade é remota. Quando uma parcela considerável do Irã foi às ruas questionar os resultados da eleição presidencial, os protestos foram reprimidos. Houve muito descontrole, mortes, violência, vídeos no Youtube, petições na internet, mas o governo não cedeu. Não houve revisão de resultados ou qualquer mea-culpa. Isso sem falar que mesmo a oposição a Ahmadinejad não questiona o projeto atômico nacional.

Não faltam exemplos: no Iraque, logo ao lado, a visão romântica americana acreditava ser possível instalar uma democracia tão bem sucedida que, cedo ou tarde, se espalharia naturalmente pelo Oriente Médio. O Iraque é hoje um país atolado no impasse político e seu primeiro-ministro busca apoio justamente dos iranianos. O conceito de democracia nos territórios palestinos permitiu ao Hamas ascender democraticamente e, pouco depois, expulsar violentamente os membros do Fatah de Gaza.

O New York Times publica reportagem afirmando que Obama vai fazer nova proposta de negociação a Ahmadinejad. Diante das evidentes dificuldades causadas pelas sanções, o presidente americano sofisticou sua lista de demandas: O Irã deveria aumentar em mais de dois-terços o volume de urânio levemente enriquecido a ser enviado ao exterior e interromper toda a produção de combustível nuclear.

Se o governo iraniano negou o pedido da chefe de política externa europeia, Catherine Ashton, para um encontro em Viena em meados do mês que vem, alguém acha que os líderes da república islâmica irão concordar com as exigências americanas? Como as sanções têm atingido basicamente a população do Irã, não há dúvidas de que o governo vai continuar a tratar a questão como símbolo de resistência nacional diante do poder "imperialista".

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O que está em jogo nas eleições legislativas americanas

O governo de Barack Obama vai enfrentar seu primeiro teste nas urnas no próximo dia 2. Por mais que o cargo do presidente não esteja em disputa, está muito claro que o resultado pode ser determinante para a disputa de 2012. Muito mais preocupante que a aprovação ou não da atual administração é notar que os americanos entraram de cabeça no discurso maniqueísta e manipulador do movimento Tea Party (para uma visão mais ampla deste assunto, clique aqui).

Em primeiro lugar, como de costume, os radicais fazem de tudo para desmerecer os ganhos promovidos pela gestão democrata. Por exemplo, quando analisam as taxas de desemprego e de crescimento econômico, esquecem de mencionar que a recepção a Barack Obama na Casa Branca contou com a calorosa presença da maior crise dos últimos 80 anos. E aí é curioso perceber que, por mais que os membros do Tea Party exijam a redução do papel governamental, eles culpam as políticas de Washington pela falta de empregos. É contraditório, mas e daí?

Obama tem méritos. Não se pode ignorar que, hoje, o presidente está a ponto de tornar real o acesso de toda a população americana à cobertura médica. Não é pouco. Além disso, como lembra David Leonhardt, do New York Times, a administração atual tem conseguido regulamentar a atuação das empresas em Wall Street. Ainda há muito a ser feito, mas gerenciar a maior potência do planeta, envolvida em duas guerras simultâneas e no "day after" da grande crise mundial, não é tarefa fácil.

As eleições do dia 2 estão polarizadas entre duas visões distintas. O Tea Party representa o que há de mais retrógrado. Alguns exemplos do que pensam seus representantes: Joe Miller, que concorre ao Senado, se opõe à realização de eleições diretas para a Casa, pretende privatizar o Seguro Social, e luta contra a legalização do aborto, mesmo quando diz respeito a casos de estupro ou incesto. Sharron Angle, que também briga por uma vaga no Senado, quer eliminar o Departamento de Educação (informações da revista The Nation).

É um tanto assustador imaginar que as duas casas legislativas americanas podem contar com representantes que pensam sob um prisma tão conservador, na definição mais amena possível. Mas o discurso desta "alternativa" proposta pelo Tea Party encontra muitos discípulos. Segundo pesquisa recente da rede de TV CNN, 50% dos eleitores estão dispostos a escolher um candidato apoiado pelo movimento. E, mais preocupante, 75% acreditam que ele deve exercer indefinidamente um papel ativo na política do país.

A adesão popular foi alcançada graças a três pontos fundamentais muito sedutores: há impostos demais, empregos de menos e "está tudo errado, ninguém presta". Alguém se lembra do movimento "Cansei", criado em 2007 e que tinha como adeptos Ana Maria Braga, Vitor Fasano, Boris Casoy, Paulo Vilhena, Tom Cavalcante e Gabriel Chalita? Pois é. O Tea Party é muito mais, muito embora tenha nascido a partir de alguns aspectos deste discurso reducionista que também encontrou adeptos por aqui.

Nos EUA, no entanto, o grupo tem mostrado poder político muito maior. Mas é possível que sofra um revés político, na medida em que fica cada vez mais claro que de popular ou genuíno há muito pouco. Por trás do Tea Party estão os irmãos David e Charles Koch, megaempresários e maiores financiadores dos participantes da festa do chá. 

As Indústrias Koch representam o segundo maior grupo privado americano. Dentre suas muitas empresas, há refinarias de petróleo, fornecedores de carvão e instalações químicas. Como os negócios são obrigados a pagar inúmeras multas por conta de acidentes e despejo de detritos químicos, nada melhor do que encontrar milhões de americanos insatisfeitos e dispostos a brigar pela redução de taxas, impostos e que se recusam a considerar a legalidade em torno da discussão sobre questões ambientais. Faz sentido agora?

É tudo isso que está em jogo nas eleições do próximo dia 2. Aliás, esta é apenas uma parte dos muitos riscos políticos que o planeta enfrenta. Uma ampla vitória republicana - e dos membros do Tea Party, em particular - pode levar a maior potência do mundo a um retrocesso cujas perdas são incalculáveis.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Nas guerras atuais do Oriente Médio, petróleo não explica tudo

O ponto mais obscuro que cerca os esforços de guerra ocidentais em Iraque e Afeganistão é a contratação de empresas de segurança privadas. A Blackwater – que mudou de nome para Xe em fevereiro de 2009 – é a mais conhecida delas. A relação entre seus donos e altas autoridades dos governos envolvidos na ofensiva – principalmente o americano – é de parceria, camaradagem, complacência e acobertamento.

