sexta-feira, 29 de abril de 2011

Casamento real: discurso político recheado de sonho

Seria um tanto estapafúrdio de minha parte forçar a barra e buscar elementos geopolíticos no casamento real britânico. A festa toda foi muito bonita, os corações mais sensíveis viveram momentos mágicos (adjetivo especial do dia) e nenhum Shrek apareceu para puxar Kate pelos cabelos e levá-la para Tão, Tão Distante. Mas se garimpar sinais estratégicos no evento é mero exercício de especulação vazia, o amor do casal do ano e tudo que envolve tal evento merece um exame com olhar mais político.

O Reino Unido recebeu uma injeção de ânimo. E quando digo isso não me refiro somente à excitação popular nas ruas, mas ao próprio conceito de Reino Unido. Bandeiras de Escócia e Irlanda, cujos movimentos separatistas são bastante ativos, estavam presentes à festa, numa espécie de chancela voluntária e popular de união sob a coroa britânica. Sem entrar no mérito dos argumentos, o amor de Kate e William quebra paradigmas políticos de alguns.

Se o Império Britânico existe apenas nos livros de história, nunca é demais lembrar que a Commonwealth ainda é uma realidade. Composta por 55 países, 53 de seus membros têm laços históricos com o Reino Unido, sendo que 15 deles – ainda hoje – têm como chefe de Estado ninguém menos que Sua Majestade, a Rainha. Por mais que haja um mantra quanto ao vazio de poder da família real, não é fácil encontrar por aí uma Rainha chefe de 15 países (por mais que seu poder seja simbólico, como cansaram de repetir os porta-vozes oficiais de lugar-comum).

Vale mencionar também que o grande show que se viu nas ruas de Londres foi, além de uma celebração ao “amor”, uma parada patriótica. Aviões de combate que ajudaram a derrotar as forças nazistas na Segunda Guerra Mundial sobrevoando a realeza. Existe algo capaz de reforçar com tanta propriedade a identidade nacional britânica?

Para completar, uma conjunção de acontecimentos reafirma o poder da monarquia – por mais que comentaristas britânicos tentem negar isso. Como sempre escrevo, vale a percepção. E, neste caso, a percepção vem acompanhada de evidências. O maior evento da realeza desde o casamento de Diana e Charles, em 1981, acontece justamente durante o período de maior crise econômica na Grã-Bretanha. A festa de Kate e William provocou aumento de 40% nas vendas e 107 milhões de libras em gastos de visitantes.

O bom momento da monarquia é acompanhado do péssimo momento do governo conduzido pelo primeiro-ministro David Cameron. Em novembro do ano passado, ele anunciou o maior pacote de austeridade do pós-guerra. Na prática, o termo austeridade é usado para dourar a pílula de medidas que, no fim das contas, só prejudicam a população comum: são previstos cortes de 490 mil empregos públicos e redução do orçamento em quase um quinto até 2015.

Na realidade, existe uma mensagem subliminar em tudo isso. O parlamentarismo, hoje, é o porta-voz das más notícias, da gestão que prejudica as pessoas; a monarquia enche as ruas, injeta dinheiro na economia e, principalmente, concretiza o imaginário coletivo de sonhos. Está muito claro qual discurso é o vencedor. Mesmo que esta disputa seja mero fruto da circunstância.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

As muitas razões que levaram Hamas e Fatah a fechar o acordo de união nacional palestino

Hamas e Fatah, os dois grupos de maior representatividade entre os palestinos, anunciaram nesta quarta-feira um acordo de união nacional. Segundo comunicado, todas as rivalidades foram superadas e seus líderes estão dispostos a formar um governo de união nacional para anunciar eleições gerais a serem realizadas no prazo máximo de um ano. A notícia pegou de surpresa não apenas os próprios palestinos, mas também os demais interessados no assunto: Israel, EUA, União Europeia e todos os muitos atores internacionais interessados no conflito árabe-israelense e na disputa particular entre israelenses e palestinos.

Foto: No Cairo, representantes dos dois grupos anunciam o acordo
Há muitas interpretações sobre os cenários futuros a partir de uma mudança tão profunda. E digo isso porque, de 2007 até agora, Hamas e Fatah foram inimigos práticos e teóricos. O Hamas passou a controlar Gaza, de onde expulsou os militantes do Fatah, e manteve o discurso radical condenando a própria existência do Estado de Israel. Neste meio tempo, ainda entrou em confronto armado com os israelenses (na guerra de dezembro de 2008). Já o Fatah reforçou sua posição diplomática e o controle político e burocrático da Autoridade Palestina.

De repente, ambos anunciam um acordo completo. Os quatro anos de batalha física e verbal foram esquecidos. Uma nova era está por vir. Como ex-namorados reconciliados, o passado deve permanecer no passado. Nada de perguntas ou cobranças sobre relacionamentos anteriores. Para quem acredita em contos de fadas, sugiro abandonar a leitura deste texto e buscar todas as muitas notícias disponíveis sobre o casamento real britânico.

No caso palestino, a realidade é pragmática. Escrevi sobre a grande derrota recente da Autoridade Palestina: o constrangimento causado pela divulgação de documentos secretos pelo WikiLeaks dando conta de ofertas injustificáveis aos palestinos comuns, como abrir mão de reivindicar a soberania por toda a Jerusalém Oriental. Para quem não está lembrado, o vazamento segmentado promovido por Julian Assange aconteceu em janeiro deste ano. Ainda é uma ferida aberta principalmente sob o ponto de vista dos principais negociadores palestinos envolvidos no imbróglio.

As lideranças da Autoridade Palestina só se mantiveram em seus cargos porque tiveram muita sorte. E esta sorte passou a ser conhecida como a “Primavera Árabe”, a onda de manifestações populares que todo mundo tem acompanhado. Só tais eventos tiveram dimensão grande o bastante para eclipsar as informações contidas nos documentos. Se eles nunca tivessem existido, fatalmente a cúpula palestina já teria caído, e a Cisjordânia seria palco de uma grande insurreição popular.

Os líderes do Fatah sabem disso. O mesmo vale para a liderança do Hamas. A união anunciada agora só foi possível porque os grupos se equivalem em perdas e ganhos. O Hamas não tem legitimidade internacional. Por mais que hoje o grupo tenha se afirmado como ator regional relevante, seus métodos e discurso radicais impedem o salto de qualidade político. O Fatah tem legitimidade, tornou-se a principal força da Autoridade Palestina e o interlocutor oficial dos palestinos. Mas perdeu Gaza para o Hamas e, por isso, na prática é um governo que controla a metade do território. O Fatah perde sempre nas negociações com Israel porque, de fato, não pode assumir compromissos sobre Gaza, justamente o ponto nevrálgico das relações entre israelenses e palestinos. Afinal, é de lá que são lançados os mísseis que atingem a parte sul do Estado judeu.

Fatah e Hamas decidiram se unir neste momento devido às questões listadas acima. Mas não somente por conta delas. Se há algo que atemoriza os dois grupos da mesma maneira é a possibilidade de sublevação interna. Se as manifestações no mundo árabe salvaram as cabeças dos líderes da AP num primeiro momento, protestos por democracia, eleições livres e periódicas e imprensa livre soam mal aos ouvidos de militantes de Fatah e Hamas. Ao anunciar um governo de união nacional e já fixar um prazo para a realização de um pleito geral, as lideranças políticas palestinas tentam furar a onda que tomou os países árabes. Afinal, se ela alcançou um regime tão policialesco como o da Síria, por que também não se espalharia por Cisjordânia e Gaza?

