A morte prematura do ex-presidente argentino Néstor Kirchner conseguiu silenciar temporariamente seus mais ferrenhos adversários. Não apenas as figuras políticas que se opunham a ele, mas também os grandes grupos de comunicação do país. A cobertura brasileira sobre o governo argentino é um tanto restrita e privilegia, principalmente nos últimos tempos, as tentativas da presidente Cristina Kirchner de discutir o setor de mídia. Dias antes de o marido morrer, inclusive, a líder argentina propôs a "nacionalização" da imprensa do país.
Curiosamente, a ausência de Néstor não permitiu apenas uma trégua neste embate, como contribuiu para que as ações do Grupo Clarín subissem 40%. A troca de acusações mútuas entre governo e imprensa é apenas uma parte das grandes brigas que o ex-presidente decidiu levar adiante. Se por aqui existe uma tentativa de discutir seu legado, é preciso lembrar algumas de suas posições mais contundentes que de fato o colocam na posição de um dos mais corajosos líderes recentes latino-americanos.
Ao assumir em 2003, durante a maior crise da história do país, Kirchner enfrentou não apenas os dados econômicos muito desfavoráveis, mas colocou em pauta a discussão sobre os abusos do regime militar que governou a Argentina. Pôs de lado a anistia, e estabeleceu dezenas de julgamentos envolvendo as figuras locais que participaram dos muitos abusos aos direitos humanos. Este tipo de assunto é um tabu por aqui e os arquivos das forças armadas contendo informações sobre presos políticos permanecem fechados.
As medidas políticas e econômicas que tomou também foram fundamentais para tirar a Argentina da recessão. Kirchner herdou um país abandonado por cinco presidentes que assumiam seus cargos e os deixavam com a mesma rapidez. Não apenas isso, mas recebeu o Estado falido de todas as formas. A desvalorização provocou um débito de 95 bilhões de dólares, e o desemprego atingia 21% da população (para efeito de comparação, a atual taxa brasileira está em 6,2%). A solução mais óbvia seria pedir a ajuda do FMI, mas ele fez exatamente o contrário.
Em setembro do mesmo ano que assumiu, Kirchner decidiu deixar de pagar as dívidas contraídas com a instituição financeira. Para levantar fundos, como lembra a Economist, o governo retomou a gestão do sistema previdenciário e usou parte das reservas do Banco Central. Se Lula tivesse feito o mesmo por aqui, seguramente teria sido deposto. Melhor do que ocorrido na Argentina, é inverter a lógica e tornar o FMI devedor do Brasil.
Seja como for, se a situação não é a ideal, a melhora é visível: 11 milhões de pessoas (dos 40 milhões de argentinos) saíram da linha de pobreza e, em 2008, a taxa de crescimento foi de 8%. Não é pouco. Ainda mais se for considerado o estado de falência em que a Argentina se encontrava cinco anos antes. É por tudo isso que Kirchner será lembrado.
Um comentário:
"Nos dê grandeza e um pouco de coragem" já cantava Cazuza. Continuaria cantando, porque até hoje o Brasil é governado por essa gente careta e covarde, enquanto que na Argentina esse tipo de gente, como Carlos Menem e Domingo Cavallo (e o próprio Fernando De Ls Rúa) foram escorraçados da opinião pública que os identificou como os arquitetos do desastre argentino, logo o país que era a menina-dos-olhos do "Consenso de Washington". Talvez o mérito de Néstor Kirchner tenha sido o de compreender que quando estamos no fundo do posso, só podemos subir. O Brasil nunca se deu conta disso, e nós somos um buldogue em riquezas perto da Argentina. Estivemos no fundo do poço no Governo Figueiredo, chafurdamos no fundo do poço no Governo Sarney que fazia questão de roer a corda que a democracia nos atirava para que pudessemos subir pra fora, forçando todo o país a ficar nas trevas em que o presidente neo-coronelistas havia se enterrado, e no Governo Collor simplesmente fizemos no fundo do poço uma filosofia de vida, promovendo ao centro do poder o que há de pior na escória civil nacional. O trinômio Itamar-FHC-Lula só subiu porque pisou nas costas e nos ombros da população: enquanto nossas riquezas eram vendidas e os títulos podres faziam a festa, o povo teve que engolir o fator previdenciário, a Desvinculação da Receita da União (o que mantém a nossa Saúde e a nossa Educação em estado de calamidade a ponto do candidato Zérra do PSDB fazer disso seu carro-chefe de campanha, como se não tivesse sua frta cota de culpa no cartório), e salários foram arrochados por longos períodos, ao mesmo tempo em que se desmobilizava os sindicatos por bem (Lula) ou por mal (FHC). O resultado é que nossas instituições continuam desmoralizadas, a distribuição de terra continua sendo a mais desigual do mundo, os serviços públicos continuam com péssima qualidade, as milícias tomaram conta da política de vários estados, inclusive no RJ outrora tido como "moderno", o déficit habitacional continua enorme, o meio-ambiente foi impiedosamente brutalizado para não permitirmos desacelações no PIB e a nossa taxa de juros bate recordes planetários. A juventude, sobretudo na periferia, mantém altíssimos índices de mortalidade violenta, e as poucas conquistas que tivemos nesses dezoito anos foram fruto da nossa grandeza humana e da capacidade de superação de nosso povo e de uma coleção sem paralelos de riquezas naturais e minerais. Com essa combinação de cartas, mesmo o convencionalismo dos caretas consegue arrastar algumas fichas, a despeito de graus maiores (FHC) ou menores (Lula) de medíocre bê-a-bá político. Não conheço a realidade argentina, mas me parece que partindo de um ponto ainda mais grave do que o nosso (mesmo na estagflação do Delfinato, no Plano Verão mailsoniano e do Plano Collor zelíaco), me parece que em sete anos eles avançaram num ritmo maior que os nossos dezoito anos de conservadorismo competente. Sobre nossos três últimos presidentes, podemos dizer que foram melhores do que os três anteriores, paladinos do conservadorismo INcompetente. Mas todos os três vieram em fortíssimos quadros institucionais: uma Constituição sólida capaz de escorar um impeachment após a primeira eleição de sua vigência e o escândalo da CPI do Orçamento. Covernsamente, Itamar a parte, fizeram prejuízos quase irreparáveis a esse mesmo quadro constitucional. Não tenho um conhecimento próximo do impacto de Néstor Kirchner, mas é fato irrefutável que as instituições argentinas enfrentaram um nadir surreal, com seis renúncias em um ano--literalmente era um país que ninguém queria governar, e que o patife do Carlos Menem recusou inclusive a lhe permitir um segundo turno nas eleições presidenciais. As condições em que Néstor Kirchner recebeu o país não poderiam ser menos auspiciosas e promissoras. A Argentina pode ter vários problemas hoje, mas às vezes o melhor que um país pode esperar de D'us é que sua qualidade de problemas mude. No caso, da categoria cataclísmica à convencional.
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