sexta-feira, 30 de julho de 2010

Colômbia x Venezuela: sobrou para Lula

O Brasil acabou incluído na guerra verbal entre Colômbia e Venezuela. A reação raivosa do presidente colombiano, Álvaro Uribe, deveu-se somente à declaração de Lula ao ser questionado sobre o assunto: "não vejo nenhum conflito. Até agora, vi apenas um conflito verbal". Lula apenas respondeu a uma pergunta que lhe foi feita. Isso bastou para causar uma onda de reações, explicações, críticas. Não é por acaso. O presidente brasileiro está no foco de duas disputas. A crise entre Caracas e Bogotá, e a corrida eleitoral brasileira.

A acusação de Uribe sobre a presença das Farc na Venezuela mereceu o tratamento corriqueiro: a repercussão entre os líderes do continente. A falta de empenho na cobertura acabou causando esta crise. O jornalismo meramente declaratório e despreocupado com apuração e contextualização pautou os eventos políticos seguintes. Pouco se falou que Uribe deixa a presidência em menos de uma semana. Nada se comentou sobre o fato de seu sucessor, Juan Manoel Santos, ter mencionado o projeto de reconciliação com a Venezuela.

Após dois mandatos de intempéries com Chávez, Uribe poderia ficar marcado se, menos de um mês após sua saída, o novo presidente conseguisse engatar conversações com a Venezuela. Pior, poderia por em xeque o próprio Plano Colômbia, a ajuda financeira e logística americana que supera a casa dos 5 bilhões de dólares.

Uribe precisava criar problemas antes de deixar o governo. Para completar, nada melhor do que colocar em discussão a própria Unasul, instrumento diplomático criado pelos 12 países sul-americanos para debater as questões do continente. Bogotá levou a discussão direto para a Organização dos Estados Americanos (OEA), que conta com a participação dos EUA. E aí entra Lula pela primeira vez. Ele seria alvo do presidente colombiano mesmo se ficasse calado. O líder brasileiro é um dos maiores entusiastas da Unasul. Mais ainda, é indiscutível sua projeção internacional positiva. Ao criticar Lula, Uribe pretende questionar o modelo político independente representado pelo atual governo brasileiro.

A outra ponta deste imbróglio fica por conta do candidato à presidência José Serra. Já escrevi por aqui outras tantas vezes que, pela primeira vez, a política externa do Itamaraty seria ponto de discussão importante durante a campanha presidencial. E isso começou a se transformar em realidade. Serra aproveitou o episódio para tentar associar o PT às Farc. Índio da Costa foi mais longe e disse que o PT se alia a traficantes.

Como os indicadores econômicos e sociais do atual governo são bastante positivos, a ideia da oposição é tentar promover certo apavoramento entre o eleitorado. Isso já foi feito antes. A crise entre Colômbia e Venezuela é vista como uma oportunidade para resgatar esta estratégia. Aliás, o fato é mencionado no editorial de hoje do jornal Washington Post que aborda a crise entre os países.
"como consequência, Jósé Serra um dos principais candidatos nas eleições brasileiras, disse ser inegável o abrigo de Chávez aos militantes das Farc".

A reação de Lula diante da maré que inundou Brasília após suas declarações foi a única possível: não se manifestar.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Os propósitos internacionais comuns de Grã-Bretanha e EUA

A Ásia Central e o Sudeste Asiático estão intimamente conectados nesses tempos. Pelo menos esta é a visão das potências ocidentais. A coalizão que luta contra o Talibã no Afeganistão pensa desta maneira. Para ser mais franco e direto: a estratégia regional americana não admite dar cabo dos radicais desistindo da manutenção de um equilíbrio de forças entre Paquistão e Índia.

Na prática, significa que, para Washington, expulsar o último dos talibãs do Afeganistão não valeria de nada se o Paquistão se transformasse num completo caos. Não apenas porque Islamabad possui arsenal nuclear. Este é apenas um dos motivos.

Além disso, mais um ponto muito importante a se considerar é que o Paquistão minimamente estruturado politicamente e bem armado representa uma ameaça à Índia. Muito embora o país também seja aliado dos EUA, a estratégia internacional da Casa Branca não trabalha com a possibilidade de que um dos atores desses grandes Estados do Sudeste Asiático se sobressaia sobre o outro. O governo de Barack Obama - assim como de seus antecessores - não admite a existência de uma única potência regional.

Daí a necessidade de Índia e Paquistão permanecerem em relativo equilíbrio, mas sem deflagrar uma guerra capaz de alterar o cenário. Por isso mesmo, os EUA aprovaram novo pacote de ajuda econômica a Islamabad mesmo diante de novas evidências de relações próximas entre membros do serviço de inteligência local e o Talibã.

Esta premissa explica também os comentários do primeiro-ministro britânico, David Cameron, durante visita à Índia. Ao se mostrar assertivo quanto ao posicionamento ambíguo do Paquistão em relação aos radicais, Cameron cumpre a cartilha americana. Se com uma mão Washington autoriza a transferência de mais aporte financeiro ao governo paquistanês, com a outra chama sua a atenção publicamente.

Obama não fez isso pessoalmente porque, se fizesse, admitiria veracidade e importância dos documentos vazados pelo site WikiLeaks. Mais ainda, a influência dos documentos nos rumos da guerra. Não custa lembrar que o primeiro compromisso internacional do novo premier britânico foi justamente com o presidente americano, há nove dias.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

David Cameron é mais um líder mundial disposto a seduzir a Turquia

O primeiro-ministro britânico, David Cameron, realiza seu primeiro giro internacional. Já esteve nos EUA, na última semana, e, nesta terça-feira, encontrou-se com a cúpula governamental turca, em Ancara. Hoje, está na Índia. Mas foram seus comentários na Turquia que mais chamaram atenção até o momento. Ao criticar Israel e classificar Gaza como um campo de prisioneiros, tentou se colocar como um aliado confiável do premier Recep Tayyip Erdogan. Mais ainda, pretende se diferenciar de seus colegas europeus, muitos deles contrários a uma aproximação com a potência islâmica vizinha.

Basicamente, a União Europeia tem brincado de avançar e, logo em seguida, recuar com as negociações que permitiriam a entrada da Turquia no bloco. É isso o que vem acontecendo desde 2005. Nada garante que haverá algum momento em que, de fato, as portas da UE finalmente se abrirão para Ancara. Os maiores opositores são França, Áustria e Alemanha.

Mas a Grã-Bretanha não quer ser identificada como um dos inimigos do país. E os motivos para tal decisão são bem conhecidos. Em primeiro lugar, da mesma forma que Washington (e por isso não acredito ser mera coincidência as palavras de apoio de Cameron ao turcos uma semana após o encontro com Barack Obama), Londres acredita que é melhor manter a Turquia por perto. Mais ainda, é muito mais importante aproximá-la do Ocidente do que jogar todo o seu potencial no colo de Síria e Irã. A Turquia também seria um aliado importante nas negociações sobre o programa nuclear iraniano, claro.

Curiosamente, no entanto, a situação de hoje é um tanto diferente do cenário de cinco anos atrás, quando, novamente, começaram os diálogos sobre a entrada do país na UE. Não tenho dúvidas de que, atualmente, os ventos sopram muito mais favoráveis a turcos do que europeus. Sua grande população de quase 78 milhões de pessoas e a complexa economia de mercado (muito embora em contração) representam uma possibilidade real de ganhos positivos num futuro breve. Não é esta a realidade da UE, como se sabe.