Esqueçam tudo o que é repetido sobre os interesses no petróleo. Além de ser uma explicação reducionista, ignora as muitas possibilidades oferecidas ao se decidir reconstruir (no caso iraquiano) ou iniciar do zero (no caso afegão) a infraestrutura dos dois países. Quando os dados são examinados, a tese de que os EUA estão na região somente em busca de petróleo cai por terra. Das 16 empresas estrangeiras que fecharam contrato para desenvolver campos petrolíferos iraquianos, somente duas são americanas. Mas é importante deixar claro: o setor ainda é o mais lucrativo para as corporações internacionais.

Mas não se pode esquecer de todas as demais áreas. E a segurança privada é uma das mais importantes. O governo iraquiano se prepara para comprar dos EUA 13 bilhões de dólares em armas, treinamento e equipamento militar. As duas guerras atuais representam negócio lucrativo para as dezenas de empresas privadas que pagam bons salários a seus funcionários combatentes. Pode-se dizer que a empreitada militar na região é um exemplo de sucesso da parceria público-privada.

Relatório do Congresso americano revela que hoje há mais soldados freelanceres do que das forças armadas americanas. Somados os contingentes de Iraque e Afeganistão, há 207.600 combatentes privados contra 175 mil oficiais representando o poder regular americano. É uma superioridade que beira os 20%.

Não há qualquer novidade envolvendo a corrupção do governo de Hamid Karzai, no Afeganistão. Agora, no entanto, ele está para comprar uma briga que certamente sairá perdendo. Ele anunciou publicamente a intenção de, até o final deste ano, substituir as empresas privadas pelas tropas afegãs.
"Com (a atuação) dessas companhias privadas, não há qualquer esperança de que as forças de segurança afegãs possam se desenvolver", disse à agência Associated Press.

A intenção do presidente do Afeganistão era decretar o banimento das empresas. E aí ele mexeu com a estrutura lucrativa de todo o empreendimento. A mesma, aliás, que o colocou no poder. A resposta à ameaça de Karzai não tardou a ser dada. Os grandes grupos privados que desenvolvem as obras de infraestrutura no país (construção de rodovias, hidroelétricas, sistemas de irrigação e treinamento de oficiais do governo afegão) declararam que irão interromper os projetos porque não confiam que seus funcionários estariam seguros nas mãos das forças militares afegãs.

Hamid Karzai não é ingênuo ou idealista. Possivelmente, decidiu levar adiante a ameaça por querer ser incluído no processo. Ou aumentar sua participação, não se sabe. Mas todo o caso é um belo exemplo de como funciona o sistema de venda casada no Oriente Médio. O petróleo é apenas mais uma peça do jogo.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A atuação do Irã em Afeganistão e Iraque

O presidente afegão, Hamid Karzai, foi honesto ao admitir ter recebido sacolas repletas de dinheiro do governo iraniano. A quantia total soma cerca de 1 milhão de dólares e parece não constranger o ocupante do cargo mais alto da hierarquia do país. Doações abertas ou investimentos nas muitas áreas carentes do Afeganistão não levantariam suspeitas. Mas entregar dinheiro vivo ao presidente soa muito estranho. 

Não é segredo que o Irã se movimenta para aumentar a influência em todo o Oriente Médio. A confissão de Karzai é somente mais um aspecto dos distintos campos de atuação de Teerã. As declarações acontecem após o conturbado final de semana em que veículos de todo o mundo reproduziram os documentos divulgados pelo site WikiLeaks. Além da “ajuda monetária ao Afeganistão”, há novas evidências de que milícias treinadas na república islâmica agem para combater as tropas americanas no Iraque. 

Há relatórios para todos os gostos. E é bom que se diga que eles mostram apenas as descobertas de setores da inteligência americana. Os documentos relatam treinamento de combatentes xiitas pelas Guarda Revolucionária iraniana e pelo Hezbollah libanês. Também mostram planos ambiciosos, como sequestros de oficiais do Ministério da Educação do Iraque e captura de soldados americanos. 

A mensagem de parte do novo vazamento promovido pelo WikiLeaks é clara: os EUA acreditam que o Irã pretende influenciar a política iraquiana. E a atuação do governo de Teerã é um tanto temida pela Casa Branca. Afinal, treinamento de milícias e apoio ao primeiro-ministro que busca formar o gabinete em Bagdá mostram a mistura de dois elementos de grande complexidade logística. 

Nos casos de Iraque e Afeganistão, não se trata apenas de um jogo que se enquadra na luta por assertividade regional. Para Teerã, é uma disputa contra a presença americana em suas fronteiras. No lado oeste, Iraque; no leste, Afeganistão. As lideranças da república islâmica não saem por aí dizendo isso, mas a verdade é que assistir passivamente aos americanos se consolidarem militarmente logo ao lado não é uma possibilidade. 

Como lembra reportagem do Christian Science Monitor, no lado afegão, as forças americanas estão instaladas na base aérea de Shindand (foto), localizada a pouco mais de 120 quilômetros das fronteiras iranianas. O objetivo das autoridades do Irã não é nem de longe fortalecer os governos de Afeganistão e Iraque, mas impedir que ambos se fortaleçam a partir do apoio que recebem dos EUA.

Assim, a situação ideal para Teerã é que Cabul e Bagdá sempre recorram aos iranianos em busca de dinheiro ou apoio político. E a república islâmica está empenhada em conseguir seus objetivos. Para isso, usa todas as armas de que dispõe: o treinamento de milícias xiitas para combater os esforços americanos de estabilização no Iraque; a compra de membros do alto escalão do governo de Hamid Karzai, no Afeganistão; e a consolidação comercial do Irã – hoje, o país é segundo maior exportador de produtos para o Iraque. No caso de uma invasão americana, os bens essenciais deixariam de ser vendidos como forma de retaliação.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Território livre na fronteira entre México e EUA

As eleições legislativas americanas do próximo dia 2 serão marcadas pela extrema polarização entre os candidatos democratas e republicanos. O movimento ultraconservador Tea Party será um ator mais relevante do que nunca. Seus representantes, inclusive, têm conquistado terreno político ao colocar em pauta temas como legalização do aborto, das drogas e leis mais firmes para deter o avanço da imigração ilegal. Por conta disso, as sangrentas lutas que tomam conta do México merecem atenção especial. Mais do que simplesmente reservatório de mão-de-obra, a instabilidade política no vizinho do sul passou a ser mais importante do que nunca aos americanos.