E por último, mas não menos importante, a AP conduz um movimento sério de buscar reconhecimento internacional ao Estado palestino. A ideia é declarar a constituição formal do país em setembro, na assembleia geral da ONU. Esta seria a maior vitória política desde a criação da Autoridade Palestina, em 1994, após os Acordos de Oslo. Certamente, o Hamas não quer ficar de fora dessa. Se continuasse a se contrapor ao Fatah, poderia ser percebido domesticamente como contrário ao Estado palestino, o sonho nacional da maior parte dos palestinos – e isso inclui a população que vive em Gaza sob o governo do Hamas.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

EUA pegam leve com a Síria e pagam com exposição internacional

Até pouco tempo havia a impressão de que a situação na Síria era contornável. Manifestantes acompanharam a tendência regional e saíram às ruas para exigir reformas, o presidente sírio foi duro e conseguiu se manter no poder graças a seus velhos aliados políticos, 30 pessoas foram mortas. Essa escalada de acontecimentos não garantia de nenhuma maneira o fim do caos, mas dava a impressão de que discurso e prática institucional desmotivariam um pouco a população insatisfeita. Isso não aconteceu. E a situação na Síria se transformou num problema não apenas de Bashar al-Assad mas também das potências ocidentais.

Os focos de manifestação se multiplicaram. O número de mortos está na casa dos 400. Todos esses elementos ressaltam a grande contradição internacional. Quem se lembra da reação da secretária Hillary Clinton na primeira vez em que os EUA se posicionaram oficialmente sobre a crise síria? Pois é, a principal autoridade de política externa da maior potência do planeta classificou Assad como “reformista”. Ou seja, para ser bastante objetivo, cada nova morte provocada pela repressão de Damasco, cada nova imagem divulgada de tanques do exército partindo para cima dos manifestantes simplesmente ressalta a declaração de Hillary Clinton.

Já escrevi inúmeras vezes que a política é marcada por incoerência. Até porque o realismo dos países muitas vezes determina suas escolhas. O problema é que, por mais que seja claro que este exercício de articulação está na raiz das decisões, ninguém quer ser exposto desta forma. Mas vale mencionar também que o temor americano em pôr mais fogo na situação síria tem lá seus motivos; Damasco é uma peça estratégica no tabuleiro de alianças regionais do Oriente Médio. E a Casa Branca estava empenhada em forjar laços com Assad para impedir que ele se aproximasse ainda mais de Mahmoud Ahmadinejad. Como sinais de relaxamento, valiosas ofertas americanas: a reabertura da embaixada dos EUA na capital síria e, muito importante, a decisão de Obama de suspender a oposição à participação de Damasco na Organização Mundial do Comércio (OMC) no ano passado (o país árabe passou de excluído a observador).

Para completar, é preciso comparar as reações de Washington aos distintos movimentos populares. No caso egípcio, após o silêncio inicial, os EUA pediram que o então aliado Hosni Mubarak deixasse o cargo. Na Líbia, lideraram a articulação política que culminou na ofensiva ainda em curso; em Bahrein, Arábia Saudita e Iêmen, mostraram pouco entusiasmo a apoiar as reivindicações por conta das alianças estratégicas que mantêm com os governantes locais. A Síria é o único caso de um Estado hostil, mas onde, mesmo assim, a onda de oposição não mereceu franco apoio americano.

Para se ter ideia do cuidado de Washington ao lidar com esta situação específica, vale dizer que, mesmo com o aumento da violência e do número de mortos, o tom dos comunicados oficiais continua comedido: “Convocamos o presidente Assad a mudar de curso agora e atender aos pedidos de seu próprio povo”. Diante do apego ao realismo político, a opção por tal delicadeza não chega a surpreender. Mas é difícil justificar tal diretriz, principalmente quando comparada a eventos semelhantes, mas que mereceram tratamento muito mais enérgico.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Guantánamo, discurso político do WikiLeaks e a notícia por trás da notícia

Analistas e a grande imprensa ainda não conseguiram extrair a notícia intrínseca aos novos documentos vazados pelo WikiLeaks sobre a prisão de Guantánamo: é preciso entender o papel da organização de Julian Assange e como ela encontrou papel único, novo e relevante neste novo mundo. O site não é um veículo de informação tradicional e nem pretende assumir tal condição. O WikiLeaks é hoje um ator relevante no cenário internacional.

Assim como Estados e grandes organizações privadas, Assange criou um pilar geopolítico contemporâneo. E aí vale um passo atrás para explicar tal constatação; parte das guerras recentes não teve como protagonistas apenas exércitos nacionais. Foi assim em dezembro de 2008, quando Israel e Hamas se enfrentaram em Gaza; da mesma forma em 2006, quando o Hezbollah enfrentou Israel no confronto que ficou conhecido como a Segunda Guerra do Líbano. As disputas armadas entre Estados nacionais e organizações paramilitares de ideologia e prática radical têm marcado o início do século 21. E vale dizer que os EUA permanecem em guerra contra a al-Qaeda – já devidamente metamorfoseada em franquia – e o Talibã.

Casos simbólicos da nova estrutura política do Oriente Médio, al-Qaeda, Hamas e Hezbollah têm objetivos mirabolantes. No fundo, sabem da improbabilidade de alcançá-los. No entanto, as batalhas que travam nesses tempos apresentam vitórias indiscutíveis: todos eles conseguiram se afirmar como atores regionais incontestáveis cujas agendas se tornaram conhecidas mundialmente. Hoje, não é possível discutir seriamente cenários e possibilidades a Afeganistão, Paquistão, Gaza e Líbano sem mencionar todos esses grupos.

Por mais estranho que pareça, a situação do WikiLeaks é semelhante. O site não conta com simpatizantes ou militantes armados, mas seu objetivo é muito claro: pôr em discussão sua própria agenda internacional. E ninguém questiona como as informações distribuídas por Assange são capazes de mobilizar governos e a grande imprensa. O atual imbróglio envolvendo os documentos secretos de Guantánamo é circunstancial. Ao expor os enganos cometidos em Guantánamo e detalhes do tratamento dispensado aos prisioneiros, o WikiLeaks conseguiu retomar a discussão sobre o fechamento da prisão americana em Cuba – determinado por Obama em 22 de janeiro de 2009, mas ainda longe de ser concretizado.

E mais: colocou no mesmo saco o atual presidente e o anterior, George W. Bush, forçando a Casa Branca a emitir comunicado em que faz questão de deixar claro que muitos dos documentos dizem respeito aos anos de governo republicano. Do ponto de vista da imprensa, Julian Assange conseguiu pautar as discussões sobre a guerra ao terrorismo justamente dez anos depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. Antes da publicação do primeiro editorial em recordação dos trágicos eventos ocorridos em solo americano, o WikiLeaks divulga informações incômodas sobre a prisão que se transformou no principal alvo de críticas de organizações de direitos humanos. É um petardo de discurso.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Guantánamo: símbolo da urgência americana por respostas ao 11 de Setembro

Acho difícil negar o que vem se tornando óbvio nos últimos tempos: o WikiLeaks, organização privada de Julian Assange cujo objetivo é divulgar documentos secretos governamentais, mudou o cenário político internacional. Além desta conclusão que não é nada precipitada por mais que os eventos tenham se acelerado bastante, vale dizer que os EUA são o principal alvo de Assange. E não apenas por conta das ideologias do criador do site, mas também porque na condição de maior potência planetária é até natural que o país esteja mais suscetível aos vazamentos. Como Washington está no centro de todas as grandes decisões mundiais, a extensão de seu telhado de vidro é compatível com sua atuação internacional.

Agora, o WikiLeaks apresenta sua mais nova descoberta: 700 documentos militares confidenciais sobre a prisão americana de Guantánamo, em Cuba. Há muito material interessante que superexpõe a administração americana do centro de detenção que, após os atentados de 2001, se transformou em símbolo da guerra americana ao terror, por um lado, e dos equívocos práticos e teóricos que se seguiram a tal empreitada, por outro.