Ancara percebeu que sua independência política pode render ainda muitos frutos. Por conta disso também passou a se voltar para as possibilidades oferecidas no Oriente. Se não desistiu do projeto de adesão à UE, deixou de insistir. Erdogan saber que a realidade mudou para melhor, do ponto de vista turco. A Turquia atua conscientemente tendo em vista que pode ser o fiel da balança para ruptura ou reconciliação de um mundo dividido. Daí as palavras de apoio por parte de David Cameron. Seriam as mesmas de Obama, não tenham dúvidas.

"A Turquia guardou o flanco europeu diante dos bolcheviques durante três gerações. E pode um dia ser chamada a fazer o mesmo contra os jihadistas", escreve Daniel Hannan, membro do Parlamento Europeu, no britânico Telegraph.

Por tudo isso, alguns dos principais líderes mundiais passaram a procurar Erdogan para bajulá-lo. Ao que parece, esta vai ser a diretriz adotada também por David Cameron, que acaba de iniciar seu governo. Resta saber como a Turquia vai se comportar diante de potências com interesses opostos à espera de seu posicionamento. De um lado, Inglaterra e EUA; do outro, Irã e Síria. As decisões de Ancara podem mudar ainda mais o cenário internacional.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Documentos reforçam o que todo mundo já sabia sobre guerra no Afeganistão: é impossível vencer

O vazamento das informações confidenciais foi um ato político. Como já aconteceu antes e como os veículos de imprensa têm lembrado, a publicação de material confidencial foi responsável outras tantas vezes por mudar os rumos de conflitos anteriores. E esta pode sim ser uma consequência do imbróglio atual. No entanto, acredito que o conteúdo dos documentos divulgados pelo Wikileaks não seja surpreendente. Alguém duvidava da atuação ambígua do Paquistão? Ou da crueldade da guerra travada no Afeganistão? Ou mesmo da capacidade militar do Talibã?

Preciso deixar claro, no entanto, que considero muito interessante a riqueza de detalhes fornecidos nesses dias. Não se pode simplesmente ignorar os relatos, pelo contrário. Acho fundamental enxergar o que de fato tem valor real nesses quase 92 mil documentos. O fundador do think-tank americano Stratfor, George Friedman, tem uma visão clara sobre este aspecto.

"O Talibã é uma força mais sofisticada do que se acreditava. Um exemplo disso é a alegação de que os radicais têm usado sistemas de defesa aérea pessoais portáteis (MANPADS, sigla em inglês) contra aeronaves americanas. Isso é importante de alguma maneiras: primeiro, indica que o grupo dispõe de tecnologias similares às usadas contra os soviéticos; segundo, levanta o questionamento sobre onde o Talibã tem conseguido artefatos deste tipo - certamente, não são seus membros que fabricam esses MANPADS", escreve.

Sobre o papel ambíguo exercido pelo Paquistão - mencionado no texto de ontem - é possível buscar no passado uma explicação. Não se trata de justificar, mas entender a dupla fidelidade do governo de Islamab.

O Paquistão ajudou o Talibã a chegar ao poder no Afeganistão durante os anos 1990. Em 2001, os dirigentes paquistaneses teriam encerrado o apoio formal ao grupo diante da pressão exercida pelos EUA. Como se vê, entretanto, os contatos entre as partes nunca terminaram totalmente. E as razões são muito óbvias: após a saída das tropas da coalizão ocidental do Afeganistão - até o início desta semana agendada para daqui a menos de quatro anos -, quem vai voltar a atuar no país?

Sem o impedimento representado pelos soldados americanos e da Otan, é muito possível que os talibãs voltem a agir como força política e militar relevante. E não há nada o que se possa fazer quanto a isso. Vale sempre lembrar Washington despeja nesses últimos dez anos um caminhão de dinheiro nesta luta e, mesmo assim, não consegue erradicar a presença do grupo radical.

"Levando em consideração que o Paquistão não imagina que o Talibã será derrotado e que (Islamabad) não está interessada num completo caos no Afeganistão, é claro que eles (os paquistaneses) vão manter relações de proximidade e apoio ao Talibã. Considerando que o poder americano é o único trunfo do Paquistão contra a Índia, os paquistaneses não vão tornar pública esta prática (o relacionamento com o grupo radical). Portanto, os EUA acabaram por criar uma situação onde a única política possível para o Paquistão é esta dupla fidelidade. Ela consiste na manifestação pública de oposição ao Talibã, mas também em apoio dissimulado a este mesmo Talibã", diz Friedman.

Este parágrafo resume bem a impossibilidade de vitória da coalizão. Pelo menos da maneira como o ocidente costuma aplicar este termo.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Paquistão não tem interesse de acabar com a guerra no Afeganistão

O vazamento de 92 mil documentos supostamente secretos sobre a Guerra do Afeganistão expõe aspectos muito graves. Principalmente sobre a composição da cúpula do governo paquistanês. Mais uma vez, o serviço de inteligência do país, conhecido como ISI, é um dos principais implicados em diversas acusações. As ISI (na foto, seu comandante, general Shuja Pasha) são alvo de relatos sobre eventual traição à coalizão e acobertamento, interação e realização de operações conjuntas com o Talibã.

Grandes veículos de imprensa como New York Times, Guardian e Der Spiegel preferiram checar a enorme quantidade de informações antes de publicá-las. Devido à dificuldade de se chegar a qualquer conclusão, não liberaram todo o material, em nome da responsabilidade jornalística.

O comportamento desses veículos é correto. Mas, é possível verificar que o conteúdo dos documentos é muito chocante.

Em março de 2008, as ISI teriam ordenado Siraj Haqqani, militante conhecido que vive na região norte do Paquistão, a executar o assassinato de trabalhadores indianos que construíam rodovias no Afeganistão.

Os relatos dão conta ainda de planos para assassinar o presidente afegão, Hamid Karzai; envenenamento de bebidas destinadas aos militares da coalizão; e compra de mil motocicletas que seriam usadas em ataques suicidas.

Não é nada impossível que parte dos documentos contenha informação verdadeira. As ISI estão sob suspeita há muito tempo. Sua relação de fidelidade dupla já foi abordada aqui tantas outras vezes, principalmente durante a investigação dos atentados cometidos em Mumbai, na Índia, no final de 2008. Não seria surpresa para ninguém se provas sobre sua relação com o Talibã viessem à tona.

E boa parte dessa livre atuação das ISI se deve à natureza da Guerra do Afeganistão.

A coalizão ocidental precisa mais da ajuda do Paquistão do que o contrário. É através do território que passa boa parte dos suprimentos para as tropas. É em solo paquistanês, basicamente na região de fronteira com o Afeganistão, que os talibãs que combatem americanos e demais ocidentais se escondem e reabastecem. O Paquistão é um ator importante para os soldados da Otan e membros do Talibã. Mas nenhuma das partes é tão importante assim para o governo de Islamabad.