No lado esquerdo da foto, San Diego, nos EUA; no direito, Tijuana, México

A guerra entre cartéis do tráfico é também um símbolo da porosa região de fronteira. Os acontecimentos recentes mostram que as entidades políticas dos dois países dão lugar, na prática, a um território autônomo que se sobrepõe às autoridades locais americanas e mexicanas. A organização criminosa conhecida como Fernando Sanchez é um exemplo disso.

Quando seus membros tiveram as ligações telefônicas grampeadas por oficiais dos EUA, a estrutura da quadrilha se tornou conhecida. Como aponta o Washington Post, ao contrário das velhas lealdades familiares que costumam ditar a ilegalidade mexicana, a quadrilha investigada apresenta um modo de operação distinto. As ordens sobre sequestros, assassinatos, transportes de mercadorias e entregas são dadas a partir de uma base estabelecida em San Diego, na Califórnia.

Ou seja, o arcaico sistema de fidelidade foi substituído pela moderna gestão globalizada. A criminalidade conta ainda com a complacência de policiais corruptos dos dois lados da fronteira e de cidadãos americanos comuns. E é por isso que as autoridades dos EUA estão preocupadas com a situação. Como está muito claro pelas descobertas recentes, não é possível simplesmente reforçar a segurança na fronteira – aliás, como ordenou o presidente Barack Obama, é sempre bom lembrar.

A Casa Branca parece ter noção do tamanho da ameaça que movimentações como esta representam. Com as inúmeras possibilidades oferecidas pelo enorme mercado consumidor dos EUA, era uma questão de tempo até as "sedes" decidirem estabelecer filiais mais próximas de seus clientes.

George Friedman, fundador do Stratfor, já previu a existência de uma zona de fronteira entre México e EUA com vida própria. A análise está em seu ótimo livro "Os Próximos 100 Anos". Concordo com esta tese e acredito que os interesses ilegais tendem a acelerar este processo. E o barateamento dos meios tecnológicos irá exercer papel fundamental. Afinal, hoje já não são necessários grandes aparatos físicos para manter estruturas de trabalho. Com o crime não é diferente. A diferença, no caso, é que a virtualização de determinações e decisões acaba por beneficiar muito mais os cartéis do que a polícia.

Não se sabe ainda como a tendência de fluxo livre na região costeira entre o norte do México e o sul dos EUA irá influenciar a política americana. Por ora, Washington demonstra preocupação apenas com a inibição das ações. Mas não é impossível imaginar que o poder de grupos mais sofisticados – como a Organização Fernando Sanchez, por exemplo – tenha ambições ainda maiores. Se ela já conseguiu colocar no bolso parte de policiais mexicanos, por que imaginar que não faria o mesmo na Califórnia? Como o poder dos imigrantes na sociedade está longe de ser subestimado, não se pode descartar que grupos criminosos pretendam se projetar politicamente.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Grã-Bretanha decide punir população por déficit orçamentário

Muitos brasileiros ainda se recordam com tristeza do já distante 16 de março de 1990. Na ocasião, a então ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello (que para felicidade dela e do Brasil mora hoje em Nova Iorque, muito distante de Brasília), anunciou o confisco de parte das contas correntes e da poupança dos cidadãos comuns. A decisão causou espanto, raiva, decepção e a quase certeza de que as medidas tinham como objetivo se apropriar da renda dos brasileiros trabalhadores em nome de uma aposta que não daria certo. Agora, na Grã-Bretanha, acontece um fenômeno parecido.

O pacote de austeridade divulgado pelo ministro das Finanças, George Osborne (foto), também acerta com foice a vida dos que dispõem de menos recursos. Para variar, a solução encontrada para consertar as decisões econômicas governamentais e o jogo do mercado financeiro parecem sempre cortar muito dos têm pouco. O jornal britânico Guardian, inclusive, usa o termo aposta para se referir às medidas.

O objetivo do aperto é reduzir o déficit orçamentário que hoje é de 245,5 bilhões de dólares. Para isso, todo mundo vai perder. Cerca de 500 mil empregos públicos devem deixar de existir – a consultoria privada PriceWaterhouseCoopers estima que o mesmo número de cargos privados será extinto. Como sempre, também sobrou para a aposentadoria. Homens e mulheres só poderão se aposentar a partir de 66 anos de idade. A "democracia" do processo pode ser comprovada com cortes em todas as áreas: a passagem de trem vai subir 3%, gastos em educação superior sofrerão cortes de 40%, sendo seguidos também por defesas contra enchentes (15%) e orçamento militar (8%). Serão 138 bilhões de dólares "economizados" em gastos públicos até 2015.

Para quem acredita que medidas deste tipo podem funcionar, basta lembrar o ocorrido na Argentina neste início de século 21. Por uma questão de sorte política e competência governamental, escapamos dessa. E justamente graças à estratégia que decidiu inverter esta lógica. Enquanto durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso os assessores econômicos do Fundo Monetário Internacional (FMI) aconselhavam a adoção dessas receitas, Lula optou por seguir caminho independente. Até porque soa um pouco ingênuo premiar o mercado que, no fim das contas, contribuiu em larga escala para que a situação chegasse a este patamar.

A mecânica seguida pelo Brasil - e que se mostrou correta, uma vez que evitou que o país mergulhasse na crise mundial - é defendida por Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia em 2001.

"Redução de investimentos em educação, tecnologia e infraestrutura serão ainda mais custosos no futuro. (...) O aumento do desemprego, especialmente se persistente, provocará a deterioração das habilidades e do capital humano, fenômeno que a Europa experimentou nos anos 1980", escreve.

