Já há quase 200 mortos nos enfrentamentos étnicos no Quirguistão. A ONU calcula em 400 mil os deslocados pelos conflitos. A situação atual do país é consequência da crise política de abril passado, que culminou com o exílio do ex-presidente Kurmanbek Bakyiev. Interessante notar que nada disso serviu para sensibilizar a comunidade internacional. Uma semana após o início dos confrontos, somente agora as Nações Unidas mostram alguma disponibilidade para enviar ajuda humanitária.
O fato ressalta algumas ambiguidades. Há duas semanas existia um clamor popular por conta dos eventos em torno da frota que tentou furar o bloqueio israelense a Gaza. Agora, silêncio. A Rússia, por exemplo, tem mostrado relutância em agir. Esta é a mesma Rússia empenhada em ser atuante no processo de paz no Oriente Médio. Onde os dirigentes de Moscou estão agora, quando um país vizinho é palco de confrontos étnicos?
A comparação entre as duas situações serve como lição sobre o comportamento dos Estados. Talvez isso cause alguma confusão na opinião pública mundial. Estados são entes impessoais e meramente dispostos a agir em nome de seus interesses. Ou seja, a Turquia tem intenções próprias no Oriente Médio. Daí o apoio à frota humanitária. Mas ela não demonstra qualquer interesse em dialogar com a Ásia Central neste momento. Assim, Ancara não se mobiliza para lamentar os quase 200 quirguizes de etnia uzbeque mortos na última semana.
E este não é o caso apenas da Turquia. Nem mesmo simplesmente dos países. Onde estão as massas obstinadas enviando vídeos, fazendo passeatas e protestos diante das embaixadas ocidentais para que os países tomem alguma atitude capaz de interromper a violência no Quirguistão?
Neste caso, aos poucos se consolida a versão de que os ataques à minoria uzbeque (que corresponde a algo em torno de 15% a 25% da população do Quirguistão) ocorreram como gesto político orquestrado pelo deposto presidente Bankyiev para desestabilizar o atual governo e retornar ao país. A minoria uzbeque é alvo de ressentimento por parte da maioria quirguiz porque conseguiu obter mais desenvolvimento econômico.
Como no caso da frota de ajuda humanitária, a ideia era criar um fato e conseguir mudar a realidade política estabelecida. A diferença, no entanto, é que, até o momento, somente o episódio envolvendo as embarcações parece ter causado comoção. No entanto, fica a certeza da reinvenção de um tipo de fenômeno: o uso das massas para alcançar objetivos políticos. Em comum a esses dois acontecimentos recentes e distintos, a busca por modificar cenários internacionais através de atores pouco tradicionais: pessoas ideologicamente empenhadas, mas que não representam necessariamente um Estado nacional.
Cabe também uma questão em torno disso tudo: quem é manipulado pelo quê? Ou seja, a Turquia manipulou os ativistas para atingir seus objetivos de protagonsimo regional ou foram os ativistas que usaram os interesses turcos de forma a mudar a realidade no Oriente Médio? Foi Kurmanbek Bakyiev, o presidente deposto no Quirguistão, que usou sua influência no sul do país para mobilizar seus aliados quirguizes? Ou foi a população quirguiz que percebeu uma oportunidade de se revoltar contra o sucesso econômico da minoria uzbeque?
De qualquer maneira, parece que esta vai ser uma nova modalidade de atuação internacional. A crise para resolver este grande dilema vai ter que ser solucionada, como sempre, pelos Estados nacionais. Mas a opinião pública vai ter ainda mais importância nesses processos. No caso da frota, ela comprou em peso a questão. No caso do Quirguistão, ela parece não estar nem aí. Por que esta ou aquela crise humanitária provoca maior ou menor apoio, ninguém até o momento conseguiu encontrar argumentos racionais para explicar.
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