Na prática, o que as ISI e o governo do Paquistão precisam é do dinheiro fornecido principalmente pelos EUA. Desde 2001, o país recebe 1,5 bilhão de dólares anualmente. E tudo isso graças à instabilidade no Afeganistão. E aí basta um raciocínio lógico para entender o que vem acontecendo. Por que os paquistaneses teriam interesse na resolução da crise ao lado se é graças a ela que a poderosa ajuda financeira não para de chegar? Acho que esta é a pergunta a ser respondida.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Além das ofensas mútuas, Colômbia e Venezuela compartilham péssimos índices econômicos

A disputa que já dura oito anos entre Colômbia e Venezuela é retrógrada. Por alguns aspectos: primeiro, reacende o tipo de falácia ideológica de um mundo que já passou, onde países, ideias, partidos e pessoas eram divididos simplesmente entre comunistas e capitalistas, esquerda e direita. Muito embora ainda se possa mencionar certas afinidades conceituais com este ou aquele projeto, o século 21 tem ensinado - a duras penas, por sinal - que as complexidades são muito maiores.

É possível ser uma economia de mercado sem esquecer necessidades humanas e sociais. Acho que o Brasil é um bom exemplo disso. É possível também manter relacionamentos políticos com as potências mundiais sem necessariamente abrir mão dos próprios interesses. Acho que o Brasil pode ser considerado ótimo paradigma neste caso.

Mas Colômbia e Venezuela estão estacionadas neste passado não muito distante. O governo de Álvaro Uribe cedeu bases militares para os americanos em troca do auxílio para combater as guerrilhas armadas que se mantêm através do tráfico de drogas. Chávez, como se sabe, jamais aceitou a decisão do país vizinho. Sua visão de política internacional é baseada, em boa parte, nos frequentes insultos ao governo de Washington e à aliança com Estados que tradicionalmente se opõem aos EUA, como Irã e Rússia.

Enquanto isso, ambos os países sul-americanos apresentam números absolutamente insatisfatórios: por mais que Uribe deixa a presidência com uma taxa de aprovação popular na casa dos 70%, a Colômbia tem o índice de desemprego mais alto da América Latina (cerca de 12%). De acordo com último relatório da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe, o crescimento do país deve ser um dos piores entre os vizinhos: 3,7%.

A situação da Venezuela tampouco é animadora: estimativas dão conta de que a economia do país não vai crescer neste ano. Pelo contrário; existe a possibilidade real de retração. Ou seja, é previsto encolhimento de algo em torno de 3% a 4%. Para piorar, atualmente, o governo de Caracas luta para combater a segunda pior taxa de inflação do mundo (cerca de 30%. Fica atrás somente do Zimbábue).

Quando Chávez decretou boicote ao comércio com os vizinhos colombianos, em agosto do ano passado - por conta da decisão de Uribe de permitir que os EUA tivessem acesso às bases militares -, a Venezuela acabou se tornando a mais prejudicada. Reduziu o comércio bilateral de 7 bilhões de dólares para apenas 2 bilhões de dólares. Para complicar ainda mais a situação, Caracas se viu obrigada a ter de pagar mais e importar produtos de países que vendem mais caro, como o Brasil, por exemplo. A Colômbia, bem ou mal, conseguiu se virar e encontrar compradores em Equador, Chile e até na China.

No final das contas, os discursos ideológicos e o embate entre os dois governos sul-americanos são igualmente prejudiciais. Parece que o último ato de Uribe como presidente não passou de um adeus polêmico de um líder tão personalista quanto seu opositor na Venezuela. Resta saber como Juan Manuel Santos, ex-ministro da Defesa do próprio Uribe, vai se comportar diante da troca de ofensas e do histórico recente de um péssimo relacionamento com Chávez. Se for inteligente, vai tentar resolver os impasses sem muita eloquência. Para o bem dos dois países.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Independência do Kosovo não sofre condenação da CIJ

E a Corte Internacional de Justiça (CIJ) foi clara: a declaração de independência unilateral do Kosovo não configura violação do Direito Internacional. Agora, por mais que a decisão não se vincule obrigatoriamente a outros passos, é provável que medidas importantes tomem forma, como num efeito cascata: a permissão de o novo país aderir à ONU, por exemplo; ou mais Estados passarem a reconhecer a independência do governo de Pristina.

Em discussão hoje em Haia, na Holanda, não estava somente em foco o status do Kosovo, mas de todos os movimentos separatistas que buscam reconhecimento internacional. Isso explica, em boa parte, a oposição de pesos-pesados como Rússia e China. Curiosamente, no entanto, a Rússia assume postura totalmente diferente quando o assunto se refere à Geórgia. Moscou apóia com tanta firmeza a independência de Abkházia e Ossétia do Sul, que chegou a bancar uma guerra, em 2008, para defender o suposto direitos das regiões rebeldes.

Mas, ao mesmo tempo, o país trava um histórico conflito contra os separatistas da Chechênia. Da mesma maneira como fazem os chineses em relação ao Tibet. Se analisarmos os que se mostram contrários à independência do Kosovo, veremos que boa parte deles enfrenta seus próprios movimentos nacionalistas dissidentes em casa.

No caso espanhol, País Basco e Catalunha ainda não são problemas totalmente resolvidos. A região norte do Chipre, formada por população turca, recebeu reconhecimento nacional apenas, obviamente, da Turquia. Romênia e Eslováquia temem que as minorias húngaras que vivem em seus territórios decidam reivindicar autonomia dos respectivos governos centrais.

Interessante notar também que a União Europeia ainda não apresenta posição única diante do Kosovo. Apesar de manter 2,8 mil policiais em missão no país, o bloco não conseguiu encontrar uma voz capaz de representar a grande variedade de opiniões de seus membros. E este é um problema, na medida em que o Tratado de Lisboa - já abordado por aqui tantas outras vezes - presumia a aplicação de decisões conjuntas na área de política externa. É para isso que deveria trabalhar a incipiente Catherine Ashton, chefe de assuntos externos da UE. No momento em que aparece uma grande oportunidade para deliberar sobre um assunto importante do continente, ela mostra toda a sua incompetência.

Do outro lado desta confusão, estão os americanos. Ainda com quase 1,5 mil soldados no Kosovo, os EUA foram peça fundamental na operação realizada em 1999 e que durou 78 dias com o objetivo de interromper a violência étnica na região. Ao conseguir expulsar os sérvios e instituir um governo das Nações Unidas para proteger a população albanesa, não restava a Washington nenhuma opção minimamente coerente que não fosse apoiar a independência do Kosovo. Afinal, só esta posição poderia justificar a atuação militar de 11 anos atrás. Além do mais, não custa lembrar que, por ora, a Casa Branca não enfrenta nenhum dilema interno parecido a de alguns países europeus. Não há sinais da existência de movimentos separatistas que representem uma ameaça real à unidade territorial americana.

Independência do Kosovo

Os membros da Corte Internacional de Justiça (CIJ) estão reunidos em Haia, na Holanda, para discutir a legalidade da declaração de independência do Kosovo. Apesar de grande oposição da Sérvia, os kosovares anunciaram unilateralmente a independência nacional em 17 de fevereiro de 2008. Até o dia de hoje, 69 países reconheceram legalmente o novo país. Não é o caso do Brasil e da maior parte dos Estados latino-americanos, por exemplo. Mas a maioria dos europeus reconhece a soberania kosovar. Tratarei mais sobre o assunto no texto desta quinta-feira.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Paquistão e Índia ameaçam entrar em nova disputa e atrapalham planos regionais dos EUA

A intenção americana é tentar diminuir ao máximo a área de atuação de talibãs e outros radicais no Afeganistão. Por isso, muito além de se dedicar a reconstruir o país, os EUA pretendem evitar que os Estados vizinhos possam servir de abrigo e posto de abastecimento para os muitos grupos fundamentalistas que combatem a coalizão ocidental. Não é segredo o quanto são porosas as fronteiras do Paquistão. Mesmo o governo de Islamabad admite as grandes dificuldades que enfrentar para vigiar seu território. E essa fragilidade tem sido fundamental para a tomada de decisões de Obama na região.