Não se pode esquecer que qualquer governo democrático foi eleito por pessoas. E elas deveriam sempre ser a prioridade nos momentos das decisões difíceis. Passar adiante a conta para os cidadãos, além de desonesto, não costuma ser eficiente. Os dirigentes britânicos acreditam que talvez em 2015 a vida pode melhorar. Mas a que preço?

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

China: tensões com o Japão podem silenciar opositores

Os olhos do mundo estão cada vez mais voltados para a China. O aumento da taxa de juros ordenada pelo governo de Beijing teve duas consequências distintas: se por um lado derrubou as bolas de valores, por outro foi positiva para os EUA, país-simbolo da sociedade de mercado e maior adversário dos chineses na liderança global. A "sino-dependência" planetária é explicada pelas conexões intrínsecas entre as economias e também pelos impressionantes índices do Estado asiático.

Enquanto americanos e europeus se debatem entre greves, crises e pacotes de salvação, a expectativa de crescimento chinês em 2010 é de 9,5%. Beijing não sabe o significado de crise, pelo menos do tipo que o Ocidente está acostumado a enfrentar nos últimos anos.

Os dados são realmente impressionantes e os saltos econômicos, gigantescos e alcançados num curtíssimo espaço de tempo. Em 2003, 190 milhões de pessoas possuíam telefones celulares. Se este já era um número muito significativo, o que dizer dos atuais 800 milhões? Deste total, 420 milhões estão conectados à internet. Como informa reportagem do britânico Telegraph, a China responde hoje por 8% do PIB mundial. Mas, em 2019, a previsão é de que este índice chegue a 15%, apenas cinco pontos menos que os EUA. 

O mundo teme a China e está em permanente apreensão quanto a suas decisões porque tais números não podem ser ignorados. Que empresa não quer entrar um mercado deste tamanho? Para se ter ideia, a quantidade de chineses com telefones celulares é dez vezes superior à população total da Alemanha, a maior economia europeia, ou quase três vezes maior que a população americana, a maior economia do planeta. 

Mas esta equação que coloca o mercado chinês como a maior massa de manobra do governo pode também se transformar no calcanhar-de-aquiles do regime. A crescente classe média do país consome bastante e joga todos os índices para cima. Mas a insatisfação com as restrições cresce na mesma medida. E isso pode representar o começo do fim para as muitas formas de controle.

Quem já percebeu o movimento tem dado um passo à frente. E isso não diz respeito somente às pessoas comuns que foram protestar, por exemplo, na porta do prédio onde vive Liu Xia, mulher do prêmio nobel da paz deste ano, Liu Xiaobo. Mesmo dirigentes do Partido Comunista perceberam que será impossível manter a situação atual. Mereceu pouca repercussão por aqui, mas, na semana passada, 23 membros do partido enviaram carta aberta ao parlamento exigindo o fim das restrições à liberdade de expressão. 

Ninguém sabe como o governo vai reagir a este tipo de pressão interna. Talvez pretenda ganhar tempo para analisar maneiras de se reinventar. É bem possível que, por conta disso, as tensões com o Japão tenham aumentado nos últimos tempos. Hoje, a China voltou a enviar patrulhas marítimas para as ilhas Senkaku/Diaoyu, territórios disputados pelos dois países e também por Taiwan. Nada melhor do que apelar para o nacionalismo irracional de forma a silenciar a oposição. É um tremendo de um lugar-comum. E isso Beijing parece ter aprendido muito bem com o Ocidente.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Como o Iraque se transformou num presente dos EUA ao Irã

Michael Knights, especialista em segurança na região do Golfo Pérsico, cita uma conclusão que vem sendo repetida no Oriente Médio com cada vez mais certeza: o Iraque hoje está para o Irã assim como o Líbano está para a Síria. Ou seja, a relação entre os dois países que travaram sangrenta guerra nos anos 1980 passa a ser de proximidade. Mesmo que muitos iraquianos ainda enxerguem Teerã da pior maneira possível, as articulações políticas recentes dão conta de que um dos piores pesadelos do governo americano começa a se transformar em realidade: a influência iraniana no Iraque cresce a passos largos.

E, curiosamente, o agravamento desta situação começou a partir do que Washington acreditava ser uma de suas grandes conquistas regionais: a realização das eleições iraquianas, em março passado. Quando a disputa se transformou num embate entre sunitas e xiitas – num microcosmo da grande luta por poder em curso no Oriente Médio –, as forças regionais passaram a enxergar, com ainda mais força, o nicho de mercado representado pelo Iraque.

Formado em sua maioria por população xiita, os iranianos foram o destino óbvio das lideranças xiitas iraquianas. Mesmo as eleições ainda não se resolveram em boa parte por conta desta cisão. Ayad Allawi – xiita moderado apoiado por Estados sunitas que se opõem à ascensão do Irã – venceu o pleito. Seu partido, Iraqiya, conquistou 91 das 325 cadeiras do parlamento – duas a mais que o Estado da Lei, bloco xiita comandado pelo primeiro-ministro, Nouri al-Maliki. O nó político não foi desfeito porque o premiê insiste no direito de tentar formar um governo de maioria.

A existência deste impasse acabou por gerar a importante reviravolta do momento. O ambiente que americanos acreditavam minimamente estabelecido está a ponto de sofrer diversos e distintos retrocessos. No campo sunita, há o revés representado pela mudança percebida entre os militantes da Sahwa. A organização, apoiada pelos EUA, conseguiu virar o jogo na guerra ao colocar ex-membros de grupos radicais em luta contra a própria al-Qaeda. A administração americana prometera empregos aos combatentes num futuro sistema burocrático a ser criado no Iraque.

Agora, além de boa parte dos militantes não ter sido beneficiada por posições no incipiente mercado de trabalho governamental, os participantes da Sahwa assistem ao jogo político criar grandes possibilidades do estabelecimento de uma administração xiita. Como a minoria sunita iraquiana era beneficiada durante os anos de Saddam Hussein no poder, os membros desta comunidade temem a vingança dos xiitas, no caso de um governo marcado por divisões religiosas. E, para complicar ainda mais, os combatentes da Sahwa têm mudado de lado, juntando-se às fileiras de ninguém menos do que a própria al-Qaeda.