Os documentos divulgados aos principais jornais do mundo comprovam não apenas as complexidades de Guantánamo, mas também as dificuldades encontradas pelo Ocidente (e particularmente pelos EUA, claro) para entender a geopolítica posterior ao 11 de Setembro. O papel da Casa Branca ainda é intrinsecamente contraditório: se foi convocada a protagonizar esta batalha – porque o território americano foi o alvo primário desta oposição –, também é confuso, na medida em que continua a tatear no escuro.

Por conta desta incongruência – e considero esta uma das características mais simbólicas do período atual –, os documentos vazados pelo WikiLeaks acabam por ilustrar dois presidentes (Bush e Obama) à frente de um país em busca de respostas, à procura de uma nova estratégia internacional diante de um cenário completamente desconhecido e novo e, muito importante no caso de Guantánamo, obstinado por preencher a ânsia doméstica por uma espécie de vingança.

Mas se há uma característica comum a Bush e Obama é a incapacidade de estabelecer objetivos internacionais claros. Escrevi bastante sobre o equívoco inicial da ofensiva à Líbia: não determinar o que deveria ser considerado como vitória. Na guerra ao terror iniciada por Bush, o raciocínio é o mesmo. Simplesmente, ela não tem fim. Capturar ou matar Bin Laden, derrotar o Talibã no Afeganistão, prender todos os terroristas da al-Qaeda seriam suficientes para dar ponto final à ameaça contra cidadãos americanos ou mesmo evitar ataques aos EUA? Certamente não. Esta é uma questão que está na raiz da existência da prisão de Guantánamo e do que se passa por lá.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Interesses egípcios ao flertar com o Irã

Costumo comparar o Oriente Médio a um conjunto de placas tectônicas em constante atividade. Há períodos de dormência e tranquilidade – como acontecia até bem pouco tempo no caso do conflito entre israelenses e palestinos – , há períodos de graves movimentações. As manifestações populares marcaram o início desta efervescência ainda em curso. Alguns dos países estão passando por um momento distinto: como depois de grandes terremotos, é preciso recomeçar a vida.

Esta é a situação do Egito. Após a queda de Mubarak, a tensão agora tem muitos outros motivos: reorganizar o país, buscar novas estruturas políticas, acalmar a população ansiosa por mudanças de verdade. No meio disso tudo, a política externa exerce função fundamental. E há sempre atores dispostos a apoiar mudanças geopolíticas regionais. Adivinhe quem?

Antes, uma lembrança do posicionamento egípcio durante as décadas de mandato do presidente deposto: o país era aliado dos EUA, mantinha um frio acordo de paz com Israel e se opunha ao Hamas em Gaza – isso porque o movimento era a representação palestina da Irmandade Muçulmana egípcia, grupo que, até as manifestações populares, era a voz da oposição interna a Mubarak. Num cenário um pouco mais amplo, o Egito era um importante pilar da aliança sunita que mantinha os governos de Jordânia e Arábia Saudita próximos aos americanos.

De volta à pergunta do segundo parágrafo, acertou quem respondeu Irã. Para a República Islâmica, quase toda mudança é encarada como oportunidade de diminuir o poder sunita e reforçar a percepção hegemônica regional iraniana. Por conta disso, partiu da própria imprensa estatal do país a notícia de que Egito e Irã estariam prontos para retomar relações diplomáticas após 30 anos de rompimento – para lembrar, o Irã deixou de se relacionar com o Egito a partir do momento em que o governo do Cairo reconheceu Israel diplomaticamente.

Algumas interpretações sobre o gesto político egípcio entendem que ele funcionaria como alerta principalmente aos EUA. Os egípcios estariam em busca de novos e poderosos mecanismos de influência para serem apresentados diante de americanos e israelenses. Isso pode incluir, por exemplo, papel mais ativo no processo de paz ou até a revisão da já significativa ajuda econômica fornecida anualmente por Washington. Não acho que esta leitura esteja equivocada. No entanto, acho que a interpretação pode ir mais além.

A origem do bem sucedido movimento popular egípcio era a insatisfação com o presidente Hosni Mubarak. Portanto, nada melhor do que alterar a percepção popular sobre a política externa. Isso não apenas serve para atender aos objetivos estratégicos de renegociação, mas também apresentam algo de novo à população. Flertar com o Irã é o tipo de ação óbvia capaz de ser compreendida facilmente pela massa egípcia. E, de quebra, satisfaz sem exigir grandes mudanças domésticas, como reformas políticas, eleitorais, de imprensa e emprego. É mudar sem mudar.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Utopia líbia

Chegou a hora da decisão na Líbia. Ao contrário do que se supunha, o exército de Khadafi não é tão fraco assim. Ao mesmo tempo, a Otan não dispõe dos meios necessários para derrotar as forças leais ao ditador. Para complicar ainda mais, o número de mortos no conflito já passa de dez mil. Há também 55 mil feridos. Ou seja, será preciso se expor mais de forma a reverter o quadro. E a exposição certamente provocará mais mortes. O fator político tampouco contribuiu: enquanto Reino Unido e França lutam por mais sanções, China, Rússia e Índia fazem o que podem para impedir que elas sejam implementadas.


Erros importantes foram cometidos desde o início da ofensiva, há um mês. O primeiro deles foi não definir o que representaria uma vitória na Líbia; derrubar Khadafi? Outorgar o poder aos desconhecidos rebeldes? Forçar Khadafi a promover algum tipo de democracia?


Outro ponto muito importante: os EUA capitanearam uma guerra meia-bomba (com o perdão do trocadilho). Conseguiram a aprovação da resolução na ONU, argumentaram que não se poderia assistir ao banho de sangue de civis sem qualquer tipo de reação e conseguiram forjar uma aliança internacional de forma a proteger os cidadãos líbios da fúria de seu presidente. Esta justa premissa repete, na prática, o grande problema da operação na Líbia: “proteger civis” é uma expressão vaga e remete à questão inicial: é possível proteger civis sem derrubar o regime?


Ninguém admite isso, mas a estratégia na Líbia é simplista: esporádicos ataques aéreos de alguns membros da Otan sobre estruturas militares de Khadafi. Os comandantes militares à frente da operação e os líderes políticos que defenderam a ofensiva alimentavam a esperança de que este tipo de ação fosse suficiente para provocar a rendição do líder líbio. E como percepção vale mais que realidade, nenhum dos países envolvidos levou muito a sério a necessidade de, diante desta limitação logística, oferecer a Khadafi alguma alternativa – leia-se, asilo e liberação de ao menos parte de seus bens.


Mas a coalizão internacional não admite perder nada. Não quer se expor numa guerra de verdade – em que lideranças ocidentais enfrentariam problemas políticos domésticos, uma vez que precisariam justificar gastos e eventuais mortes de seus soldados numa nova aventura militar no Oriente Médio –, mas tampouco está disposta a negociar com o controverso Khadafi, uma vez que os rebeldes já deixaram claro que este não é o cenário que imaginam. E esta possibilidade constrangeria os governos de EUA e de países europeus que não poderiam negar que mantiveram algum contato com o ditador e acabaram cedendo a parte de suas demandas.

A realidade mostra que não existe negociação sem algum tipo de derrota. A não ser no caso de uma guerra aberta, situação que os aliados não parecem dispostos a bancar. Por isso, neste momento, a Líbia é hoje um cenário utópico, no sentido original do termo: o não-lugar.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

WikiLeaks ataca novamente e expõe EUA

Se a situação na Síria já estava ruim, agora deve piorar ainda mais. Segundo documentos repassados pelo WikiLeaks ao Washington Post e publicados pelo jornal americano, os EUA têm ajudado financeiramente a oposição a Bashar al-Assad. As informações revelam um suposto repasse de seis milhões de dólares a um movimento sírio favorável à democracia. As novidades não terminam por aí. Segundo os documentos, esta prática foi iniciada durante o governo Bush e mantida pelo presidente Obama. Há algumas leituras necessárias sobre isso.