É aí que reside um grande risco. Há grandes problemas políticos e diplomáticos a serem resolvidos. Washington não pode simplesmente ordenar que sua força militar se desloque para o lado paquistanês da fronteira de forma a conter talibãs. Tampouco consegue justificar militarmente para o público político interno americano que os soldados fiquem de braços cruzados enquanto assistem aos radicais se armarem e receberem fundos e treinamento no Paquistão. Por isso, a secretária de Estado Hillary Clinton está na região. A estratégia americana é comer pelas beiradas.

O ponto principal é simples. Ou melhor, não é simples no sentido de que seja fácil, mas bem direto quanto a seu objetivo: impedir que o Paquistão se distraia em disputas infrutíferas com a velha rival Índia. Não cabe neste momento fazer um histórico dos grandes embates entre os dois poderosos e nucleares vizinhos, mas é importante mencionar duas informações: o processo de paz entre Nova Déli e Islamabad está parado desde que militantes paquistaneses mataram 163 pessoas em Mumbai, na Índia, em novembro de 2008; os dois países se encontram, atualmente, envolvidos numa divergência em torno de recursos naturais. Mais precisamente, lutam pelas águas glaciares da Caxemira.

Como ambas as economias são sedentas por energia, o recurso é visto como fonte de abastecimento importante. Trabalhadores indianos já se dedicam à construção de uma hidrelétrica na região historicamente disputada. E então vem a grande mão americana para afagar a ansiedade paquistanesa. Clinton anunciou, na última segunda-feira, uma ajuda financeira ainda mais generosa para o Paquistao: o despejo de 7,5 bilhões de dólares na economia do país, a construção de represas e a melhoria nas instalações hidrelétricas e no sistema energético.

Hoje, os Estados Unidos decidiram pagar para que o Paquistão colabore no esforço de guerra em curso no Afeganistão. Se não puder ajudar com medidas práticas, que ao menos não arrume mais problemas com a vizinha Índia - país também aliado de Washington.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Até 2014, afegãos serão os responsáveis pela segurança do Afeganistão

Em Conferência realizada em Cabul, no Afeganistão, foram anunciadas decisões importantes sobre a retirada das tropas internacionais: até 2014, as forças de segurança afegãs serão as responsáveis pela condução de todas as operações de segurança. A grande questão, já debatida por aqui em outras ocasiões, é entender as mudanças de ambições sobre o Afeganistão ocorridas desde o início da guerra, em outubro de 2001.

Naquela época, o governo de George W. Bush acenava com objetivos pragmáticos: derrubar a cúpula Talibã que permitiu à al-Qaeda se instalar no país. Isso foi feito. O problema é que os membros da rede terrorista que sobreviveram fugiram para o Paquistão ou se organizaram para resistir à ocupação. Ficou claro que as alianças construídas na região eram mais complexas. Livrar-se da ideia criada pela al-Qaeda e de seus milhares de seguidores voluntários seria muito mais difícil do que se imaginava. Havia conexões não apenas entre bandos de camponeses radicais armados, mas espalhadas até mesmo na alta cúpula das forças de segurança do aliado Paquistão.

O escopo de atuação da Otan, amplamente liderada pelos EUA, aumentou. Vale deixar claro que, entre o simples objetivo de derrubar o Talibã, caçar os seguidores de bin Laden e o despejo de bilhões de dólares para inventar um Estado afegão viável há um grande intervalo de tempo e vidas humanas perdidas. Não creio que ninguém premeditou invadir o Afeganistão pelo simples prazer de exercitar a capacidade de reconstruir um país praticamente do zero. Os passos foram tomados um após o outro, como uma sucessão de decisões encadeadas que, nove anos depois, resultaram na grande conferência burocrática de hoje.

Como contraponto, é importante citar o Iraque. Derrubar Saddam Hussein e estabelecer em seu lugar um regime político e democrático era o objetivo americano desde a invasão do país, em 2003. A ideia, que me parece ao mesmo tempo ambiciosa e ingênua, era transformar o modelo iraquiano em inspiração para seus vizinhos no Oriente Médio. A democracia e o novo regime seriam tão bem sucedidos que influenciariam as massas da região a promover a derrubada dos ditadores e grupos dominantes locais. Não foi isso o que aconteceu e não me parece que algo parecido possa ocorrer num futuro próximo.

O Afeganistão se tornou outra fonte incessante de gastos porque é preciso, antes de qualquer coisa, fazer política. Obama escolheu este como um de seus mais importantes focos internacionais. Portanto, é preciso resolvê-lo. E bem. É importante dizer também que, quando o atual presidente assumiu a chefia do governo americano, o Afeganistão já era um problema estabelecido. Ele não tinha como justificar a retirada unilateral e jogar os esforços e prejuízos da guerra que já durava quase oito anos pelo ralo.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

A guerra indireta entre Irã e EUA

A disputa entre Irã e EUA tem adquirido contorno parecido aos confrontos indiretos entre EUA e URSS durante a Guerra Fria. Nenhum dos dois países pretende entrar numa guerra aberta. Todos têm muito mais a perder do que a ganhar. Fica claro, no entanto, que ambos os governos consideram-se mutuamente suas próprias antíteses. E buscam influenciar, negligenciar, desqualificar o outro.

As acusações por parte de Teerã de que Washington estaria por trás dos atentados ocorridos no Irã na última quinta-feira são apenas o exemplo recente desta prática. O grupo sunita Jundallah, que assumiu a autoria dos ataques responsáveis pela morte de 28 pessoas (na região mostrada no mapa), pode até contar mesmo com apoio americano. Não creio, no entanto, que o presidente Obama soubesse dos condenáveis planos dos atentados que atingiram civis inocentes. Não apenas por questões éticas, mas porque a Casa Branca não se arriscaria somente em nome do objetivo de desestabilizar o Irã.

Acredito que o Jundallah - do qual já tratei em textos anteriores. Leia aqui - tenha apoio logístico americano. Porque se trata de um grupo sunita e é esta a grande guerra em curso na região. Como se sabe, os EUA apoiam o eixo sunita. O Irã é sustentado por estados xiitas e sunitas que enxergam nos objetivos de Teerã a oportunidade de mudança dos paradigmas de poder e hegemonia no Oriente Médio.

Vale lembrar que o regime de Ahmadinejad ainda se depara com problemas internos. E eles podem representar os maiores entraves a suas ambições internacionais. Os atentados da semana passada são um exemplo. Mas há outros, muito embora mereçam pouca divulgação - por conta até das restrições ao fluxo de informação impostas pelo governo. Alguns dos acontecimentos recentes: o incêndio de uma refinaria na cidade de Abadan, no sul do país; o assassinato de um importante membro do regime, em Damasco, na Síria; explosões em partes da prisão de Evin, em Teerã, onde se encontra boa parte dos presos políticos.