No campo político, Nouri al-Maliki não apenas travou o sistema, como passou a busca por legitimidade junto aos vizinhos xiitas de maior poder, os iranianos. A cúpula de Teerã não se fez de rogada e está aproveitando como pode. Além de ter conseguido forjar uma aliança entre o premiê iraquiano e o popular clérigo xiita Moqtada al-Sadr – exilado no Irã de onde manifesta sua oposição aos EUA –, busca claramente influenciar nos rumos políticos do Iraque. Al-Maliki esteve reunido com o líder-supremo da revolução iraniana, aiatolá Ali Khamenei, e com o presidente do país, Mahmoud Ahmadinejad (foto). Ambos fizeram questão de deixar claro o apoio à manutenção de al-Maliki no cargo.

Com a polarização do Iraque, os EUA perdem mais uma vez. É como se os americanos tivessem feito todo o trabalho para entregar o país no colo dos iranianos. E este é o maior interesse da República Islâmica; quanto mais influência o Irã tiver no Iraque, menor será a presença de Washington no Oriente Médio e – mais importante ainda – a Casa Branca irá perder sua maior base na região. Sem falar nos enormes ganhos políticos e econômicos iranianos.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A boa vida de bin Laden e o momento crítico das aspirações ocidentais no Oriente Médio

A notícia divulgada nesta segunda-feira de que Osama bin Laden e seu braço direito, Ayman al-Zawahiri, estariam vivos no noroeste do Paquistão cai como uma bomba no Ocidente. Primeiro porque, como costumo lembrar, a invasão ao Afeganistão ocorrida em 2001 tinha como objetivos a derrubada do Talibã e a captura do líder da al-Qaeda. Quase dez anos depois, nada disso aconteceu. Para piorar, os detalhes sobre a atual situação de bin Laden são ainda mais agravantes.
Segundo um alto-oficial da Otan, ao contrário do que costuma se dizer, o mentor do maior atentado realizado em solo americano não viveria escondido em cavernas, mas estaria confortavelmente abrigado em alguma das cidades que se transformaram em reduto do Talibã paquistanês. Para completar o quadro, ele também receberia proteção de ninguém menos do que a Inter-Services Intelligence (ISI), o serviço de Inteligência do Paquistão. Quem acompanha este blog já leu inúmeros textos sobre as muitas suspeitas de jogo duplo que recaem sobre as ISI.

O inacreditável é que, se as informações forem mesmo verdadeiras, os esforços empreendidos pelas forças ocidentais - e com mais empenho e aporte financeiro pelos EUA - podem se consolidar como inúteis. Vidas humanas, prestígio internacional, inteligência e os cerca de 345 bilhões de dólares (contabilizando-se apenas a invasão ao Afeganistão) teriam sido jogados no lixo. Se bin Laden estiver vivo, a operação apresenta todos os elementos para ser considerada um fracasso de fato, uma vez que, como se sabe, os talibãs também estão longe de serem derrotados.

Para completar, o governo civil do Paquistão cairá em desgraça se ficar comprovada a suspeita de que as ISI estão aliadas à al-Qaeda. O líder da organização terrorista que se transformou em "franquia" e inspiração ideológica para milhares de entusiastas da jihad mundial mostra ter dado o grande golpe para conseguir colocar Washington em posição profundamente delicada. Se as conexões forem confirmadas, seguindo um raciocínio lógico, a Casa Branca teria pago as contas de bin Laden. Sim, uma vez que, não custa lembrar, o governo do Paquistão é destino de ajuda fornecida pelos EUA em valor superior a 5 bilhões de dólares - boa parte deste aporte tem o serviço de inteligência paquistanês como beneficiário.

O momento é especialmente difícil no Oriente Médio. Se já não bastassem os prejuízos na guerra do Afeganistão e agora a bombástica revelação sobre bin Laden, as peças do dominó parecem prontas para cair de maneira sucessiva. A crescente influência iraniana se aproxima com força do poder político estabelecido no Iraque, país que, no mundo ideal imaginado pelos teóricos americanos, serviria de modelo de democracia a ser irradiado por toda a região. Mas prefiro desenvolver este tema amanhã.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Sobre Chile, capitalismo e China

Por trás das justas homenagens aos esforços de resgate chilenos, é preciso pensar sobre a natureza econômica de um país cujo trabalho nas minas está no centro da arrecadação nacional. A exploração de cobre - e sucessiva exportação - responde por 40% da renda nacional. Não é à toa que este não foi o primeiro acidente envolvendo mineiros.

Desde 2000, 34 trabalhadores morreram todos os anos durante o processo de mineração. O ponto alto deste histórico de mortes aconteceu no ano de 2008, quando 43 pessoas deram suas vidas durante o trabalho. A exploração do cobre sustenta o Chile há muitos anos.

Um dos artigos mais interessantes que li nesses últimos dias é de Daniel Henninger, do Wall Street Journal. Ele diz acreditar que a operação de resgate é mais um exemplo das vantagens do capitalismo, argumentando que as diversas empresas privadas que ofereceram peças e equipamentos só o puderam fazer porque desenvolveram tecnologia de alto desempenho - o que, segundo ele, só é possível num ambiente competitivo.

É uma verdade. Ou melhor, é apenas uma parte da verdade, uma de suas muitas faces. Por exemplo, vale questionar se os mineiros teriam sido submetidos a péssimas condições de trabalho se o livre-mercado não estivesse em busca de maiores quantidades de cobre vendidas a preços mais baixos. A mina São José só foi reaberta para exploração - mesmo sem oferecer segurança apropriada aos empregados - por conta da pressão do governo chinês.

Ou seja, o mesmo mercado global que conseguiu unir parceiros internacionais privados durante o salvamento de certa forma foi o responsável por colocá-los debaixo da terra inicialmente. É preciso levar todos esses aspectos em consideração. Até porque, não acho que o episódio sirva como argumento definitivo e maniqueísta para qualquer bandeira ideológica. Particularmente, considero que a grande lição de tudo isso é ressaltar a capacidade solidária humana.

Sobre os argumentos expostos no Wall Street Journal, acho válido também discutir o atendimento médico oferecido aos mineiros após o resgate. No "mundo ideal do livre mercado", o governo chileno não teria arcado com as despesas hospitalares. Ou melhor, sequer existiriam hospitais públicos. Que tipo de atendimento os mineiros teriam recebido, considerando que, em média, seus salários não ultrapassam os 1,6 mil dólares?