Todo mundo conhecia a política externa de Bush. Não chega a ser uma surpresa que ele tenha financiado grupos adversários a Assad. O caso de Obama é diferente. Washington tentava uma aproximação com Damasco, tendo inclusive tomado passos práticos, como a reabertura da embaixada americana no país (fechada há cinco anos). Assim, por mais que o comentário da secretária Hillary Clinton após as primeiras manifestações populares na Síria (quando classificou Assad como um “reformista”) tenha repercutido mal, havia alguma coerência na política externa dos EUA: a Síria estava nos planos.

E isso fazia sentido. Como costumo escrever, aproximar a Síria do Ocidente era aplicar um golpe de difícil assimilação à aliança xiita liderada pelo Irã. Agora fica claro que Obama trabalhava com dois cenários simultâneos. Talvez por saber que não podia confiar nas intenções de Assad. E ao mirar num dos lados, acabou por acertar outro: as recentes derrubadas dos governos de Tunísia e Egito expuseram um erro grave da estratégia americana. Nesses dois casos, os EUA se viram entregues ao rumo dos acontecimentos e completamente perdidos no processo de reformulação dos países porque passaram 30 anos absolutamente fiéis a regimes autoritários. Erraram feio ao imaginar que a situação duraria para sempre. Quando as lideranças dos dois países foram depostas, Washington estava sem ninguém.

Ao financiar alguma oposição síria, a Casa Branca ao menos garante acesso num eventual novo cenário no país. Por querer ou por acaso, é uma estratégia que tenta evitar a repetição de erros cometidos. O problema é que a divulgação desta ajuda americana pode comprometer a espontaneidade do processo. Certamente, Assad irá reforçar o discurso de conspiração estrangeira. Certamente, os aliados xiitas farão o mesmo. Além disso, fica a comprovação de que, mais uma vez, o WikiLeaks é um ator de influência geopolítica que não precisa disparar uma bala sequer para mudar o curso da história.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Reunião dos Brics provoca ciumeira internacional

A reunião dos Brics na China repercutiu além da produção de iPads no Brasil. Claro que a discussão quanto a adesão da África do Sul ao grupo virou assunto importante. Fora isso – e mais relevante, entendo desta forma – comentaristas europeus e americanos procuram relativizar a importância da união dos países. De fato, a consolidação do poder econômico da aliança pode representar num futuro breve uma ameaça concreta ao status quo mundial. E não apenas em relação aos indicadores de comércio, mas também na esfera política.

 

Comentei sobre isso na quinta-feira; a união entre economia e política não representa propriamente uma novidade. Os Brics pretendem fazer uso desta nova dinâmica mundial para reivindicar. E não há nada de errado nisso. No entanto, europeus e americanos não está lá muito confortáveis, claro. É interessante perceber os argumentos que, segundo eles, invalidariam a tentativa de alteração da balança de poder: as muitas diferenças entre os países-membros deste bloco. Brasil, Rússia, Índia, China e – agora – África do Sul não têm nada em comum.

 

De fato, são inquestionáveis as particularidades de cada um desses países. Mas, e daí? Onde está escrito que Estados nacionais precisam ser absolutamente uniformes para alcançar objetivos? Ou para minimamente estarem unidos?

 

Achei muito curioso um artigo publicado no Wall Street Journal que determina: “os Brics não são a União Europeia”. Em primeiro lugar, os Brics não têm qualquer ambição de formar, em última instância, um Estado supranacional. A própria UE está longe de representar exemplo de discurso comum. Vale lembrar que para conseguir aprovação do mecanismo de política externa única os países precisaram de seguidos referendos. E eles foram rejeitados diversas vezes. Mesmo assim, até agora não se pode falar, na prática, em política externa europeia. Basta vez o que está acontecendo neste momento na Líbia, onde França e Grã-Bretanha se mostram desapontadas pela completa falta de empenho de outros países da Otan – principalmente, europeus.

 

E a discordância é natural. Não apenas isso, mas a existência de economias e discursos diversos não invalida qualquer formação política. Principalmente porque países são construções artificiais. Organizações que os unem idem.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Irã volta às manchetes e mexe ainda mais com dinâmica regional

Há muito tempo não escrevo sobre o Irã. A ausência do país por aqui reflete a postura discreta adotada por Ahmadinejad e Khamanei nesses tempos de manifestações populares no mundo árabe. Mas agora isso deve mudar. Não porque Teerã tenha decidido se pronunciar ou agir abertamente, mas porque a imprensa americana fez hoje uma denúncia grave: segundo o Wall Street Journal, a ideia de que as autoridades iranianas estão simplesmente esperando para ver o resultado de todo este processo de mudanças regionais é balela.

De acordo com supostas comunicações interceptadas por espiões americanos, o Irã tem apoiado ativamente as oposições xiitas em Iêmen e Bahrein. Também estaria auxiliando a repressão promovida pelo presidente Bashar al-Assad na Síria.

Não era preciso grande aparato logístico envolvendo pessoal de inteligência para imaginar algo do tipo. Mas tal “mão-de-obra” especializada pode conseguir provar isso. São situações diferentes. Tenho certeza de que os analistas do governo americano estavam seguros de que a república islâmica se movimentaria quando julgasse necessário. E isto acontece agora por razões que tem a ver com a disputa política e militar em jogo no Oriente Médio: a corrida pela liderança entre Estados xiitas e seus aliados ideológicos e países sunitas que contam com o apoio dos Estados Unidos. Sei que este assunto pode parecer chato a muitos leitores porque volto a ele com frequência. Devo dizer, infelizmente, que ele não pode ser ignorado.

E Ahmadinejad e Khamenei tampouco deixam isso de lado. A diferença é que para eles esta é uma questão quase obsessiva. Os países têm metas internacionais distintas. Escrevi ontem, por exemplo, sobre as ambições brasileiras. O Irã não é diferente, mas tem intenções para lá de grandiosas: pretende se firmar como potência hegemônica regional. E, para isso, não mede esforços e precisa muito de aliados com os quais possa contar.

A pretensa vitória iraniana pode ser obtida estrategicamente de duas formas: quebrando a silenciosa coalizão de atores sunitas ou atraindo ainda mais aliados de forma a tornar a região politicamente homogênea (caso de um improvável quadro onde a oposição às ambições iranianas seria irrelevante. Considerando que Israel, EUA e Arábia Saudita jamais estarão no mesmo lado que o Irã, logo esta possibilidade inexiste). No entanto, as autoridades da república islâmica podem tentar minar a estabilidade de Estados sunitas já em combustão. Justamente por conta desta lógica, as supostas descobertas de espiões americanos fariam sentido.

A outra possibilidade complementar gira em torno da manutenção das alianças existentes. Por isso faz sentido também a informação que dá conta do auxílio técnico fornecido pelos iranianos à repressão de Assad. Ninguém discute a importância regional da Síria. Menos ainda, os diferentes tons de cores da aliança formada por Irã, Síria e Turquia. O Irã é a antítese dos interesses americanos; a Síria é um aliado iraniano temido que Washington ainda alimentava alguma expectativa de seduzir; e a Turquia é um gigante islâmico liberal que faz parte da Otan, mas que, nos últimos anos, decidiu se aproximar de Damasco e Teerã sem deixar de lado seus próprios interesses no Ocidente.

O Irã voltou à ativa porque percebeu que corria risco real de perder a Síria. Atrair Damasco era um dos planos de Washington. Por isso Obama não mencionou a repressão aos movimentos populares determinada por Assad, Por isso a secretária Hillary Clinton arriscou a própria imagem ao se referir ao presidente sírio como um reformista. A cúpula de governo americano não quis ter participação na mudança. Agora isso também mudou. E não por acaso depois da divulgação das supostas descobertas dos espiões americanos. Como Washington acredita que a Síria está realmente recebendo apoio iraniano, Assad está fora das possibilidades de atração por ora. Daí a mudança nos termos usados. O presidente sírio deixou de ser reformista e a repressão promovida por ele mereceu o adjetivo “ultrajante” do comunicado oficial divulgado pela Casa Branca. Voltou a ser um inimigo formal.