Ou seja, apesar do aparente clima de normalidade, há muita agitação conduzida pelos opositores de Mahmoud Ahmadinejad. Acredito que, por conta disso, Ahmadreza Radan, oficial de alta patente da polícia iraniana, defenda o direito de seu país de procurar rebeldes e membros do Jundallah no Paquistão. Não apenas é uma forma de encontrar um problema externo - uma velha fórmula usada para unir o país em torno do governo -, mas também busca atingir a política regional americana. Afinal, o Estado paquistanês é um importante aliado de Washington na região: recebe, anualmente, 1,5 bilhão de dólares do governo dos EUA.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Direitos humanos pioram na Síria

Relatório divulgado nesta sexta-feira pela organização de direitos humanos Human Rights Watch afirma que a situação na Síria piorou nos últimos anos. O jovem Bashar al-Assad, subtituto de seu pai, Hafez, no poder, não conseguiu pôr em prática os planos de abertura do país. Na verdade, o atual presidente sírio teve de fazer uma escolha pessoal: dava mais abertura e corria o risco de sofrer um golpe ou mantinha a política de repressão aos dissidentes e permanecia no cargo.

Já se sabe o que aconteceu. O relatório dá mais detalhes sobre as contradições de Assad, o filho, desde sua posse, há dez anos. Após o discurso que marcou o início de seu governo, a oposição saiu do esconderijo incentivada pelo próprio presidente eleito. A sociedade civil novamente passou a se reunir em grupos abertamente. Parecia que os ventos de mudança haviam atingido o país.

Mas, transcorrido menos de um ano de mandato, a situação sofreu um revés importante: opositores voltaram a ser perseguidos e foram parar na cadeia por exigir mais liberdade; a imprensa independente foi colocada na ilegalidade. Como lembra Nadim Houry, pesquisador da Human Rights Watch dedicado a analisar Síria e Líbano, os dois únicos jornais privados autorizados a cobrir política no país pertencem a empresários ligados ao governo de Assad.

A Síria é hoje um país aberto ao investimento estrangeiro. De fato, passou a ser um destino turístico bastante procurado pelos europeus. Essa foi a principal marca da administração atual.

Pode até ser que Bashar al-Assad pretendesse modificar de verdade a Síria. Mas por lá, como em boa parte dos países vizinhos, existe grande resistência das tradicionais oligarquias políticas e de poder internas. E isso explica os motivos que levaram o presidente a retroceder. Mais do que isso, as distintas ramificações religiosas existentes no país acabaram por se transformar em impedimentos para a implantação de uma nova realidade.

O clã Assad é parte da minoria alauíta. Vistos por parte dos muçulmanos como hereges, os alauítas correspondem a apenas 12% da população síria - cuja maioria, 74%, professa o islamismo sunita. O partido presidencial, o também alauíta Baath, ameaçou abandonar Bashar al-Assad. Caso desse continuidade às reformas, ele seria deposto e substituído por oficiais do exército do país. Se isso não justifica a esquizofrenia em que hoje se encontra a Síria, pelo menos explica boa parte do regime linha dura que se reproduz no poder.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O caso do cientista iraniano desaparecido

O desaparecimento e o retorno a Teerã do cientista iraniano Shahram Amiri (foto) se tornou mais um caso misterioso do cenário internacional. Curiosamente, uma semana após o desfecho da troca de espiões entre EUA e Rússia. Tratam-se de casos parecidos, mas não iguais. Ao que parece, não haveria um plano de concretizar um acordo - mesmo que sigiloso - entre a Casa Branca e o governo de Mahmoud Ahmadinejad. Muito embora houvesse suficiente material humano para eventual projeto do tipo.

Haveria possibilidade de o sumiço de Amiri estar relacionar, de alguma maneira, aos três jovens americanos mantidos prisioneiros no Irã desde 2009. Não parece ser este o ponto. Pelo menos não após a publicação de reportagem na edição de hoje do Washington Post. Segundo a matéria, o cientista teria recebido 5 milhões de dólares da CIA para revelar segredos sobre o programa nuclear iraniano.

E isso faria algum sentido. Ainda mais quando levamos em consideração que ele desapareceu durante peregrinação religiosa na Arábia Saudita, há 14 meses. É importante mencionar a grande parceria mantida entre sauditas e americanos - bastante polêmica, por sinal. De forma a não levantar suspeitas para o sempre vigilante regime iraniano, nenhum plano me parece mais coerente do que deixar o Oriente Médio rumo aos EUA a partir do país que abriga as cidades de Meca e Medina, as duas cidades mais importantes para o islamismo.
O cientista teria entrado em território americano através de um programa clandestino conduzido pela própria CIA. A agência de inteligência pode levar para o país até 100 pessoas sem que elas necessitem passar pelos procedimentos legais de imigração. Resta uma pergunta importante sobre isso tudo: com 5 milhões de dólares na conta e o futuro garantido, por que Amiri teria decidido retornar para o Irã?
Porque a família do cientista continuava em solo iraniano. Quando as autoridades da república islâmica se deram conta de seu desaparecimento, bastou encontrar o filho de Amiri para reverter a situação. E agora é só juntar os pontos. Receoso quanto ao futuro dos que ficaram para trás, ele não viu alternativa a não ser inventar toda a história de sequestro. Foi um gesto de desespero para salvar seus familiares.
O problema é que seus momentos de glória como herói nacional no Irã devem ser bastante breves. Como possivelmente as autoridades do país já devem estar cientes de sua colaboração com os EUA, o destino do cientista, na melhor das hipóteses, deve ficar relegado ao ostracismo. Isso se as consequências não forem ainda piores.
Diante das opções que tinha diante de si, não se pode nem condenar as decisões que tomou. Seus dias de desespero ao aceitar o acordo com os americanos muito provavelmente variavam entre duras escolhas: a riqueza solitária e culpada no ocidente com a real possibilidade de nunca mais poder ver a família; ou retornar ao Irã, perder todos os ganhos financeiros obtidos, mas tentar proteger o filho de alguma maneira.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Terrorismo na África: algumas lembranças importantes

Se hoje a Somália é um espaço anárquico - sem nenhum romantismo no termo -, o caos atual se deve às frequentes intervenções externas. Por conta delas, o país é um apanhado de distintos grupos em luta interna e, como se pode ver pelos últimos acontecimentos, cada vez mais dispostos a internacionalizar bandeiras. O governo de Uganda anunciou ter frustrado um quarto atentado. O colete-bomba foi encontrado numa casa noturna da capital Kampala. Mas o al-Shabab conseguiu o que queria: instalou a sensação de insegurança absoluta entre os ugandenses.

Quanto ao estado de lamúria em que se encontra a Somália, ponto de origem do grupo terrorista, vale lembrar alguns fatos importantes: antes do fim da União Sovética, em 1991, o país também era alvo de disputa na Guerra Fria. O ditador Mohamed Siad Barre, que governava a Somália, foi derrubado por milícias de oposição. Como a situação não encontrou ajuste imediato, os conflitos que sucederam o fim do regime causaram a morte de 20 mil pessoas. E aí foi a vez de a ONU agir.

A ajuda humanitária enviada também se tornou foco de violência. Os grupos armados se apropriavam dos alimentos e os usavam como moeda de troca para obter mais armamento. Foi então que uma intervenção liderada pelos Estados Unidos tentou controlar a situação. Incrivelmente, as forças americanas se retiraram após encontrar grande resistência por parte do bando de Siad Barre, o ditador deposto. O episódio, inclusive, foi retratado no filme Falcão Negro em Perigo (cuja imagem do cartaz está reproduzida ao lado do primeiro parágrafo), do diretor Ridley Scott.