Aliás, esta é uma questão que está na ordem do dia nos EUA, com os movimentos mais conservadores rotulando o presidente Obama de "socialista" por sugerir a criação de um plano de saúde popular capaz de cobrir as despesas médicas da maioria da população americana.

Talvez este episódio pudesse servir para incrementar esta discussão entre os americanos, mas acho pouco provável. Curiosamente, este mesmo livre-mercado comemorado por Henninger pode acabar ressaltando ainda mais as discutíveis escolhas recentes chinesas (maiores parceiros comerciais do Chile. A China responde por 16,46% das exportações chilenas).

Se internamente Beijing restringe a prática, internacionalmente parece ser a maior entusiasta do capitalismo sem qualquer fundamento ético: por exemplo, além de ter sido ator importante no processo de reabertura da mina São José, continua a vender armamento para os radicais islâmicos de Darfur, no Sudão, além de apoiar com equipamentos os projetos nucleares de Coreia do Norte e Irã. Talvez, a China acabe se tornando a principal prejudicada quando o mundo deixar de se maravilhar e decidir estabelecer limites para a sociedade do livre-mercado.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Os interesses de Ahmadinejad no Líbano

Mahmoud Ahmadinejad está no Líbano. Sua visita ao sul do país permitirá que esteja ao lado de Israel. Mais perto do que nunca, capaz inclusive de assistir à movimentação no lado israelense da fronteira, pretende lembrar a todos os envolvidos no grande conflito do Oriente Médio que o Irã é um ator a ser considerado. A visita do presidente iraniano à região está longe de marcar uma posição consensual num país marcado por profundas divisões internas.

"Ahmadinejad seria bem-vindo se pudesse se comportar como o presidente do Irã, não como o presidente de uma parte do Líbano", diz à BBC Samir Geagea, líder do partido Forças Cristãs Libanesas.

Na segunda-feira, escrevi que a visita contemplava o Hezbollah, uma vez que receber seu maior patrocinador é uma forma de voltar o discurso contra Israel, desviando o foco das investigações da ONU que pretendem esclarecer as circunstâncias em torno do assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri, em 2005. Não se trata somente disso, obviamente.

É do maior interesse iraniano a renovação da imagem de Ahmadinejad como ator regional e, principalmente, opositor à retomada das negociações de paz entre israelenses e palestinos. Como muitos antes dele, o presidente se pretende o maior defensor da causa palestina, alguém com força suficiente para não aceitar os “termos impostos por Israel e EUA”. A causa palestina é a carta na manga mais usada por pretendentes a líderes regionais do mundo islâmico. E agora não é diferente.

Diferente mesmo é o fato de o cenário estar muito favorável a Ahmadinejad. Com a Autoridade Palestina enfraquecida por conta dos confrontos com o Hamas, o presidente Mahmoud Abbas não pode garantir qualquer compromisso que assumir com Israel. É este o ponto fraco que o iraniano não se cansa de explorar. A ideia que tenta emplacar é que somente ele - Ahmadinejad - pode causar medo ao Ocidente graças a seu programa nuclear. Não deixa de ser verdade. Mas o presidente iraniano não está nem aí para o processo de paz ou os palestinos. Ele se importa apenas com seu projeto pessoal de poder.

O seu aparecimento ao lado da fronteira israelense é mais uma jogada de sua ampla estratégia. Ainda mais agora, com o processo de paz emperrado. Como o diálogo está teoricamente parado – escrevo sobre isso posteriormente, já que notícias recentes mostram que há muitas movimentações em curso –, as pedras que o presidente do Irã diz que irá jogar contra Israel miram também outro alvo: a crescente frustração entre os palestinos. Ahmadinejad aproveita esta oportunidade para lembrar o mundo árabe e islâmico que ele representa a única solução. Mesmo que as opções que defenda representem o rompimento total.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O Líbano a caminho do colapso

A semana pode marcar mais uma movimentação importante no Oriente Médio. Na próxima quarta e quinta-feira, o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, visitará o Líbano. Se a intenção de "passear" pelo sul do país se confirmar, Ahmadinejad estará ao lado da fronteira norte de Israel – especula-se, inclusive, que repetirá a prática local de jogar pedras em direção à fronteira israelense. Mais do que simplesmente reafirmar a imagem de maior contraponto regional ao Ocidente, a visita também pode influenciar decisivamente a própria política interna libanesa, que passa por momento decisivo.
A ONU estabeleceu um tribunal especial para investigar o assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri, em 2005. A iminente publicação dos resultados promete abalar as estruturas do país, já que deve apontar o envolvimento do Hezbollah no crime. Se isso de fato acontecer, ninguém sabe ao certo como o grupo radical xiita pode reagir. Principalmente porque sua reputação fica abalada. Como explicar o envolvimento da milícia sem deixar óbvio seu projeto de poder? Como manter o véu patriótico incansavelmente repetido nos discursos de seu líder, o xeque Hassan Nasrallah?
É claro que existe um grande temor quanto às consequências da divulgação dos resultados desta ampla investigação. Tanto que a exposição das descobertas tem sido constantemente adiada. Se ficar claro que o Hezbollah está por trás da morte de Hariri – como dão conta informações preliminares – o Líbano pode entrar em colapso mais uma vez. Os partidários do atual primeiro-ministro, Saad Hariri (filho de Rafik), devem acusar a milícia xiita de traição à pátria. Na prática, o grupo já representa um Estado dentro do Estado, com seu próprio canal de televisão, instituições, hospitais, escolas e forças armadas.
Antecipando-se ao que parece inevitável, a milícia xiita tratou de convidar seu maior patrocinador para uma visita. Com a temperatura em elevação, o deputado do Hezbollah Nawwaf al-Moussawi declarou que qualquer libanês que aceite os resultados do inquérito da ONU será assassinado sob a acusação de colaboração com Israel e EUA.
A atual estratégia do grupo segue passos óbvios: tentar deslegitimar o tribunal, além de procurar tornar Mahmoud Ahmadinejad uma espécie de justiceiro que busca proteger os libaneses do poderio militar israelense. É por isso que, no último final de semana, o xeque Nasrallah declarou que o dinheiro recebido pelo Hezbollah dos iranianos foi empregado na reconstrução das casas destruídas por Israel durante a guerra de 2006.
A visita de Ahmadinejad é uma tentativa desesperada de mudar o foco. O Hezbollah corre contra o tempo para angariar o máximo de vozes ao velho discurso de enfrentamento com Israel. Junto com o presidente iraniano, a milícia xiita procura deixar o mais claro possível que qualquer voz acusatória, no fundo, representa um apoio aos israelenses. Este tipo de argumento simplista é bastante comum a radicais de todas as bandeiras.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Poço sem fundo no Afeganistão

