A política externa em diálogo com a interna. As ambições internacionais para alimentar pretensões nacionais. As interações entre as duas plataformas de expressão políticas não são novas, mas têm conseguido alcançar patamares interessantes nesta nova crise do Oriente Médio. Três de seus principais atores têm demonstrado exemplos claros desta simbiose - para quem sabe lidar com seu potencial. Mahmoud Ahmadinejad e Tayyip Erdogan são pontas-de-lança adesta estratégia; Benjamin Netanyahu está enrolado com ela. A situação enfrentada por Ancara talvez seja a mais complexa e explica o enorme empenho da maior autoridade nacional no episódio da frota humanitária.
No caso do primeiro-ministro turco, as intenções externas são claras, têm sido expostas sem muito disfarce na última semana. Graças ao patrocíncio velado à frota que tentou furar o bloqueio israelense a Gaza - apoio este que passou à política de Estado quando o próprio Erdogan manifestou o desejo de enviar navios da marinha nacional para escoltar futuras embarcações humanitárias -, o Estado turco transformou-se num mártir político da luta palestina com possibilidade e vontade de defender a causa nas altas esferas de negociação a que tem acesso. Esta sinopse dos acontecimentos dos últimos dias esconde um problema interno latente: enquanto surfa na onda da popularidade, Erdogan trava uma desgastante batalha com os militares de seu país.
O exército da Turquia tentou derrubar o governo em 2003. As revelações são recentes e vieram à tona graças a denúncias da imprensa do país. A ação ocorreria porque as forças armadas acreditam que o atual primeiro-ministro e seu partido de orientação islâmica são ameaças concretas ao caráter laico do Estado. Tradicionalmente, os militares se consideram guardiões ferozes dos ideais de Kemal Ataturk, o fundador da Turquia moderna, em 1923, para quem a religião jamais deveria interferir nos rumos do país. Com o apoio à frota e sua tentativa de furar o bloqueio a Gaza, Erdogan anula o apelo das alegações militares junto às massas. Não por acaso, as autoridades políticas em Ancara determinaram o fim da cooperação entre as forças armadas de Turquia e Israel.
"O confronto com Israel aumenta ainda a popularidade interna do governo e enfraquece a legitimidade dos adversários internos, nomeadamente os militares. Não é difícil imaginar o discurso que se prepara. O governo do AKP (partido de Erdogan) enfrenta Israel em nome dos direitos dos palestinos. Os militares ignoram a luta palestina em nome de uma aliança com os israelenses. Também não é difícil perceber quem terá mais apoio popular", escreve o analista João Marques de Almeida, do Instituto Português de Relações Internacionais.
Dá para entender agora esta enorme boa vontade do primeiro-ministro turco com a frota, certo? O medo de sofrer um golpe de Estado é tamanho que ele considera válido, inclusive, pôr a perder 61 anos de boas relações diplomáticas, econômicas e militares da Turquia com Israel.
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