Já no início dos anos 2000, o ex-presidente americano George W. Bush investiu pesado para apoiar financeiramente grupos supostamente dispostos a combater a atuação da al-Qaeda no país. Os militantes receberam o dinheiro com muito gosto, mas passaram a lutar entre si pelo poder. Simplesmente, ignoraram os motivos que levaram à equivocada decisão de Washington de armá-los.

Não acredito realmente que a Casa Branca irá incorrer nesses mesmos erros. Os EUA já têm conflitos internacionais demais para administrar. Penso, no entanto, que Obama irá manter a atual política para a região. O presidente americano conta com a ajuda de importantes aliados que já ocupam a Somália, casos de Uganda e Etiópia. Não por acaso, como mencionei no texto de ontem, um restaurante etíope da capital ugandense foi o principal alvo dos ataques terroristas.

O episódio é injustificável. Mas sua realização não tem nada a ver com nenhuma das explicações apresentadas até agora. Não se tratou de um gesto de repúdio ao modo de vida ocidental, nem tampouco de uma luta em defesa do islã - como mencionou um dos líderes do al-Shabab.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Atentados em Uganda: qualquer um é inimigo

A situação de Uganda é trágica. Os atentados coordenados que mataram até agora 76 pessoas em Kampala, capital do país, neste domingo, é uma mostra disso. O terrorismo fundamentalista é o responsável pela situação. Segundo se sabe até o momento, a intenção do al-Shabab, grupo que assumiu a autoria dos ataques, era detonar os explosivos durante a Copa do Mundo, na África do Sul. Como não conseguiu, optou por atingir civis que assistiam à final num telão instalado na capital de Uganda. E este é um ponto que me parece interessante explorar.

Como costumo escrever por aqui, a sociedade ocidental tem enorme necessidade de entender logicamente os acontecimentos. Mesmo sendo absolutamente inaceitável, muitas vezes tentamos aplicar este raciocínio a atos como os que ocorreram no domingo. Os terroristas sabem disso. E exploram ao máximo esta fragilidade. Ou melhor, não se trata de fragilidade, mas de um importante traço de humanidade. Afinal, na prática, esta nossa forma de pensar reflete a incapacidade de aceitar o terrorismo simplesmente como expressão da mais pura e irracional violência, certo?

Um dos líderes do al-Shabab, o xeque Yusuf Isse, deu a seguinte declaração ao britânico Telegraph, logo após os atentados:

"A Uganda é um dos principais governos infiéis que apoiam o chamado governo da Somália. Sabemos que a Uganda é contra o islã e por isso estamos muito felizes quanto ao ocorrido em Kampala. São as melhores notícias que já escutamos", disse.

Ou seja, a justificativa é de que o país é contra o islã. Da mesma maneira que a África do Sul também seria. E o que é ser contra o islã? Simplesmente, não apresentar maioria populacional muçulmana? Ou não aplicar a sharia? As palavras de Isse são vagas e dão uma dimensão perturbadora a atos como os cometidos pelo al-Shabab: qualquer país ao alcance de grupos terroristas pode ser vítima de sua ações.
Existe uma explicação mais direta para o ocorrido. O governo de Uganda foi o primeiro a se comprometer com o envio de soldados para a missão da força de paz da União Africana na Somália.

O jornalista Jeevan Vasagar, do britânico Guardian, tem outra interpretação para os atentados. Muito mais racional, continua sem responder à principal dúvida: se um país quisesse satisfazer terroristas do al-Shabab, o que poderia ser feito para livrar sua população de ataques como os do último domingo? A ausência de uma resposta mostra que o terrorismo não apresenta justificativas, apenas desculpas para continuar a agir.

"Um dos alvos, o Ethiopian Village Restaurant pode ser uma pista. Forças etíopes entraram na Somália em 2006 e acabaram com a União das Cortes Islâmicas (que atuava no país)", escreve.

Explica, mas não responde ao principal questionamento.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

As consequências da prisão de acusados de terrorismo na Noruega

A Noruega deixou de lado a associação natural às boas notícias e acabou se transformando em manchete dos jornais de todo mundo ao anunciar a prisão de três suspeitos de atividades terroristas. O que se sabia há algum tempo acabou confirmado. A al-Qaeda se apropriou do conceito ocidental de franquia para se perpetuar. E isso pode ter várias e graves consequências. Não apenas no óbvio conflito entre os jihadistas e a "sociedade ocidental", mas também no próprio cenário político europeu.

Não é novidade o momento complicado pelo que os países da zona do euro atravessam. A operação norueguesa pode ser o início de uma guinada à direita europeia ainda mais acentuada. Vale examinar as poucas informações a respeito dos acusados pela polícia do país: um chinês de origem uigur que chegou à Noruega no final da década de 1990 e recebeu cidadania em 2007; um iraquiano curdo que também chegou ao país no final dos 1990 com status de residente permanente; um uzbeque que recebeu asilo político no início dos anos 2000.

Em comum a todos eles, não apenas a faixa etária - por volta de 30 anos -, mas também o fato de não terem sido rejeitados formalmente pela sociedade ocidental. Todos usufruíam legalmente dos vastos benefícios do Estado norueguês. Não tenho dúvidas de que isso pode contribuir como argumento para grupos extremistas europeus que desde sempre viram nos imigrantes uma ameaça. Agora, como já acontece em países com grandes contingentes populacionais de muçulmanos, o caso pode ampliar as divisões internas. E vai valer uns votos também para os partidos de extrema direita.

Curiosamente, a própria perseguição ocidental aos grupos terroristas pode ter sido responsável pelo seu sucesso ideológico. Como desde o 11 de Setembro não fica claro se as lideranças da al-Qaeda ainda estão vivas, o grupo acabou fragmentado, adotando mesmo que involuntariamente o conceito de franquia mencionado no primeiro parágrafo. Sobre isso, aliás, vale mencionar pesquisa realizada pelo think-tank britânico Demos. O instituto quis saber os motivos que levavam jovens a optar por aderir ao extremismo islâmico. O resultado é surpreendente.

O estudo mostra que a maior parte dos adeptos do radicalismo é seduzida por um conceito de "jihad bacana". Ou seja, pela eficiência dos atos terroristas e por supostas características de subversão e rebeldia associadas aos grupos. Tais motivações são mais importantes do que discursos de clérigos radicais e a oposição pessoal aos governos ocidentais.

Por isso, acho muito importante conhecer a história desses três jovens que viviam na Noruega. A partir de suas motivações, será possível encontrar os vazios deixados pela sociedade ocidental que acabaram preenchidos pelo terrorismo. Os detalhes ainda não foram divulgados pela polícia norueguesa porque os suspeitos podem ter ligações com outros procurados em Grã-Bretanha e Estados Unidos.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Estados Unidos e Rússia chegam a consenso sobre espiões. E isso é muito estranho

Parece estar próximo do fim o episódio envolvendo a descoberta de 11 espiões a serviço da Rússia nos Estados Unidos. Muito embora a história tenha servido para mexer ainda mais com a imaginação dos roteiristas cinematográficos, prefiro optar por outro caminho. Acredito que a missão por tempo indeterminado dos agentes valeu a pena, sob o ponto de vista de Moscou.