Com Irã, Síria e EUA empenhados, o tabuleiro do Oriente Médio definitivamente voltou a se movimentar em alto-escalão.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Sobre iPads, China e o Conselho de Segurança da ONU

Considero natural que o resultado mais visível da visita da presidente Dilma Rousseff à China seja a decisão da empresa taiwanesa Foxconn de fabricar iPads no Brasil. Este é o aspecto mais sedutor do ponto de vista comercial. O produto é um dos objetos mais desejados da atualidade e a publicidade trabalha com isso mesmo, desejo. E como os limites entre Jornalismo e publicidade estão cada vez mais tênues, as notícias repercutindo a produção dos aparelhos soaram quase como celebração. Pelo que li, há um tom curioso em boa parte das notícias, como se fabricar iPads representasse uma espécie de passaporte do Brasil ao clube dos países privilegiados. É um pouco isso sim, mas este tipo de exaltação acaba por deixar de lado a grande notícia política do encontro: o apoio chinês à aspiração brasileira a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Textualmente, a declaração formal de Beijing permite diferentes interpretações: “A China atribui alta importância à influência e ao papel que o Brasil, como maior país em desenvolvimento do hemisfério ocidental, tem desempenhado nos assuntos regionais e internacionais, e compreende e apoia a aspiração brasileira de vir a desempenhar papel mais proeminente nas Nações Unidas”.

É claro que há um cuidado muito grande ao se redigir este tipo de texto. Declarações de governos são impactantes de muitas maneiras. Alteram índices econômicos, afetam a percepção externa e podem piorar relações com outros países. E a reforma do Conselho de Segurança é tema delicado porque interessa a muitos países. A ampliação do CS é o maior objetivo do Itamaraty no governo Dilma. Foi também a principal ambição de Lula durante seus oito anos na presidência.

Para a China, política externa é sempre um tema delicado. Como não se pode destacar o assunto de todo o resto, a percepção externa sobre a China considera bastante sua atuação econômica. Se o Brasil de Dilma tem mostrado pragmatismo a partir do uso de sua força econômica para abrir portas políticas, o caso chinês é um pouco diferente. Produtos baratos que invadem e quebram mercados, pirataria massificada e interferência estatal sobre o valor da moeda não podem ser chamados de “aliados” diplomáticos de Beijing, convenhamos. Mas manter o crescimento é a prioridade chinesa, uma vez que, mesmo absolutamente queimada quando se discute direitos humanos ou liberdade de imprensa, ninguém cogita excluir o país dos principais fóruns econômicos e políticos mundiais.

O Brasil tem história completamente diferente. Potência emergente, precisa apresentar credenciais para alcançar sucesso político. O país precisa lutar formalmente pelo reconhecimento que considera devido. Assim, faz uso consciente de seu grande mercado, por exemplo, e do crescimento econômico recente.

Declarações favoráveis à ascensão política internacional brasileira são moedas de troca. E não pode ser ignorado o fato de que, num espaço de menos de dois meses, os dois principais atores econômicos do mundo tenham se colocado ao lado de Brasília – vale lembrar que, quando esteve por aqui, o presidente Obama deu declaração semelhante à chinesa. Mas conseguir reformar o CS é um trabalho de longo prazo mesmo. Afinal, não apenas o país, mas outros tantos lutam pela sua ampliação (a proposta brasileira inclui aumentar o número de cadeiras de 15 para 25).

Se já está óbvio que o mundo mudou e a representação política estabelecida no final da Segunda Guerra Mundial não atende mais, o Brasil precisa continuar em sua árdua tarefa. O tempo é favorável às pretensões do Itamaraty. O sistema internacional simplesmente não é mais o mesmo de meados do século 20 e este já é fato consumado. A formalização desta grande mudança é só uma questão de tempo. Pouco tempo.

terça-feira, 12 de abril de 2011

A França e sua nova política externa

Parece que o imaginário coletivo da humanidade finalmente reconheceu que a política externa da França mudou. Já havia escrito sobre isso na semana passada. Exatamente sete dias atrás, considerava óbvios os sinais enviados por Paris sobre suas intenções internacionais. Para ficar claro: há algumas boas evidências para acreditar que o país está em busca da construção de novos paradigmas, mas ainda é uma incógnita o que pretende fazer com isso.

As atitudes francesas recentes são suficientes para apontar mudanças: os quatro mil soldados que permanecem no Afeganistão, a rapidez com que o governo francês agiu ao se colocar a favor da intervenção na Líbia, o fato de um caça de sua força aérea ter dado início aos ataques contra o regime de Khdafi, a bem-sucedida ação na Costa do Marfim e, para completar, a instituição da lei que impede o uso do véu facial islâmico em público. Certamente, esta última decisão é a mais polêmica dentre as distintas novas diretrizes de Paris.

Diante de tantas evidências, fica difícil não inseri-la num contexto político mais amplo. E digo isso porque, mesmo que não seja parte do novo “livro geopolítico” que Sarkozy tenha decidido aplicar, continuo a afirmar uma certeza particular que repito por aqui com alguma frequência: a percepção vale mais do que a intenção. E não tenham dúvidas quanto as interpretações que os muitos atores envolvidos irão fazer a partir da decisão francesa. Há muita gente disposta a se posicionar sobre isso: os Estados islâmicos, os grupos fundamentalistas islâmicos, as minorias islâmicas europeias e, principalmente, os países europeus que discutem o assunto.

Sarzoky comprou uma briga séria. Basta lembrar o episódio do jornal dinamarquês que publicou charges com a imagem de Maomé, em 2005. Até hoje, a publicação recebe ameaças de grupos fundamentalistas islâmicos.

É impossível prever como esta situação vai transcorrer. Antes de opinar quanto à decisão de Sarkozy, acho válido tentar entender como ela se insere nesta nova diretriz internacional do país. O novo modelo de atuação francesa ainda é muito recente. Como escrevi, não apenas recente, mas muito movimentado. Há muitas hipóteses quanto aos interesses de Sarozky: aumentar popularidade, frear o crescimento da extrema-direita francesa, ser protagonista dos principais palcos geopolíticos etc.

Pode ser tudo isso. E, de fato, a lei que proíbe o véu recebe apoio da maior parte da população e inclusive de partidos de todo o espectro político. Além disso, minimiza a memória recente quanto à passividade diante das manifestações populares contra os regimes de Tunísia e Egito. De qualquer maneira, fica claro que, a partir de agora, a França decidiu se tornar um ator completamente independente. Esta é a mensagem mais importante de todo este movimento.

Interesses e frustrações na Líbia

Aparentemente, há indícios de que o impasse na Líbia se encaminha para algum tipo de solução. Se isto pode ser interpretado como um bom sinal, há tantos outros que mostram como a sangrenta tentativa de derrubada de Khadafi se transformou num caldeirão de múltiplas ambições políticas. Ao contrário de Iraque e Afeganistão, por exemplo, a Líbia é hoje componente tardio da disputa geopolítica. Ou melhor, tardio e inesperado.

Não há nenhuma peça natural nos conflitos regionais do Oriente Médio. Quero dizer com isso que, por mais histórica que seja a disputa entre Estados árabes e Israel, por exemplo, ela não representa de nenhuma maneira uma espécie de fato concretizado. É um importante ponto de atrito ainda sem solução, mas que pode ser resolvido a qualquer momento. Não é porque existe há mais tempo que deve ser encarado como algo dado. Na Líbia acontece da mesma maneira; uma diferença notável, no entanto, é que os eventos regionais recentes se sucederam tão rapidamente que mesmo os atores mais relevantes não estavam preparados para ele.