Como complemento à análise desta quinta, os fatos parecem contribuir para a tese fatalista. Quanto mais tempo EUA e OTAN permanecerem no Afeganistão, pior a situação deve ficar. Assim, a pressão que Washington pode passar a sofrer para negociar com o Talibã tende a aumentar, já que esta não é apenas o que se poderia considerar a única saída digna, mas a única saída.

Quando escrevi que negociar com os talibãs soava contraditório, o fiz baseado no próprio conceito de radicalismo. Se al-Qaeda e o Talibã são radicais – e, de fato, o são e ambos os grupos têm enorme orgulho disso –, negociar seria uma perda de tempo, uma vez que, conceitualmente, nenhuma das organizações estaria disposta a ceder em qualquer uma de suas reivindicações. É preciso também deixar claro que discutir termos ou acordos com a al-Qaeda é absolutamente improvável e impensável. Nenhum ocupante da Casa Branca irá aceitar debater com os autores do maior atentado cometido em solo americano.

O Talibã não é a al-Qaeda, mas se propõe fundamentalista da mesma forma. Vale dizer também que o termo “fundamentalismo” expressa uma visão ocidental sobre as práticas de tais grupos. Ou seja, radicais do Talibã ou da al-Qaeda não condenam o modo de vida ou os valores praticados no Ocidente porque se pretendem fundamentalistas, mas porque, para eles, a maneira como interpretam e põem em prática as leis islâmicas é a única aceitável. Mesmo que atirar ácido no rosto de mulheres que ousam estudar seja cumprir com os mandamentos – muito embora o islamismo condene este tipo de prática.

Sobre a situação política afegã, a tendência é de retrocesso dos ganhos alcançados pelas tropas ocidentais. Até em grandes cidades onde se imaginava que poderia iniciar o processo de construção de um Estado, o projeto tem se esfacelado – casos de Jalalabad e Cabul. A intensidade dos atentados aumenta diariamente. Hoje, um desses ataques é de grande simbolismo por ter vitimado Mohammad Omar (foto), governador da província de Kunduz – região norte do país e uma das áreas mais afetadas pela atuação do Talibã.

Quanto mais a coalizão ocidental permanecer no Afeganistão, mais vai ter a perder. E com os radicais muito motivados pelas vitórias recentes, mais difíceis serão as negociações que decretarão o fim da empreitada de EUA e OTAN. Este é um poço sem fundo em número de vidas perdidas, dinheiro empregado e prestígio político.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Afeganistão, 7 de outubro de 2010

Em 7 de outubro de 2001, tropas dos EUA e da OTAN invadiram o Afeganistão. Teoricamente, a missão era simplesmente derrubar o governo Talibã. O objetivo foi alcançado naquele mesmo ano, restando um enorme vazio e muitas dúvidas. Se os aliados deixassem o território, os radicais poderiam retornar, e fatalmente conseguiriam retomar o poder. O esforço de guerra teria sido em vão, e a resposta aos atentados de 11 de Setembro não seria apropriada. Não custa dizer que a captura de Osama Bin Laden parecia apenas questão de tempo.

Por conta de tantas questões, EUA e OTAN se dispersaram em meio à guerra. Encontrar o terrorista que admitiu os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono se transformou em tarefa ingrata. Definitivamente, no entanto, os talibãs não poderiam voltar ao poder e a al-Qaeda não encontraria mais abrigo seguro no Afeganistão.

As mudanças de circunstância determinaram também um novo olhar sobre o território. Era preciso transformar o vasto “país” num Estado de verdade. Era preciso inventar um governo, instituições, fazer eleições. Como em teoria tudo é possível, o que existe hoje é somente um resultado prático: 2.131 soldados ocidentais morreram, o mesmo aconteceu com incontável número de afegãos. Até agora, foram gastos 350 bilhões de dólares – em meio a tudo isso, a crise econômica assolou os EUA com toda a força, tornando difícil justificar tamanho gasto.

Para completar, era preciso contar com o nada confiável vizinho Paquistão – um aliado americano bastante questionável. Mesmo a pontaria das tropas aliadas tem sido falha, como mostra o bombardeio do último dia 30 de setembro que matou três soldados das forças regulares paquistanesas confundidos com membros do Talibã.

Depois de incidentes com este – e já foram muitos desde 2001 – o cenário está longe do planejado: além de não conseguir derrotar os radicais, a instabilidade no Afeganistão pode contribuir para o pior dos mundos: o caos instalado no Paquistão que daria fim ao governo – podendo, inclusive, tornar realidade a perspectiva de ascensão dos radicais paquistaneses. Ou do próprio Talibã, atualmente instalado, vejam só, em Quetta, no Paquistão. Sendo bastante repetitivo, acho válido mencionar que Islamabad dispõe de capacidade nuclear.

Ao entrar em seu décimo ano, a empreitada no Afeganistão parece contar apenas com uma saída: o estabelecimento de uma solução negociada com os radicais talibãs – o que é altamente contraditório, sob todos os pontos de vista.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

As perspectivas internacionais brasileiras não devem mudar

Uma notícia talvez surpreendente, mas que serve para mostrar o momento diferente pelo qual passa o Brasil: no próximo dia 8 de outubro acontece o encontro anual do FMI. Em outros tempos, a reunião causaria grande comoção entre as autoridades brasileiras. Não é o caso neste momento. Pode parecer pouco, mas a situação ilustra uma grande mudança de posicionamento. Este é um aspecto internacional positivo que será herdado pelo próximo presidente, seja ele quem for.