O caso do espião Donald Howard Heathfield é um exemplo interessante, como lembra Daniel McGroarty, ex-funcionário da Casa Branca e do Departamento de Estado. O FBI descobriu que ele havia mantido contato com um importante cientista americano que trabalha no desenvolvimento de munições capazes de destruir grandes bunkeres. O projeto é destinado a burlar proteções muito sólidas, como as que asseguram a existência de instalações nucleares secretas. Precisa dizer mais?

Apesar de o próprio FBI ter afirmado que os investigadores enviados pelo serviço secreto russo conseguiram descobrir pouca coisa relevante, acredito que algo está mal explicado. Um ponto interessante que me deixou intrigado foi a resolução jurídica do caso. Os dez acusados – um já havia conseguido deixar o território americano – assumiram a culpa. Entretanto, eles não foram processados por espionagem, mas por atuarem como agentes internacionais sem registro formal.

Ou seja, houve um abrandamento da pena, uma vez que, na prática, EUA e Rússia concordaram em dar sequência a uma troca de prisioneiros. Os dez acusados serão enviados para a Rússia. Entre outras medidas, Moscou libertará quatro agentes presos no país indiciados por manter contato com agências de inteligência ocidentais. E aí surge uma hipótese interessante: mesmo que o FBI não considere esses agentes russos importantes, a rapidez com que o governo americano resolveu o impasse com o Kremlin pode sugerir que os quatro acusados de espionagem presos na Rússia sejam minimamente relevantes – ou tenham conseguido descobrir algo de importante – para Washington e seus aliados.

Acho que este caso ainda pode ter desdobramentos curiosos. Até porque será preciso descobrir o destino dos libertados de ambas as partes. Já se sabe, por exemplo, que um dos agentes russos deve receber uma pensão vitalícia por parte do governo de Moscou. Aparentemente, no entanto, parece que a situação ainda não pôs em risco a retomada de relações positivas entre Obama e Medvedev-Putin. Mas tudo vai depender da proporção que isso vai tomar.

Sobre o interesse mútuo de espionagem, gosto da visão de Peter Earnest, diretor e fundador do Museu de Espionagem Internacional e funcionário da CIA por 35 anos:

"É seguro afirmar que desde o fim da Segunda Guerra Mundial nunca houve um dia em que a União Soviética e a Rússia não espionaram os EUA e vice-versa. Os dois países estiveram em conflito (retórico) sobre o Irã até bem pouco tempo. Após o 11 de Setembro, a Rússia permitiu com relutância que os EUA operassem bases na Ásia Central, região que Moscou vê como seu quintal. Os dois países pertencem a G8 e G20 –arenas não somente de cooperação, mas também de disputa", escreve.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Como Obama resolveu seus problemas no Oriente Médio

Ainda sobre o encontro entre o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e o presidente americano, Barack Obama, é preciso saber que todos os caminhos levam ao aumento da pressão sobre o premier de Israel. Não apenas a Turquia – como escrevi no texto de ontem – pretende mudar a política interna do Estado judeu. Este é o desejo dos palestinos e também da Casa Branca.

Netanyahu é visto pelo governo Obama como um impedimento ao grande projeto de reconciliação com o mundo árabe e muçulmano. Para Washington, Bibi é o responsável pela manutenção dos assentamentos e também por alçar a protagonista o polêmico ministro das Relações Exteriores, Avigdor Lieberman. Para os EUA, Tzipi Livni, do Kadima, seria o perfil ideal para ocupar a liderança em Israel. Mas mudar a política interna israelense é complicado. Pelo menos, era.

Com a economia em ascensão e o terrorismo controlado, Netanyahu usufruía de certo período de calmaria. Não havia motivos para se desgastar em negociações de paz com os palestinos. Mas isso mudou. O episódio da Frota da Liberdade colocou novamente o bloqueio a Gaza em foco. A situação permitiu a Washington pensar em alternativas para se livrar de Bibi. E o governo Obama encontrou. Graças à ajuda do presidente palestino, Mahmoud Abbas.

Como grandes patrocinadores do processo de paz, os EUA exigem novas rodadas de negociações. E aí vem o complemento palestino. O presidente Abbas só admite se reunir pessoalmente com Netanhyau se o líder israelense concordar em congelar a construção de assentamentos na Cisjordânia. Para Bibi, esta é uma tremenda dor de cabeça, uma vez que a coalizão que sustenta seu governo apoia amplamente o projeto de manter colônias judaicas no território. Se Netanyahu ceder à pressão americana, cai. Sua coalizão entra em colapso e novas eleições serão convocadas em Israel. É tudo o que Obama mais quer.

Da parte de Netanyahu, no entanto, é preciso mostrar algo aos americanos. Por isso enviou seu ministro da Defesa, Ehud Barak, para conversações com o primeiro-ministro palestino, Salam Fayyad. Por isso também insiste na necessidade de se encontrar pessoalmente com Mahmoud Abbas.

Além de não considerar Bibi um interlocutor confiável, o presidente palestino sabe quem tem muito a perder diante de sua opinião pública.

Há dez anos, como lembra o jornal Haaretz, o então primeiro-ministro de Israel, Ehud Barak, oferecia ao presidente palestino à época, Yasser Arafat, discutir o status de Jerusalém e debater as fronteiras definitivas de Israel e do futuro Estado palestino. Mesmo ao próprio Mahmoud Abbas, o ex-premier israelense Ehud Olmert ofereceu 98.1% de toda a Cisjordânia. Nenhuma resposta positiva foi dada pelos líderes palestinos. Hoje, Netanyahu quer negociar com Abbas entre 40% e 60% do território - oferta bem menos abrangente.

Para o presidente palestino, sentar-se com Netanyahu é admitir a derrota política. Para Netanyahu, negociar com Abbas é dar um grande passo para mostrar algo de relevante para os americanos. Para Obama, a situação quase que se resolveu por si: basta aguardar para colher os frutos. Se Bibi decidir optar pelo congelamento da expansão dos assentamentos, vitória da Casa Branca. Se cair por causa disso, ainda melhor para o presidente americano
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terça-feira, 6 de julho de 2010

Turquia se distancia de Israel por razões estratégicas

A Turquia ainda exige de Israel um pedido de desculpas formal como pré-requisito para retomar as relações amigáveis e de cooperação entre os países. A exigência nada mais é do que uma maneira distinta de romper os laços. Parte do esforço de propaganda recente, a estratégia funciona bem, sob o ponto de vista turco. Coloca os israelenses numa posição delicada, além de impor ao governo Netanyahu a culpa pelo fim de um relacionamento que já foi bastante estreito.

Ancara põe o gabinete de Jerusalém contra a parede porque quer manter a separação. A intenção da Turquia é provocar um estremecimento com Israel pelo menos até as eleições turcas, em novembro de 2011.

O primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan (foto) consegue a simpatia popular graças ao papel que passou a exercer desde o episódio da Frota da Liberdade. Mas não se trata apenas disso.

A guinada oriental atende a objetivos econômicos também. Segundo o New York Times, as exportações do país cresceram 13% em relação ao ano anterior. Entre os principais mercados estão Irã, Iraque e Rússia. Em 2010, o país exportou 1,6 bilhão de dólares em produtos para Irã e Síria. O valor supera em 200 milhões de dólares as vendas de bens produzidos na Turquia para os Estados Unidos.