 

A situação ainda está distante de poder ser interpretada como estável. Mas Estados nacionais e distintos grupos políticos de Oriente Médio, Américas (que tem, por ora, nos EUA seu único representante (?) relevante), Europa e África já tiveram tempo de traçar estratégias para lidar com a realidade que transformou a Líbia em mais um palco de representação e exercício de seus interesses. E todos esses entes – posso nomeá-los assim – querem ter alguma participação na resolução deste conflito.

A Líbia é, neste momento, um espaço de experimentação. Infelizmente, perdoem-me os mais sensíveis, é assim que as potências e líderes regionais enxergam esta realidade. Como se sabe, não são poucos os interessados em atuar no país. As potências estabelecidas, as que querem mais espaço, as que pretendem se consolidar de fato e no imaginário internacional. E, para completar, há linhas de atuação e teóricas completamente distintas entre todos eles. Basicamente, é isso que, em boa parte, torna a solução do conflito tão difícil.

A Turquia quer se estabelecer regionalmente como uma espécie de representante legítima dos interesses políticos islâmicos. E, para isso, conta com seu privilegiado posicionamento geopolítico. Uma de suas maiores credenciais é ser membro da Otan, por exemplo. Isso não é pouco. Inclusive, Ancara recebeu a visita do novo ministro das Relações Exteriores de Khadafi e o país deve ser um dos articuladores da solução negociada para a crise. Alguém imaginaria há 15 anos que qualquer assunto regional hoje não poderia ser discutido ou decidido sem a chancela turca? Pois é, não há nada que dure para sempre em política internacional. O assunto é bem dinâmico mesmo.

Para finalizar as exemplificações, acho que vale mostrar também o momento americano. Todo mundo lembra como no início das manifestações em Tunísia e Egito a Casa Branca preferiu esperar. No caso líbio, Obama foi o principal articulador da aliança internacional que agiu em nome da defesa dos civis inocentes que se transformaram em alvo (e permanecem assim) e também dos interesses dos EUA (palavras do próprio presidente).

E ninguém poderia prever que hoje testemunhássemos uma situação bastante curiosa: no único conflito recente em que Washington agiu com o apoio de parte razoável da população dos países islâmicos e de líderes árabes (a Liga Árabe não consentiu com a intervenção, mas foi favorável à zona de exclusão aérea sobre o território líbio) a força militar de organismos ocidentais (Otan) não daria conta de encerrar o impasse.

É bem possível que haja um clima de frustração em Washington. No fundo, a diplomacia americana quis transformar a situação na Líbia num primeiro passo real de uma eventual reaproximação prática entre os EUA e o mundo islâmico. Mas com a Otan errando a mira e alvejando comboios de rebeldes, é pouco provável que isso aconteça; mais ainda, à medida que o tempo passa e Khadafi permanece no poder, a percepção de que Washington surfou ao lado dos árabes em busca de justiça, liberdade e democracia fica mais distante.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Apesar do crescimento da insatisfação popular, posição de Assad ainda não está ameaçada

Ainda na onda do fenômeno político que ficou conhecido como “Primavera Árabe”, novamente o caso da Síria é exemplar dos distintos impactos das revoltas populares internas. Por ora, é difícil vislumbrar a queda do regime de Bashar al-Assad. É, aliás, pouco provável que, assim como em Egito e Tunísia, a insurgência se torne massificada e bem sucedida. Há tantas características distintas em cada um dos países que agrupar todas as manifestações políticas sob um mesmo slogan atende simplesmente a uma demanda que poderíamos chamar de “publicitária”. Se as revoltas não se transformam em produtos comerciais palpáveis, elas são consumidas como produtos intangíveis.

 

Não acho possível analisar em tão pouco tempo se todo o fenômeno ainda em curso se transformará em alguma forma de ideologia clara. Acho que não, sinceramente. No entanto, é evidente que as populações não aceitam mais que líderes autoritários determinem os destinos e rumos dos países. Num ambiente altamente repressor, comunicar tal insatisfação com sucesso – como tem ocorrido – já é, por si só, uma vitória digna de muitas notas históricas. Como tenho escrito desde os primeiros dias de manifestações, considerar que o próximo passo é a tomada dos governos para a constituição de administrações democráticas é mera especulação. Em alguns dos países, acho mesmo pouco provável que isso aconteça. É o caso da Síria.

Ao contrário de Tunísia, Egito e (em boa parte) Líbia, os militares sírios não devem aderir às manifestações. Como não se pode pasteurizar os movimentos populares árabes, a Síria possui características distintas dos países que encontraram na participação das forças armadas a base mais importante no bem sucedido processo de derrubada dos regimes. O caso sírio é muito específico e tem a ver com as divisões religiosas internas do país.

Já foi amplamente repetido que o governo de Damasco é controlado pela minoria alauita, que representa algo entre 12% e 18% dos 22 milhões de habitantes. Os sunitas, majoritários e excluídos do sistema de poder, são cerca de 75% da população. Os principais cargos militares e dos aparatos de segurança da Síria estão entregues a comandantes e generais alauitas aliados de Assad. Sem a participação do poder coercitivo, sem a adesão dessas forças, as manifestações populares não irão conseguir derrubar o atual presidente.

E a intrincada linha que torna a posição de Assad tão segura passa pela fidelidade dos alauitas. Como eles estão nos cargos de defesa e segurança e são plenamente conscientes de sua condição minoritária no país, sabem que estão no mesmo barco do presidente. Se Assad cair, os militares seguem o mesmo caminho. E há inúmeros exemplos na história humana de como se comportam grupos marginalizados quando conseguem derrubar seus opressores.

Se não bastasse esta aliança, Assad conseguiu construir uma boa imagem entre a população. Para isso, procura se desvincular ao máximo da corrente religiosa que segue e tenta dar ao Estado a importância máxima. Ao contrário de outros líderes locais, estimula nacionalismo laico e, ao mesmo tempo, não entra em embates religiosos com os sunitas. Para completar, suas ações internacionais deixam claro que a Síria tem importância estratégica. E a posição geográfica contribui para aumentar o peso do país. Com a aliança política que aproximou Damasco de Irã e Turquia, não seria tarefa simples levar adiante intervenção estrangeira como a da Líbia – cujo sucesso ainda está longe de ser alcançado.

A posição de Assad como presidente da Síria não está ameaçada. E nada leva a crer que as circunstâncias que o mantêm no poder estão para mudar.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

OEA não tem legitimidade para palpitar sobre Belo Monte

Para encerrar por ora a polêmica em torno da construção de Belo Monte, acho que vale a pena levantar algumas questões. Reafirmo minha impressão de que a solicitação da Organização dos Estados Americanos (OEA) requisitando a interrupção do projeto tem fundo político. Como escrevi ontem, citar este ou aquele país é mera especulação. Não pretendo fazê-lo. Fica a certeza, no entanto, que não há uma conspiração contra o Brasil, mas profundo interesse dos atores internacionais de ao menos retardar o crescimento do país – que, como se sabe, vem ocorrendo acima da média mundial.

A manifestação da OEA sobre um assunto interno de um de seus membros é estranha. E não apenas estranha no sentido de curiosidade, mas também em relação aos propósitos originais que justificam a própria existência da entidade. Segundo sua carta de fundação, a organização foi estabelecida em 1948 com o objetivo de alcançar “uma ordem de paz e de justiça, para promover sua solidariedade, intensificar sua colaboração e defender sua soberania, sua integridade territorial e sua independência”. As aspas se referem à missão original da instituição.

Por si só, os termos descritos já causam espanto à interferência na construção de Belo Monte. Não ficam claros, de nenhuma maneira, quais argumentos justificariam tal interferência num assunto de estrito interesse do Brasil. Haveria legitimidade para manifestações da OEA caso a obra causasse disputas entre o Brasil e algum dos outros 34 membros da entidade. Mesmo internamente, Belo Monte ainda não é – ou pelo menos não era – assunto que provocasse uma disputa apaixonada de opiniões – e, se isso acontecer, apenas reforçará o aspecto democrático pleno da sociedade brasileira. De nenhuma maneira qualquer tipo de interferência externa poderia ser justificada por conta disso.