Acho válido traçar um rápido panorama externo do próximo mandato. Se Dilma de fato vencer as eleições, o Itamaraty (foto) deve manter as estratégias atuais. E isso pode significar não apenas a manutenção do pragmatismo independente, mas também um aprofundamento das divergências de posicionamento com os EUA. Aliados que se opõem a Washington em uma série de questões, como Irã e Turquia, por exemplo, acabaram ganhando prestígio em Brasília porque servem de trampolim para o projeto internacional brasileiro.

Como costumo escrever, a geopolítica é bastante complexa e coloca o Brasil em situação favorável, o que pode levar a Casa Branca a minimizar as críticas ao Itamaraty em nome de algumas características importantes; o Brasil tem se firmado como líder regional, mesmo a contragosto de competidores importantes – casos de México e Argentina; e um ponto que tem sido completamente esquecido é a dedicação local aos combustíveis alternativos.

Este é um ponto que tende a se tornar ainda mais importante a partir de agora para a administração Obama. O investimento na área não é apenas uma bandeira teórica que reafirma a diferença deste presidente americano em relação ao antecessor e ao Partido Republicano. Hoje esta é uma questão urgente, como mostra reportagem do New York Times.

“Combustível fóssil é a importação número um para o Afeganistão. Para proteger este carregamento, afastamos as tropas de seus principais objetivos no território: lutar ou se dedicar à população local”, diz Ray Mabus, secretário da Marinha e ex-embaixador na Arábia Saudita.

Ou seja, como maior produtor de etanol no mundo, as perspectivas de negócios brasileiros são muito animadoras. Ainda mais se levarmos em conta que a presença americana no Afeganistão não deve ser encerrada em curto prazo. Se de fato a ideia do Itamaraty é exercer práticas externas independentes e pragmáticas, perceber esta grande oportunidade pode ser uma forma de aplicar o discurso ao mundo real. Sem a menor dúvida, aliados como o Irã, por exemplo, não aprovariam tal interação entre Brasília e Washington.

Uma análise criativa feita pelo jornalista Vinod Sreeharsha aposta num governo de perfil internacional menos ativo, se Dilma for eleita.

“Enquanto o carisma de Lula é difícil de ser batido, Rousseff é considerada uma intelectual disciplinada. Assim, é pouco provável que ela empenhe esforços em ousadas iniciativa na área de política externa. Isso pode ajudá-la a se relacionar com Obama”, escreve.

Apesar de considerar esta visão interessante por seu pioneirismo, não acredito que Dilma represente qualquer mudança nas diretrizes internacionais brasileiras. Até porque os maiores estrategistas do governo atual devem permanecer em seus cargos, casos de Marco Aurélio Garcia e Celso Amorim – este último o ministro das Relações Exteriores que ocupa a pasta há mais tempo em toda a história da república.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A política internacional no caminho das eleições brasileiras

No dia seguinte às eleições, aproveito para fazer um mea-culpa: ao contrário do que imaginava, as decisões externas do governo Lula não tiveram qualquer influência nas discussões até este momento. Se Dilma já tivesse sido eleita, esta seria uma verdade absoluta. No entanto, talvez, em novos encontros entre os dois primeiros colocados, a questão acabe aparecendo.
 

Correndo o risco de errar novamente, acho que esta é uma perspectiva real. Primeiro por conta da natureza da campanha até agora. Se os candidatos trocaram algumas farpas, os assessores políticos e publicitários tentaram ao máximo evitar um clima de confronto direto. Por mais que muita gente goste do vale-tudo, pesquisas refletem a opinião do eleitorado de que o período de debates deve ser aproveitado para confrontar ideias - acho que existe uma certa vergonha dos entrevistados em admitir que rusgas mais violentas costumam sarisfazer bastante.

 

De qualquer maneira, o clima um tanto harmonioso do primeiro turno deve ceder lugar ao embate direto. Ainda mais porque Dilma pretende se colocar como a antítese de Serra. O representante do PSDB, no entanto, tem tentado se posicionar como o candidato melhor preparado para o cargo, mas que ao mesmo tempo é capaz de reconhecer os avanços da atual administração. Daqui para a frente, com posicionamentos mais claros e obrigados a partir para o tudo ou nada - e isso vale mais para Serra, que precisaria, em tese, de todos os votos de Marina para se eleger -, a tendência é que o confronto aconteça.

 

E aí acredito que Serra possa colocar sobre a mesa as decisões internacionais que o Brasil tem tomado nos últimos oito anos. Este é um ponto que polariza as duas candidaturas. Acho interessante ilutrar o caso com o resultado da votação de brasileiros no exterior: brasileiros que vivem em Israel elegeram Serra, de acordo com dados da embaixada em Tel-Aviv; os que vivem nos territórios palestinos deram a vitória a Dilma, segundo informações da embaixada em Ramallah. Apesar de a amostra ser insignificante diante da massa de eleitores brasileiros, é curioso notar como há polarização em relação ao posicionamento para aquela região a partir das atitudes brasileiras.

Mas é preciso deixar claro: a política internacional pode ser apenas um dentre os muitos pontos de discussão neste segundo turno. Até porque a grande maioria das pessoas ou não se importa com a questão ou não faz sua escolha sob este ponto de vista.


Mudando um pouco de assunto, percebi que algumas publicações internacionais conseguiram enxergar as nuances das eleições brasileiras. No caso do britânico Guardian, por exemplo, a matéria principal cita as especulações sobre o posicionamento de Dilma em relação ao aborto e informa que este foi um fator importante para a ascensão de Marina. Este tipo de jogo acabou por afastar a candidata do PT de uma fatia importante do eleitorado: os evangélicos.


Ao contrário do que muita gente imagina, o voto no PV não se restringiu a uma massa crítica às políticas de sustentabilidade - um voto de "vanguarda". A boataria em torno das opiniões de Dilma sobre uma questão que ainda é crítica para uma parcela considerável da população brasileira acabou por levar o pleito para o segundo turno. É impressionante como, às vezes, publicações estrangeiras conseguem detectar as estratégias - muitas vezes, sujas - da política nacional.