O uso do termo Primavera Árabe para designar as manifestações populares que eclodiram em países do Norte da África e do Oriente Médio pode ser perigoso. É claro que há uma tendência de pasteurizar ideologias e atitudes. De certa maneira, mesmo que o olhar dos governos de importantes Estados ocidentais tenha se tornado um tanto generoso com as profundas mudanças em curso, nunca é demais lembrar que, ainda assim, o hábito de interpretar etnocentricamente os acontecimentos não vai ser abandonado de uma hora para outra. No caso específico do Iêmen, cuja situação torna-se complicada dia a dia, isso é especialmente evidente.
Cerca de 300 manifestantes foram mortos nos últimos meses desde o levante contra o presidente Ali Abdullah Saleh. A partir da última semana, no entanto, a espiral de violência tem aumentado por conta da recusa de Saleh de deixar o cargo. Não é a primeira vez que isso acontece. Logo após o início dos protestos, em janeiro, o presidente já havia se comprometido a transferir suas atribuições outras duas vezes. E agora, como aconteceu anteriormente, desistiu na última hora. Existe a possibilidade, inclusive, que ele insista em permanecer no cargo até o fim do mandato, em 2013. Como o ex-presidente egípico Hosni Mubarak, Saleh é um caso emblemático das opções internacionais de EUA e União Europeia pré-2011.
Até este ano, as diretrizes externas americanas e europeias para o Oriente Médio basicamente se resumiam à estabilidade regional. Se os líderes combatessem o terrorismo e se mostrassem comprometidos a não causar muitos problemas em questões relativas ao frágil equilíbrio regional, na prática estavam liberados para fazer internamente o que bem entendessem. Podiam censurar a imprensa, fraldar eleições, proibir atos públicos que os desagradassem etc. Esta era a mensagem clara do Ocidente aos líderes autoritários da região. E, como todo mundo sabe, eles aproveitaram muito bem este passe-livre politico.
Um dos principais fatores que contribuem para este impasse atual gira em torno desta confusão de realidades, digamos. A política externa de EUA e UE foi de um polo a outro na velocidade do sucesso das manifestações populares. Esses dois grandes atores internacionais adotaram posturas pragmáticas e concluíram que é melhor está do lado dos vencedores. E se os vencedores representam valores elogiosos – num olhar bastante amplo sobre os movimentos que protagonizam a Primavera Árabe –, ainda melhor.
Quando Ali Abdullah Saleh luta desesperadamente para se manter à frente do Iêmen sob o argumento de que, sem ele, a al-Qaeda da Península Arábica (AQAP) irá tomar o país, ele está simplesmente repetindo um tipo de padrão de discurso através do qual o Ocidente forjou boa parte de suas alianças regionais. Sob o ponto de vista politico – acho que as consequências da disputa no Iêmem podem ser analisadas em outro texto –, Saleh não está errado; apenas atrasado, tal como o coelho de Alice no País das Maravilhas.
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