Se de fato a OEA pretende se transformar numa organização preocupada com direitos ambientais (o que seria legítimo, mas uma mudança em seu foco de atuação original), ela deveria realizar um exame justo em todos os 35 países-membros. Fixar-se apenas no Brasil soa como operação política – que de fato é. Aliás, há aspectos equivocados no próprio texto que condena a construção de Belo Monte; a entidade recomenda que o governo brasileiro consulte cada uma das comunidades indígenas. O trecho dá a entender que isso nunca foi feito. Mas, nunca é demais lembrar, o projeto da usina data dos anos 1980.

A diferença, agora, é que o Brasil pode levar a cabo a operação com o próprio orçamento de que dispõe. E isso é circunstancial. A ideia era que Belo Monte já existisse. Só não foi erguida porque, nos traumáticos anos 80 (do ponto de vista econômico), o país dependia de empréstimos estrangeiros para financiar a obra. E o dinheiro não foi fornecido naquela época porque governos de outros países acabaram sensibilizados por protestos de organizações indígenas amplamente divulgados por personalidades como o cantor Sting.

O governo brasileiro desistiu de levar o projeto adiante por dois motivos: primeiro porque não tinha como financiá-lo mesmo. E também porque a geração de eletricidade não era assunto dramático como é hoje. Belo Monte não se trata de uma simples disputa política, mas de uma maneira de permitir o crescimento econômico do país. É claro que as preocupações ecológicas são corretas. É claro que a realocação de 20 mil indígenas é assunto grave e deve ser tratado com a devida seriedade. Mas a usina deve gerar eletricidade para 23 milhões de domicílios em todo o país. Não se pode abrir mão disso. E, certamente, este é uma discussão exclusivamente brasileira.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Impedir a construção de Belo Monte é frear o crescimento brasileiro

O Brasil agora é alvo da Organização dos Estados Americanos (OEA). Para quem ainda não sabe, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ligada à entidade, solicitou formalmente a suspensão do projeto de construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. O governo brasileiro pode descumprir a requisição, mas, se isso acontecer – e não há nada que aponte qualquer recuo no empreendimento –, possivelmente a situação será levada para a Corte Interamericana da OEA. Neste caso, alguns especialistas em direito internacional concluem que a decisão seria vinculante.

Antes de qualquer preocupação maior, vale um comentário para aliviar os mais assustados: mesmo que descumpra a ordem, nenhuma força estrangeira invadirá o Brasil exigindo a demolição de Belo Monte. O máximo que pode acontecer é o Brasil ser expulso da OEA. E esta seria uma decisão tão extrema que, na prática, levaria muito tempo até ser tomada.

O comunicado da entidade multilateral é uma vitória de organizações indígenas contrárias à construção de Belo Monte. Elas argumentam que a usina prejudicará o meio-ambiente e causará o deslocamento de 40 mil nativos. O governo brasileiro contesta os números.

Por mais que as reivindicações indígenas sejam justas, genuínas e legítimas, a discussão sobre o projeto está inserida numa disputa geopolítica. Inocências a parte, só não enxerga quem não quer. É bom que se diga que seria natural que tal tipo de artifício fosse usado mesmo. Como costumo escrever quando trato do salto de qualidade brasileiro (muitas vezes refletido nas intenções internacionais do país), nem o Itamaraty, nem o Palácio do Planalto podem imaginar que o Brasil manterá parâmetros anteriores a partir do momento em que deixa claro ter pretensões mais ambiciosas. É ingenuidade acreditar que a diretriz política que sempre prezou pela unanimidade internacional pode ser levado adiante a partir de um cenário absolutamente distinto.

Se o Brasil não pode ser considerado uma potência mundial (muito embora os fatos levem a crer que isso deve mudar em pouco tempo), não se pode dizer o mesmo quando o foco é a América Latina. A liderança brasileira no continente é incontestável – e falo isso de maneira pragmática, sem qualquer resquício que poderia ser interpretado como patriotada.

Este é apenas o início da batalha sobre a construção de Belo Monte. E devo desculpas aos admiradores de teorias conspiratórias; a questão não se relaciona de nenhuma maneira a eventuais projetos estrangeiros de controle sobre a Amazônia. Tem mais a ver com a disputa de poder diante deste novo cenário político e econômico. Afinal, o projeto da hidrelétrica atende a importantes demandas da economia brasileira. Quando concluída, Belo Monte será a terceira maior hidrelétrica do mundo (atrás da chinesa Três Gargantas e de Itaipu, compartilhada por Brasil e Paraguai.

Como o Brasil cresce acima da média mundial, a necessidade de eletricidade aumenta bastante. Não apenas por conta deste novo mundo em que vivemos, mas também porque o país está num processo de inclusão populacional socioeconômica. A indústria celebra a classe C como realidade do ponto de vista do consumo, mas é importante lembrar que novos consumidores representam também novos focos de demanda energética. Hoje, cerca de 80% da eletricidade brasileira é fornecida por fontes que usam a água para produção. Mas é preciso produzir mais. E, como lembra a revista Forbes, os rios amazônicos permanecem inexplorados. E eles concentram 70% do potencial hidrelétrico do Brasil.

Na prática, a situação é até bastante óbvia. Impedir a construção de Belo Monte é uma maneira politicamente correta de frear o crescimento econômico e político brasileiro. Simples assim.

terça-feira, 5 de abril de 2011

França vive dias de glória internacional

O começo de 2011 tem sido bastante movimentado. Além das duas tragédias óbvias – Líbia e desastres naturais no Japão –, a Costa do Marfim é outro palco da guerra por poder. Em comum a todos esses acontecimentos, uma novidade que aos olhos de qualquer um que acompanha política causa certa surpresa: o protagonismo francês está de volta. Há quem defenda que isso reflete interesses pessoais do presidente Sarkozy (cujos índices de aprovação andam em baixa). Não discordo inteiramente deste argumento, mas não credito a atuação firme de Paris somente a isso.

No caso japonês, Sarkozy foi o primeiro chefe de Estado a visitar vítimas e a se encontrar com autoridades do país após terremotos e tsnunamis. Pode ser que o presidente francês quisesse fazer média ou mesmo ganhar popularidade doméstica. Mas nunca é demais lembrar que causas humanitárias costumam mobilizar os franceses. Por isso, parece-me natural a demonstração de solidariedade.

E aí chegamos aos dois outros palcos de exercício de força francesa; Líbia e Costa do Marfim. O apoio popular doméstico à participação da França na coalizão internacional é amplo. Se hoje o país atravessa momento de profunda divisão política interna – inclusive com a tentativa por parte da extrema-direita de se reinventar em busca de mais eleitores –, a decisão de Sarkozy de fazer uso do aparato militar para proteger vidas em risco recebeu elogios. É claro que a situação pode mudar, caso a guerra leve mais tempo do que previsto. E, como tenho escrito, a incursão no norte da África pode sofrer um revés, se ficar evidente que os rebeldes não são simples contestadores de Khadafi, mas um grupo que tem seus próprios interesses políticos e econômicos (eu tendo a apostar nesta possibilidade. Por isso insisto em voltar a este assunto com alguma frequência).

Além de tudo, a França tem um tanto de sorte. Nos casos de Líbia e Costa do Marfim, as ações militares internacionais foram autorizadas pela ONU. O padrão de engajamento internacional do país reforça o papel central exercidos pelas organizações multilaterais. Vale lembrar o clima de oposição entre França e EUA quando os americanos decidiram atravessar o poder da ONU e invadir o Iraque, mesmo sem qualquer prova concreta quanto à existência de armas de destruição em massa no país. No passado recente, a doutrina internacional francesa segue as determinações das Nações Unidas.