A verdade é que a economia nunca esteve tão bem. Os dados são realmente impressionantes: o primeiro trimestre deste ano registrou crescimento de 11,4% em relação ao mesmo período de 2009, perdendo apenas para a China; em conjunto, as empresas de construção turcas têm encomendas no valor de 30 bilhões de dólares – novamente o dado é inferior apenas em relação aos números chineses.

Na prática, o governo de Ancara percebeu que o país tem muito mais a ganhar ao optar pelos aliados orientais. Até porque os benefícios políticos e econômicos obtidos em anos de cumprimento da cartilha ocidental parecem menores neste momento. A União Europeia sempre relutou em abrir suas portas, e a cooperação com os israelenses desagradava a governos de Irã e Síria – hoje, maiores aliados da Turquia.

Por conta disso tudo, Erdogan decidiu convergir suas ações para um mesmo foco: aumentar a credibilidade com seus parceiros islâmicos, agradar ao eleitorado interno e quebrar a resistência das forças armadas do país – seus grandes adversários. Romper com Israel, portanto, nada mais é do que um ponto-chave para expandir mercados, ganhar credibilidade no Oriente Médio e garantir os resultados positivos nas eleições de 2011.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Momento decisivo cerca o encontro entre Netanyahu e Obama em Washington

Quando o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyhau, der início ao encontro com o colega Barack Obama, nesta terça-feira, mais do que um simples compromisso entre aliados estará em jogo. A própria natureza da histórica aliança entre Washington e Jerusalém vai estar em discussão e também o futuro do atual primeiro-ministro israelense. Se desde a posse do premier, em fevereiro de 2009, as relações não eram as melhores, a situação piorou ainda mais neste ano. Houve decepções de parte a parte.

Do lado americano, os acontecimentos foram óbvios: o anúncio israelense de que continuaria a construir em Jerusalém Oriental e daria prosseguimento aos assentamentos na Cisjordânia ocorreu justamente quando o vice-presidente dos EUA, Joe Biden, visitava o país. O constrangimento provocou a maior crise entre Israel e EUA do mandato de Obama.

A partir deste ponto, praticamente houve uma crise a cada dois meses. O episódio envolvendo Biden aconteceu em março. Em maio, foi a vez de o governo israelense se desapontar com a Casa Branca. Durante o encontro que revisou o Tratado de Não Proliferação Nuclear, os EUA acabaram por ceder às demandas dos países árabes e não impediram a aprovação do texto final da conferência – cujo ponto mais delicado insistia para que Israel aderisse ao tratado. Durante o governo Bush, houve situação semelhante e a Casa Branca forçou a retirada da menção.

A situação permanece complicada, até porque as consequências causadas pela "Frota da Liberdade" – a terceira crise do ano, uma vez que a Turquia é considerada aliada estratégica pelo governo Obama no mundo muçulmano – ainda estão em curso. Como forma de evitar um maior aprofundamento dos impasses com os americanos, Netanyahu está correndo atrás do tempo perdido.

Além de aliviar o bloqueio a Gaza, o primeiro-ministro israelense tem tentado ressuscitar o processo de paz. Nesta segunda-feira, o ministro da Defesa, Ehud Barak, reúne-se com o primeiro-ministro palestino, Salam Fayyad. Pode não ser o ideal, mas o encontro é o primeiro resultado prático capaz de sinalizar a retomada das negociações a partir do trabalho de George Mitchell, enviado de Washington à região.

Apesar de a imprensa repercutir as declarações da Autoridade Palestina de que a reunião muda muito pouco, acredito que este seja um dado importante para Netanyahu apresentar quando se encontrar com o presidente americano. A reivindicação palestina de que conversações diretas – envolvendo o próprio premier israelense e o presidente palestino, Mahmoud Abbas – dependem da interrupção definitiva da construção de assentamentos coloca o atual governo israelense contra a parede.

Afinal, como parte importante da coalizão que sustenta Benjamin Netanyahu é formada por partidos que apoiam ideologicamente os assentamentos, é pouco provável que o governo Bibi consiga se manter se decidir abdicar de construir colônias na Cisjordânia. De certa forma, a inteligência do presidente Abbas conseguiu enxergar no atrito entre Netanyahu e a Casa Branca uma maneira de derrubar o atual governo de Israel.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

O primeiro contato entre representantes de Israel e Turquia desde a tentativa de rompimento do bloqueio a Gaza

A notícia do dia no Oriente Médio é a possível reaproximação entre Turquia e Israel. Apenas um mês após a relação entre os países atingir seu pior momento, autoridades turcas e israelenses se encontraram nesta quarta-feira em Bruxelas. O ocorrido mostra bem como a política é, antes de mais nada, um exercício de superação ideológica e reafirmação dos interesses meramente pragmáticos. Vale dizer também que o presidente Barack Obama foi o grande incentivador da reunião.

A reconciliação é de total interesse americano. Em primeiro lugar, porque é melhor ter a Turquia como aliada do que como inimiga. Se não puder aplicar tal maniqueísmo, que, ao menos, os aliados de Washington possam evitar confrontos diretos com Ancara. Esta é a posição, até porque já se admite a independência de posicionamento turca. Se era isso que o país queria ao pender para o lado iraniano, é isso que terá. Sem dúvida, o prejuízo é bem menor do que bancar conflitos retóricos e correr o risco de perder um grande interlocutor no mundo islâmico – pelo menos, no ponto de vista dos EUA.

Em relação a Israel, a divulgação do encontro com os turcos tem outro objetivo: após muito tempo, os israelenses parecem ter usado uma bela estratégia de relações públicas. Basta notar que o encontro ocorreu entre o ministro das Relações Exteriores da Turquia, Ahmet Davutoglu, e o ministro do Comércio de Israel, Benjamin-Ben Eliezer (em foto de arquivo). A lógica hierárquica levaria a crer que o interlocutor óbvio desta conversa seria o polêmico ministro das Relações Exteriores, Avigdor Lieberman.
Como Lieberman é detestado nos países islâmicos, nada melhor do que enfraquecê-lo publicamente e ganhar pontos com os turcos. A imprensa israelense informa que ele teria ficado furioso com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu por sequer ter sido informado do plano. Acho que seria um tanto sofisticado dizer que se trata de uma encenação por parte de Lieberman, mas parece ter sido uma grande jogada de Bibi. Aliás, duplamente. Ao enviar Ben-Elizer, ele também desvaloriza o ministro da Defesa, Ehud Barak, do Partido Trabalhista. Ou seja, Netanyahu prestigia a Turquia graças ao enfraquecimento de dois dos seus principais adversários internos.

Vale citar que a reunião também atende a objetivos políticos da Turquia. Como escrevi anteriormente, a manutenção dos laços com Israel é um ponto de atrito entre o governo atual (de raízes islâmicas) e seus principais críticos, as forças armadas. Como o exército do país se considera o grande guardião do laicismo oficial do moderno Estado turco (fundado por Kemal Ataturk), Israel acabou se transformando numa batalha entre oposição e situação; entre os defensores de um país não vinculado formalmente a preceitos religiosos e os que acreditam que o islamismo deve ter alguma influência nas diretrizes políticas do país.

O fato de, por ora, a reunião entre Ben-Eliezer e Davutoglu não ter alcançado nenhum resultado palpável é o que menos importa. As marolas provocadas pelo acontecimento são muito mais importantes.