E a situação na Costa do Marfim segue mais ou menos o mesmo padrão. Até a intervenção das forças francesas, os nove mil soldados de paz da ONU estacionados no país nada fizeram para impedir que a violência se espalhasse pelo território. Não se sabe com precisão, mas o enfrentamento entre partidários, milícias e tropas leais a cada um dos candidatos que reivindicam a presidência já causou a morte de cerca de mil pessoas. A França enviou militares e equipamentos à Costa do Marfim por uma razão muito simples: proteger os 12 mil cidadãos franceses que estavam no país. Apenas isso. Mas a sorte parece acompanhar Sarkozy. Aliás, sorte ou competência para criar oportunidades. A intervenção francesa conseguiu, além de seu objetivo inicial, a promessa de Gbagbo (o presidente derrotado nas urnas, em novembro passado, mas que insistia até hoje em seu direito de permanecer no cargo) de interromper os confrontos.

Ou seja, tudo leva a crer que a França deixará a Costa do Marfim deitada sobre os louros da vitória. Este é um momento especial para a política externa francesa. Amparada pelos organismos multilaterais, o país decidiu ir ao campo de batalha para defender o “lado certo da história”. Se já não bastasse Carla Bruni, Sarkozy agora vai ter mais motivos para fazer Barack Obama morrer de inveja.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Interesses e perdas em jogo na Líbia

Na sexta-feira, escrevi sobre o caos que toma conta da Líbia. A situação é muito mais complexa do que parece, não apenas pela grande desinformação reinante entre todas as partes envolvidas, mas também porque há múltiplos interesses no jogo de poder político regional. O século 21 pode estar apenas no começo, mas os acontecimentos internacionais dramáticos que já marcam sua história ensinaram algumas lições. Do ponto de vista geopolítico, a mais sangrenta delas é de que uma guerra não é apenas uma disputa violenta entre dois Estados nacionais; mas uma sucessão de batalhas entre atores diversos e muitas vezes profundamente ideologizados, como os grupos fundamentalistas islâmicos.

 

E, é claro, a partir do momento em que uma coalizão internacional de países (de fato liderada pelos EUA) decide atacar numa nova frente no Oriente Médio, esses grupos paramilitares não poderiam ficar de fora. E talvez este tenha sido um dos erros mais graves cometidos por americanos, franceses e britânicos: imaginaram que, ao contrário de Iraque e Afeganistão, a campanha líbia poderia ser encarada somente como missão pragmática. Faltou combinar com os opositores.

Há informações de que guerreiros islâmicos que estiveram presentes no Afeganistão estariam infiltrados entre os chamados “rebeldes”. E, como escrevi na sexta, ninguém sabe muito sobre os oponentes a Khadafi, além do fato óbvio de que eles lutam pela queda do regime. O Wall Street Journal, inclusive, informa que um desses combatentes, identificado como Ben Qumu, teria sido capturado pelo Paquistão. Prisioneiro americano, passou seis anos em Guantánamo – onde estão os acusados de atos terroristas contra os EUA. O WSJ lista mais três casos semelhantes.

A ofensiva internacional (mais ocidental e mais americana e europeia, vamos dizer a verdade) partiu de um pressuposto intrínseco certo e errado: certo porque é bastante lícito o argumento de interromper a matança indiscriminada de civis promovida por Khadafi; errado porque não deixou claro quais eram os seus reais objetivos. Por exemplo, como já escrevi também, alcançar um cessar-fogo e manter o país sob controle de Khadafi não é apenas estranho, mas também pode passar recibo de incompetência. E não apenas porque ele certamente cantaria vitória, mas porque os rebeldes com os quais a coalizão se alinha ficariam em posição delicada.

Fora o fato de que o grupo possivelmente não está disposto a chegar a um acordo com o ditador. Posso estar errado, mas a oposição líbia partiu para uma guerra sem volta. Ou seja, ou Khadafi deixa o poder ou as batalhas continuam.

Some-se a tudo isso o jogo de poder político regional. A ascendente Turquia não poderia ficar de fora. No domingo, o país enviou um navio de assistência humanitária para resgatar feridos de Misrata. Por trás da empreitada, o financiamento do grupo IHH, aliado do primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan. O IHH é conhecido por suas afiliações islâmicas que incomodam setores domésticos por ameaçar o tênue equilíbrio entre islamismo e política. Para quem não se lembra, é o mesmo grupo que patrocinou a polêmica tentativa de furar o bloqueio israelense a Gaza, em maio do ano passado.

E, sob o ponto de vista do presidente americano, Barack Obama, surge mais um problema no início de sua campanha em busca da reeleição em 2012. Já se sabe que a CIA está em contato com os rebeldes líbios. A Inteligência americana tem fornecido treinamento ao grupo. Certamente, o fato de haver ex-combatentes afegãos entre os opositores será lembrado pelos republicanos no momento mais conveniente. Como Obama poderá justificar o auxílio a fundamentalistas islâmicos que, há pouquíssimo tempo, combatiam as forças americanas no Afeganistão?

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Crise na Líbia: confusão generalizada

Há muitos elementos que denunciam o caos atual da Líbia. Não apenas pelos combates entre rebeldes e forças leais a Khadafi, mas pelo senso de que, na prática, nem a própria coalizão internacional entende exatamente o que se passa por lá. Os equívocos são reluzentes: em primeiro lugar, ninguém se atreve a dizer que tipo de resultado se espera desta guerra. A única certeza que percebo em torno dos acontecimentos é que o medo está presente em todas as atitudes políticas ocidentais.

Os EUA e a União Europeia morrem de medo de verbalizar o que é notório a qualquer um que acompanha a situação: a única possibilidade de vitória internacional requer a saída de Khadafi. E esta afirmação abre um leque de opções: o líder líbio não se mostra disposto a deixar o cargo – já disse que lutará até o fim. Ou seja, resta a quem exige sua retirada assumir esta posição, lutar por ela ou – a ainda menos prestigiada iniciativa – negociar a perspectiva de exílio com assessores do ditador.

Acho mesmo que Khadafi tem se tornado ainda mais virulento justamente porque quer construir alguma rota pessoal de fuga. Pode não ser bacana, pode não ser o resultado esperado, mas, em parte, encerraria o conflito. E aí todo mundo se depara com outro problema: quem o sucederia? Quem são esses rebeldes que já controlam algo do território oriental líbio? Os termos usados para se referir a eles são genéricos o bastante para denunciar uma verdade importante: ninguém sabe exatamente quem são essas pessoas. E quando digo isso é porque, politicamente, as posições do grupo são desconhecidas. Sabe-se somente que se opõe a Khadafi. Nada além disso.

No encontro entre líderes internacionais em Londres houve mesmo propostas para armar esses rebeldes. Isso me parece um tanto temerário, na medida em que suas intenções são completamente desconhecidas. Tal proposta revela a ansiedade para apresentar medidas práticas; e também profunda desordem entre os líderes internacionais. O episódio em que o presidente francês, Nicolas Sarzoky, reconheceu os insurgentes líbios formalmente exemplifica bem a confusão: Sarkozy tomou tal atitude unilateralmente. Não consultou EUA, Alemanha ou Reino Unido. Aliás, o próprio ministro das Relações Exteriores francês soube da decisão através da imprensa.

Todo este emaranhado de ações não tem ajudado. E agora os rebeldes – que, pelo menos já se sabe, são mal armados e mal treinados – governam parte do território líbio. Nesta sexta-feira, inclusive, fecharam acordo para exportar óleo ao Qatar. Na prática, por ora, a Líbia é somente um país dividido cuja soberania já não existe mais, Khadafi continua presidente e a coalizão internacional ainda finge que seus objetivos dizem respeito tão somente à proteção de civis. Muito possivelmente, é bem provável que se houvesse a decisão de mudar o regime de fato a situação estaria menos descontrolada. A verdade é que ninguém pode dizer ao certo para onde caminha a Líbia.